A Fé Reformada e o Arminianismo
Parte 3

por

Dr. John Murray


O terceiro dos cinco pontos do Arminianismo diz respeito à questão do pecado original ou da depravação humana. Em várias das declarações formais da posição Arminiana, no seu testemunho da depravação humana, o entendimento real desta posição não é prontamente detectado. Como William Cunningham aponta, quando a controvérsia foi levantada, especialmente como foi conduzida do lado Arminiano, não deu proeminência a este aspecto do debate. Todavia, como ele processe para mostrar, “ela realmente residia na origem de toda diferença, como foi feito mais palpavelmente manifesto no progresso da discussão, quando os seguidores de Armínio desenvolveram suas visões sobre o assunto de uma forma mais completa, e se desviaram mais e mais da doutrina da Bíblia e da Reforma sobre o assunto do estado natural do homem e do caráter dos homens” (Historical Theology, 2:392).

Arminianos em termos gerais afirmam a depravação da natureza humana caída. Mas uma mera declaração geral do fato não toca o cerne da questão. A pergunta real é a seriedade com a qual a declaração geral do fato é tomada e a disposição de apreciar todas as implicações dela. Para resumir, é a questão da totalidade ou inteireza desta corrupção.

Nossa Confissão de Fé diz o seguinte, com respeito aos nossos primeiros pais e o pecado deles de comer o fruto proibido:

Por este pecado eles decaíram da sua retidão original e da comunhão com Deus, e assim se tornaram mortos em pecado e inteiramente corrompidos em todas as suas faculdades e partes do corpo e da alma. Sendo eles o tronco de toda a humanidade, o delito dos seus pecados foi imputado a seus filhos; e a mesma morte em pecado, bem como a sua natureza corrompida, foram transmitidas a toda a sua posteridade, que deles procede por geração ordinária. Desta corrupção original pela qual ficamos totalmente indispostos, adversos a todo o bem e inteiramente inclinados a todo o mal, é que procedem todas as transgressões atuais (VI:2-4).

O homem, caindo em um estado de pecado, perdeu totalmente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação, de sorte que um homem natural, inteiramente adverso a esse bem e morto no pecado, é incapaz de, pelo seu pr6prio poder, converter-se ou mesmo preparar-se para isso (IX:3).

Estas são declarações altamente resumidas e sucintas da depravação total, e seu significado e conseqüências, devem ser cuidadosamente pesadas. Elas são peculiarmente ofensivas a toda visão que espera por qualquer vestígio de otimismo, com respeito às qualidades ou potenciais inerentes na natureza humana, como caída. Deveras elas devem levantar a oposição e o protesto enfático de toda visão que sustenta qualquer esperança sobre a autonomia da vontade humana. É justamente porque o Arminiano, em última análise, coloca o fator determinante da salvação de um indivíduo na livre escolha da vontade do homem, que ele toma tal posição rígida com a doutrina das Igrejas Reformadas.

A Confissão não nega, certamente, que os homens possam ter virtudes naturais ou retidão civil. Ela afirma que as obras feitas por homens não regenerados podem ser, com respeito à questão delas, coisas que Deus ordena, e de bom uso tanto para eles mesmos como para os outros. Nem ela diz que todos os homens são igualmente depravados ou, para colocar de uma forma mais exata, não diz que esta corrupção “pela qual ficamos totalmente indispostos, adversos a todo o bem e inteiramente inclinados a todo o mal” recebe o mesmo grau de desenvolvimento e expressão em todos. O que a Confissão apresenta é o ensino da Escritura com respeito à condição moral e espiritual dos homens, quando estes ficam diante da pura luz do padrão e julgamento divino. Julgados por esta norma, eles estão mortos em pecado e totalmente corrompidos.


Graça Irresistível

Como é aparente a partir da discussão precedente, é em conexão com as operações de Deus em sua graça salvadora que as implicações da afirmação ou negação da doutrina da depravação total vêem à luz. A questão aqui é: Qual é o modo da divina operação do Espírito de Deus ao trazer os homens à fé e ao arrependimento? Todos concordam que os homens são salvos através da fé. Mas a diferença se levanta quando passamos a explicar o fato que, daqueles que indiscriminadamente recebem as ofertas da graça no evangelho, alguns crêem e outros não. A questão não é em termos gerais aquela da graça. Arminianos concordam que os homens não podem ser salvos aparte das operações graciosas do Espírito de Deus no coração. A questão é: Qual é a natureza dessa graça? Qual é a causa da fé? Por que é que alguns crêem para a salvação das suas almas e outros não? Ela é uma graça que pode ser resistida, ou é sempre eficaz para o fim em vista, e, portanto, incapaz de ser frustrada?

Os Arminianos, embora exibindo certas diferenças entre eles mesmos, estão de acordo que a graça suficiente, quer ela seja considerada como uma possessão natural ou uma concessão graciosa, reside em todos, e, portanto, todos os homens tem a capacidade de crer. A explicação do fato que alguns crêem e outros não reside totalmente numa diferença de resposta da parte dos homens. Essa diferença de resposta pode ser declarada em termos de co-operação com a, ou aperfeiçoamento da, graça de Deus. Mas em todo caso a explicação da diferença reside exclusivamente no livre-arbítrio do homem. Na diferença da resposta da parte do crente em comparação com a do incrédulo, ele não é apenas totalmente responsável, mas ele, no exercício da autonomia que pertence à sua vontade, é o único fator determinante. Deus não faz com que os homens difiram. Ele não opera de uma maneia mais salvadora e eficaz no homem que crê do que ele o faz naquele homem que não crê. Em favor dessa indiscriminação nas operações salvíficas de Deus, o Arminiano é excessivamente zeloso; ele demanda que o que Deus faz em um, ele faz por e em todos igualmente. Em última instância, então, a questão da salvação reside na determinação soberana da vontade humana. Os homens fazem com que eles mesmos difiram.

Agora é fácil ver que, se o homem é assim capaz de cooperar com ou aperfeiçoar a graça que é comum a todos, deve residir no homem algum vestígio de bondade. De fato, um elemento tão decisivo de habilidade para o bem sobreviveu que o mesmo determina o exercício do evento ou da série de eventos mais importantes na história do indivíduo. E aqui é exatamente onde a posição Arminiana colide não somente com a soberania e eficácia da graça salvadora de Deus, mas com a depravação total do homem pecador.

Em magnificente contraste com essa negação da soberania e eficácia da graça salvadora de Deus está o ensino da nossa Confissão. Nela lemos:

Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e só esses, é ele servido, no tempo por ele determinado e aceito, chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Espírito, tirando-os por Jesus Cristo daquele estado de pecado e morte em que estão por natureza, e transpondo-os para a graça e salvação. Isto ele o faz, iluminando os seus entendimentos espiritualmente a fim de compreenderem as coisas de Deus para a salvação, tirando-lhes os seus corações de pedra e dando lhes corações de carne, renovando as suas vontades e determinando-as pela sua onipotência para aquilo que é bom e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos pela sua graça.

Esta vocação [ou chamado] eficaz é só da livre e especial graça de Deus e não provem de qualquer coisa prevista no homem; na vocação o homem é inteiramente passivo, até que, vivificado e renovado pelo Espírito Santo, fica habilitado a corresponder a ela e a receber a graça nela oferecida e comunicada. (X.1-2.)

 

Nessas seções a fé que abraça a Jesus Cristo para a salvação da alma é remetida à predestinação soberana de Deus como sua fonte, e à operação regeneradora de Deus no coração como sua causa. Deus soberanamente se agradou de transmitir sua graça eficaz, e é a capacitação que vem dessa concessão soberana da graça do Espírito Santo que conduz à fé. A pessoa eficazmente chamada é totalmente passiva nisto até que seja renovada pelo Espírito Santo. Um novo coração foi lhe dado e um espírito reto criado dentro dela pela obra misteriosa do Espírito Santo; e porque ele tem um novo coração e um espírito reto, sua resposta ao chamado do evangelho não pode ser outra senão uma recepção e confiança amorosa. Assim como a reação da mente carnal não pode ser outra senão uma de inimizade contra Deus, assim a reação da mente do Espírito não pode ser outra senão uma de fé e confiança. É a própria natureza do novo coração confiar em Deus como ele é revelado na face de Jesus Cristo.

Temos aqui em nossa Confissão uma declaração muito elaborada da relação da fé com a regeneração. Nessa esfera do debate teológico nossa posição pode mui prontamente ser testada pelas nossas respostas às questões: Deus nos regenera porque cremos, ou cremos porque Deus nos regenerou? Em outras palavas, qual é a causa primária, a regeneração ou a fé? Há muitos evangélicos que diriam que a fé é o meio da regeneração, que Deus regenera aqueles que crêem e porque eles crêem. Através disso, eles se colocam, quer intencionalmente ou não, no campo Arminiano e na mais decidida oposição à doutrina Reformada. Logicamente eles se colocam - talvez com boas intenções - numa posição que leva à destruição e ruína do verdadeiro evangelicalismo.

Nós estamos, certamente, usando o termo “regeneração” no sentido restrito do novo nascimento, e nesse sentido a própria marca do Calvinismo e do Agostinianismo de que a fé é o dom de Deus, pois ela procede da operação regeneradora do Espírito Santo como a sua única causa e explicação. Deus elegeu o seu povo para a salvação. Ele ordenou que essa salvação se tornasse deles através da fé. Mas por causa da depravação total dos seus corações e mentes, eles não podem exercer fé; eles estão mortos em delitos e pecados. Para trazê-los à fé Deus implanta pela agência do Espírito Santo um novo coração e um espírito reto dentro deles, e assim, eficazmente e irresistivelmente os traz a Cristo. Eles são feitos dispostos no dia do poder de Deus. Pela graça eles têm sido salvos através da fé, e essa fé não procede deles mesmos, mas é o dom de Deus.


A Perseverança dos Santos

Numa relação muito íntima com a doutrina precedente da graça eficaz ou irresistível está a doutrina da segurança eterna do crente. Essa doutrina o Arminiano rejeita asperamente. Um crente verdadeiro, ele diz, pode estar na graça e então cair da graça e finalmente perecer. Tal posição está em coerência lógica com a sua doutrina da natureza da graça salvadora. Se o fator determinante na questão da salvação de um indivíduo é a autonomia de seu próprio livre-arbítrio, então a consistência pareceria estar totalmente a favor de considerar a salvação como uma possessão muito insegura e mutável. A salvação nesse caso não pode ser nem um pouco mais estável do que aquela que na análise final a determina.

Mas é justamente aqui que a harmonia da graça eficaz com a perseverança dos santos vem à luz. A Fé Reformada reconhece que é Deus quem determina a salvação do pecador, e que o que ele começou ele trará à perfeição. A salvação descansa na graça imutável de Deus. Ele não abandonará as obras das suas mãos, nem tornará nulo o seu pacto. Assim, lemos na Confissão:

Os que Deus aceitou em seu Bem-amado, os que ele chamou eficazmente e santificou pelo seu Espírito, não podem decair do estado da graça, nem total, nem finalmente; mas, com toda a certeza hão de perseverar nesse estado até o fim e serão eternamente salvos.

Esta perseverança dos santos não depende do livre arbítrio deles, mas da imutabilidade do decreto da eleição, procedente do livre e imutável amor de Deus Pai, da eficácia do mérito e intercessão de Jesus Cristo, da permanência do Espírito e da semente de Deus neles e da natureza do pacto da graça; de todas estas coisas vêm a sua certeza e infalibilidade (XVII.1-2).

 


Fonte:
Extraído de uma série que apareceu na revista The Presbyterian Guardian em 1935-1936.

Sobre o autor :

O Professor John Murray nasceu na Escócia, em 1898, e era, no tempo desta escrita, um cidadão Inglês. Ele se graduou na Universidade de Glasgow (1923) e no Seminário Teológico de Princeton (1927), e estudou na Universidade de Edimburgo durante 1928 e 1929.

Em 1929-1930 ele serviu como professor no Seminário Teológico de Princeton. Posteriormente ele ensinou no Seminário Teológico de Westminster, na Filadélfia, onde ele serviu como Professor de Teologia Sistemática, de 1930-1966.

Ele foi um freqüente contribuidor de jornais teológicos e é o autor de: O Batismo Cristão (1952), Divórcio (1953), Redenção Consumada e Aplicada (1955), Princípios de Conduta (1957), A Imputação do Pecado de Adão (1960), Calvino sobre as Escrituras e a Soberania Divina (1960), A Epístola aos Romanos , Vol I, Capítulos I-VIII (1960) e A Expiação (1976 - publicado após a sua morte).

Em 8 de Março de 1975, o Professor John Murray entrou no descanso do seu Senhor.

 

 


Traduzido por: Felipe Sabino de Araújo Neto.

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