O Espírito e o Corpo

por

Sinclair B. Ferguson

Explorar o ministério do Espírito equivale, em alguns aspectos, a escalar uma alta montanha. Pelo prisma de quem escala, um pico mais baixo é escalado somente para revelar-se que o topo está ainda por escalar. De uma forma análoga, a regeneração individual envolve uma transformação pessoal radical; ver, porém, apenas isso, seria perder de vista o pleno escalar da operação do Espírito e sentir-se satisfeito com a visão dos declives mais baixos. Pois a regeneração pessoal é apenas um aspecto de uma nova criação que está ainda por ser consumada. Como já observamos, visto achar-se radicada na ressurreição de Cristo, essa nova criação é inseparável dela e deve ser vista à luz dela, como uma obra mais ampla, mais incorporada de renovação, na qual o Espírito de Cristo se acha engajado ao longo de toda a história.

O programa de Cristo é sumariado nas palavras: “Edificarei a minha igreja; e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18). No meio do conflito escatológico (indexado pelo verbo katischyo, “prevalecer”), Cristo está chamando a si não meramente indivíduos, mas uma ekklesia, uma assembléia inteira.

Este caráter corporativo da obra de Cristo é expresso em diferentes graus em algumas das analogias usadas pelo Novo Testamento para descrever os seguidores de Jesus. São ovelhas de um rebanho, ramos de uma oliveira, amigos do noivo, pedras de um templo, o novo Israel. Daí as exortações do Novo Testamento que, embora destinadas a serem tomadas a efeito individualmente, são geralmente expressas no plural para toda a igreja. O Espírito não isola indivíduos, mas cria uma nova comunidade.

Na teologia paulina nenhuma analogia é mais central do que aquela que somente ele emprega: a igreja é o corpo de Cristo no qual somos introduzidos pelo ministério do Espírito:

“ Porque, assim o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo. Pois, em um só Espírito todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito” (1 Co 12.12-13).

Aqui, o ingresso no corpo de Cristo, que é constituído de muitas partes, é efetuado pelo batismo do Espírito. Duas perguntas vêm a lume imediatamente: (1) O que Paulo quer dizer quando fala da igreja como o “corpo” de Cristo, no qual as barreiras sociais e culturais entre as pessoas são derrubadas? (2) Como o Espírito se envolve no batismo neste corpo

O Corpo de Cristo

A primeira destas perguntas tem atraído uma pequena montanha de discussão no empenho de traçar a origem do uso que Paulo faz da analogia do corpo na esperança de esclarecer o significado que ele soma ou une a ela. Até certo ponto, tal empenho pode muito bem ser um falso esporte; o significado textual não pode derivar-se meramente da origem de um termo ou da inspiração para o mesmo. Na melhor das hipóteses, a análise das várias formas nas quais o conceito de corpo poderia ter-se originado no mundo do pensamento Paulino, nos proveria com uma série de possibilidades.

A literatura do Império Romano nos fornece os precursores do conceito do corpo humano sendo usado como uma analogia para um grupo de pessoas unido em importantes aspectos. A mais conhecida destas é a fábula de Menenius Agrippa (c. 494 a.C.), a qual Livy registra em sua History of Rome. Menenius Agrippa apela à plebe com o fim de refrear uma rebelião, valendo-se do uso de uma fábula na qual as várias partes de um corpo, invejosas do estômago, recusam-se a alimentá-lo – resultando no definhamento de todo o corpo. [1]

Outros têm apelado para a teologia sacramental de Paulo e para a participação dos cristãos no pão partido que é simultaneamente o emblema do corpo de Cristo e da união de seu povo. Mais recentemente, tem-se feito apelo para um fenômeno coríntio local: escavações arqueológicas do Asclepion coríntio têm desenterrado representações de terracota de várias partes da anatomia humana, presumindo-se representar partes do corpo curado pelo filho de Apolo, Asclepius, o deus da cura do panteon grego. [2] Mas, em vista do uso que Paulo faz da analogia em outras partes, esta conexão parece ser completamente inverossímil.

A explicação mais simples, e talvez a melhor, da origem da metáfora, consiste em que a idéia de uma comunidade como um “corpo” estava “no ar”. Paulo a emprega em método próprio e distintivo, para seus próprios propósitos. Em particular, o “corpo” que ele descreve é singular, porque é o corpo de Cristo. Ele é sua cabeça e governante. Assim como ele é a cabeça sobre o cosmos (Ef 1.22) e o dirige segundo seus propósitos providenciais, assim ele é a cabeça sobre a igreja (Cl 1.18) e a dirige segundo os princípios de seu reino. Aqui, “cabeça” (kephale) contém uma conotação relacional, não anatômica. Cristo é o Senhor e governante tanto do kosmos quanto da ekklesia. Indivíduos são introduzidos na igreja, a qual é o corpo de Cristo, que é a sociedade daqueles que, em virtude de sua união com Cristo, pela graça e fé, são inextricavelmente unidos num só feixe de vida; pertencem uns aos outros porque pertencem a Cristo, seu Senhor e cabeça. [3]

O Batismo com o Espírito

Qual é, portanto, a natureza da atividade do Espírito no batismo deste corpo?

O batismo e o Espírito se relacionam mutuamente em sete ocasiões no Novo Testamento. Seis delas se referem claramente ao Pentecostes, e fazem isso em linguagem virtualmente idêntica no que diz respeito ao papel do Espírito:

Mateus 3.11 en pneumati hagio
Marcos 1.8 en pneumati hagio
Lucas 3.16 en pneumati hagio
João 1.33 en pneumati hagio
Atos 1.5 en pneumati ... hagio
Atos 11.16 en pneumati agio

Em cada um desses casos, o batizador é sempre Jesus Cristo. O Espírito é o instrumento. A sétima referência é:

1 Coríntios 12.13 en pneumati.

Qual é a força da preposição en nesta afirmação? Ela indica que o Espírito é o agente (“pelo Espírito”), ou o instrumento (“com/no Espírito”) deste batismo? A resposta pode sucessivamente derramar luz sobre as perguntas adicionais: Quando este batismo ocorre? O que ele envolve?

Embora en possa ser traduzida como “por”, “com” ou “em”, a conclusão de que Paulo vê o Espírito como o instrumento (“com/em o Espírito”) e não o agente (“pelo Espírito”) é irresistível. Porque, a linguagem, Espírito-batismo, permanece essencialmente imutável sempre que a encontramos, e assim o Novo Testamento consistentemente vê Cristo, não o Espírito, como o batizador: “ele batizará ...”.

Em 1 Coríntios 12.13, a tese de Paulo é que o corpo é um só, porque todos os seus membros participam do único Espírito que receberam simultaneamente com sua incorporação no corpo de Cristo. Há dois aspectos de uma e a mesma realidade. Conseqüentemente, fica claro que Paulo não se refere nem a uma obra da qual o Espírito é o autor, nem a uma experiência pós-conversão do Espírito, mas à recepção inicial do Espírito, o rio de água viva da qual os crentes podem beber sem jamais sofrer sede novamente (cf. Jo 4.13-14; 7.37-39).

Todos os crentes são assim batizados por Cristo num só corpo; o Espírito é o instrumento desse batismo. A vida, porém, neste corpo é governada pelos meios que Cristo estabelece para o desenvolvimento e crescimento de seu povo: particularmente pelas ordenanças do batismo, da Ceia do Senhor e do ministério.

O Batismo

A administração da água batismal é um sinal de inauguração. Esse era o caso do batismo de judeus prosélitos, embora tenha havido tanta discussão se ele é ou não anterior aos Evangelhos. [4] Com certeza é verdade que o batismo de João marcou a inauguração do genuíno arrependimento em resposta à vinda do reino. O batismo de Jesus pelas mãos de João ato contínuo marcou sua entrada pública na era messiânica e no ministério que atingiria seu ponto central no batismo da cruz (cf. Lc 12.50).

O batismo com o Espírito nos introduz na vida de união com Cristo. O batismo com água caracteriza isso externamente: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão de vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2.38). Aqui, arrependimento, água batismal, o perdão dos pecados e o dom do Espírito são vistos como aspectos correlativos da única realidade do ingresso em Cristo, e assim em (a comunhão de) o nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (Mt 28.19).

De tempos em tempos na história da igreja tem-se formulado a seguinte pergunta: Em vista do caráter espiritual e interno do novo pacto em Cristo, tais ritos externos são consistentes com sua novidade? Isso não avilta a plenitude do ministério do Espírito? Por isso, em pleno dilúvio do ensino da “luz interior” do século dezessete, Robert Barclay comenta: “Este batismo é simplesmente uma coisa espiritual ... do qual o batismo de João era uma figura, o qual fora ordenado por certo tempo e não continuou para sempre.” [5]

À guisa de contraste, contudo, a igreja primitiva continuou com a prática do batismo com água no espírito de Mateus 28.18-20, e fez cuidadosa distinção entre batismo com água e batismo com o Espírito (At 10.47; cf. 11.16). Aqui, Barclay e aqueles que compartilharam de sua perspectiva deixaram de reconhecer as estruturas teológicas que reforçavam o rito externo e físico do batismo. Tanto o batismo quanto a Ceia do Senhor funcionavam exatamente da mesma maneira que os sinais (palavras) usados nas expressões verbais do evangelho; neles e através deles Cristo se faz conhecido. Aliás, em vez de tornar-se obsoleto na era que é dominada pelo Espírito de Cristo, o batismo e a Ceia do Senhor ilustram ainda o modo no qual o evangelho se adequa à nossa condição humana, assim como se adequa à nossa condição pecaminosa. Daí, a Grande Comissão implica que o batismo deve ser administrado à medida que os discípulos de Cristo se preparam, e ele mesmo continua a estar presente com a igreja (Mt 28.18-20).

O Espírito de Deus age como o vínculo interior de todos os relacionamentos pactuais de Deus com seu povo. Cada pacto em que ele entrou com eles foi confirmado por um sinal específico, selando a promessa entesourada na palavra pactual. O arco-íris, no caso do pacto noéico, e a circuncisão, no caso do pacto abraâmico, são ilustrações claras (Gn 9.8-17; 17.1-4). Estes simbolizam a promessa pactual e funcionam como sinais físicos que a confirmam para a fé. Embora a linguagem de “sinal e selo” seja usada exclusivamente para a circuncisão (Rm 4.11), ela descreve bem o modus operandi de todos os sinais pactuais. Assim, por exemplo, Noé pôde vislumbrar o sinal pactual depois de uma tempestade e assegurar-se de que Deus estava recordando de sua promessa pactual (Gn 9.12-17). Além da promessa propriamente dita, o sinal funcionou como uma confirmação (selo) física e visível dela.

Segundo o próprio testemunho de João, a função central de seu batismo, em distinção de sua significação existencial e pessoal para os que o recebiam, era prover o contexto histórico no qual o Messias se revelaria: “Eu mesmo não o conhecia, mas a fim de que ele fosse manifestado a Israel, vim, por isso, batizando com água” (Jo 1.31). Esta afirmação muitíssimo negligenciada, tomada com o testemunho dado sobre Jesus em seu batismo (Mc 1.11) e sua própria visão da cruz como o cumprimento de tudo o que seu batismo significava (Lc 12.50; Mc 10.38-39), sublinha que, mesmo no caso de Jesus, a água batismal serviu para indicar seu significado (sinal) interior e confirmar-lhe, com isso, como ele o recebeu (o selo). Seu batismo foi assistido pela palavra do Pai que explica sua significação, e pelo Espírito do Pai que veio equipá-lo para levar o que era significado à plena realização em seu verdadeiro e final batismo na cruz, como o forjamento de um novo pacto em seu sangue, em cujo coração ficava o dom do Espírito (Ez 36.26-27).

Os dois eventos no Antigo Testamento que são considerados como “batismos” pelo Novo Testamento, ou, pelo menos, como análogos ao batismo, ambos têm a forma de testes com água através dos quais o eleito de Deus desfrutava de livramento, enquanto que outros se enquadravam numa maldição. Esse foi o caso de Noé e de sua família (1Pe 3.18-21), e de Moisés e os israelitas (1 Co 10.2). [6]

O verdadeiro batismo de Jesus na cruz também tem o caráter de um teste com água. O Salmo 69 é uma descrição justamente de tal teste com água:

Salva-me, ó Deus,
porque as águas me sobem até à alma.
Estou atolado em profundo lamaçal,
que não dá pé;
estou nas profundezas das águas,
e a corrente me submerge.
(Sl 69.1-2)

Este Salmo é considerado no Novo Testamento como messiânico em seu caráter, e suas palavras são colocadas nos lábios de Jesus (Sl 69.9 em Jo 2.17 e Rm 15.3; 69.4 em Jo 15.25; 69.25 em At 1.20; 69.22-23 em Rm 11.9-10). Na cruz, sua grande prova simbolizada por seu batismo com água se tornou realidade. O sinal administrado no Jordão se cumpre na esmagadora força da tempestade da ira divina que desce sobre sua cabeça na cruz. Ele experimenta uma dor e desolação tais que, por si mesmas, quase o matam (Mc 14.33-34). Aqui, o simbolismo de sua circuncisão (Lc 2.21) e de seu batismo se mistura (cf. Cl 2.11-15). Cristo é “eliminado da terra dos viventes” (Is 53.8). É oprimido (Is 53.7-8) quando a “iniqüidade de todos nós” é posta em seus ombros (Is 53.5-6, 8, 10).

Por esse meio, o perdão e a salvação são trazidos a nós pelo Espírito. Cristo sofreu a maldição pactual para que a bênção dada a Abraão pudesse cumprir-se no dom do Espírito para os que crêem (Gl 3.13-14).

O batismo do novo pacto é batismo no nome de Jesus, ou seja, ele significa e sela a substância da fé-união com Cristo para a mesma fé que nos une a ele. A partir dele, portanto, a fé evoca tudo o que é significado e selado pelo batismo com água. Desse modo, o Espírito abre nossos olhos para o significado interior do batismo de Jesus na cruz em nosso favor.

A obra do Espírito em generalizar e ativar a fé é, portanto, o tertium quid entre o sinal e a realidade que ela significa. Isso está implícito no ensino neotestamentário; está pressuposto em todas as afirmações do Novo Testamento sobre o batismo.

O ensino de Paulo em Romanos 6 é um primordial exemplo deste princípio. Todos quantos têm sido batizados em Cristo Jesus são encorajados a pensar em si mesmos como batizados em sua morte, sepultados com ele e ressuscitados para novidade de vida no poder de sua ressurreição.

Naturalmente, os intérpretes visam a sinalizar suas afiliações eclesiásticas aqui assumindo, ou quase, um sacramentalismo, ou, à guisa de reação, insistindo que, o que Paulo tem em vista não é o batismo com água, mas o batismo com o Espírito. Tertium non datur; não se permite uma terceira opção. Mas, seria perder o fio do ensino geral do Novo Testamento, imaginar que o rito em si mesmo, à parte da fé, efetua o que ele significa. Pressupõe-se um tertium quid; há uma terceira possibilidade: o ministério do Santo Espírito em unir-nos a Cristo. Como resultado, através do batismo, o Espírito ilumina para a fé o significado da união com Cristo e sua significação para nós (“Naquele dia compreendereis que ... estais em mim, e eu em vós” (Jo 14.20). Assim, há um paralelo direto entre seu ministério em relação à palavra e seu ministério em relação ao sacramento. Ambos são sinais objetivos; em ambos os casos, o Espírito desvenda e aplica seu significado, e ele efetua nos crentes a realidade para a qual eles apontam.

O batismo é, reiteradas vezes, visto como se fosse primordialmente um espelho de nossa experiência espiritual da conversão, e como se o cerne de sua significação fosse o testemunho à nossa fé em Cristo. Ele é assim interpretado como um sinal de nossa resposta ao evangelho na conversão. Mas essa não é a perspectiva neotestamentária, e minimiza o ministério iluminador do Espírito em relação ao batismo, para não mencionar a minimização correspondente da bênção do batismo, já que todos os indivíduos tendem a ver nele o reflexo do topo de sua própria fé.

Ao contrário, o batismo é, primeiramente e acima de tudo, um sinal e selo da graça, da atividade divina em Cristo, bem como das riquezas de sua provisão para nós. Não é a fé que é significada ou selada. É Cristo. Ele é Aquele cuja graça divisamos na água do batismo. A fé, pois, não é selada diretamente pelo batismo. Ao contrário, o evangelho de Cristo é selado pelo sinal ao qual, quanto à promessa na palavra, a fé responde. Assim, o evangelho nos é confirmado pelo Espírito que opera com o sinal interpretado pela palavra, e, por essa confirmação, a fé propriamente dita é fortalecida e assegurada.

Portanto, no batismo, assim como na Escritura e através dela, o Espírito dá testemunho a Cristo, toma do que lhe pertence e o revela a seu povo, vestido com as roupagens de seu ministério messiânico. A palavra nunca fracassa, mas cumpre sua função, quer em transformar ou em endurecer (Is 55.11; Mc 4.10-12). Semelhantemente, os sacramentos do evangelho, ao atender nossa resposta ao ministério do Espírito em exibir a graça de Cristo, ou se transformará em graça, ou insensibilizará o coração ante o juízo. Paulo explicitamente insinua isto quando adverte os coríntios que, ao se chegarem para a Ceia do Senhor num espírito displicente, não saem sem culpa. De fato, comem e bebem juízo (1Co 11.27-30). É tão possível transgredir contra o Espírito ao reagir-se aos emblemas do evangelho como é ao rejeitar-se a palavra do evangelho.

Um entendimento do modo como o Espírito usa o batismo (como também a Ceia) nos preserva de dois erros comuns na teologia sacramental: (1) o erro de subjetivar tanto o simbolismo do rito que nosso uso dele ressoa sobre nossas próprias ações, decisões e experiências, e assim distorce a função da fé, que é resvalar-se dos recursos e ações do crente para a graça que é sua em Cristo Jesus; e (2) objetivar tanto a eficaz da bênção do símbolo que identificamos a recepção do sinal com a recepção do que ele significa, e não dar lugar algum à fé que encontra o próprio Cristo revelado no sinal, ou ao ministério contínuo do Espírito. A eficácia do batismo e da Ceia do Senhor não pode ser separada do ministério do Espírito mais do que a eficácia do ler e ouvir as Escrituras.

A Ceia do Senhor

O batismo e a Ceia do Senhor têm importantes aspectos em comum: ambos são sinais e selos pactuais; ambos nos apontam Jesus Cristo e sua graça salvífica. Não obstante, cada um serve a sua própria função específica e tem um enfoque distintivo. O batismo é inaugural e é recebido apenas uma vez como sinal de união com Cristo. A Ceia do Senhor, em contrapartida, é um sinal de comunhão contínua com Cristo e deve ser recebida com freqüência.

Qual a razão especial do testemunho que o Espírito dá na Ceia do Senhor?

O cerne da Ceia é o pão quebrado e o vinho derramado, que servem como símbolos do corpo quebrado e o sangue derramado de Cristo. A recepção deles é um meio de comunhão com Cristo como Aquele cujo corpo foi quebrado e cujo sangue foi derramado por nós: “Porventura o cálice da bênção que abençoamos, não é a comunhão [koinonia] do sangue de Cristo? O pão que partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo?” (1 Co 10.16).

Isso, também, como o simbolismo do batismo, deve ser entendido em termos pactuais. Comer o cordeiro pascal (do qual a Ceia é o cumprimento, 1 Co 5.7-8) implicava comunhão com a bênção na morte do cordeiro, como proteção contra a maldição oriunda do juízo divino expresso na obra do anjo da morte (cf. Êx 12). Significava unir-se ao povo de Deus pactualmente redimido e abençoado.

O mesmo é válido no tocante à Ceia. Ela sela o novo pacto no sangue de Cristo. Como o cordeiro pascal, Cristo assumiu, na morte, a maldição divina em forma de juízo, a fim de compartilhar conosco as bênçãos da presença de Deus.

No cenáculo Jesus deu a seus discípulos o cálice do novo pacto de comunhão com Deus. No horto do Getsemani ele recebeu das mãos do Pai o cálice de juízo e maldição pactuais. Seu apelo: “Se possível, passe de mim este cálice”(Mt 26.39) alude ao cálice do juízo divino do qual os profetas veterotestamentários falaram (Sl 75.8; Is 51.17, 22; Jr 25.15, 17; Ez 23.31-33; Hc 2.16 – passagens destinadas a leitura penitencial). Ao beber o cálice, Jesus submeteu-se à maldição do pacto divinamente designada, morrendo em trevas (Mt 27.45; cf. Gn 15.12), em fome, nudez, pobreza e sede (cf. Dt 28.45-48). Ele foi esmagado pela experiência de ser o maldito pendurado em madeiro (Gl 3.13). Ele sentiu-se abandonado por Deus, ferido e oprimido por ele (Is 53.4-6, 10; Mt 27.46).

Mais tarde, após sua ressurreição, ele exibiu a seus discípulos suas mãos e seus pés (Lc 24.37). É com o Cristo crucificado e agora ressurreto que eles tinham comunhão. Ele foi reconhecido no partir do pão.

Portanto, a dinâmica fundamental do pacto divino é operativa: Deus leva o maldito juízo a seu próprio coração; os que crêem recebem, por sua vez, a bênção pactual através da fé, que é, em essência, comunhão com o Cristo crucificado, ressurreto e exaltado.

Deve ficar claro agora por que o papel do Espírito é tão vital na Ceia. Somente entendendo sua obra é que podemos deixar de cair nos equívocos que levaram tanto aos católicos (ex opere operato) quanto a evangélicos (memorialistas) a entenderem mal a Ceia. Não é pela administração da igreja, ou meramente pela atividade de nossas memórias, mas pela operação do Espírito que desfrutamos da comunhão com o Cristo crucificado, ressurreto e agora exaltado. Porquanto Cristo não está localizado no pão e no vinho (ponto de vista católico), nem está ausente da Ceia como se nossa suprema atividade fosse lembrar-nos dele (ponto de vista memorialista). Ao contrário, ele é conhecido através dos elementos, por intermédio do Espírito. Há uma genuína comunhão com Cristo na Ceia. Assim como na pregação da Palavra ele se faz presente, não na Bíblia (localmente), nem pelo crer, mas pelo ministério do Espírito, assim ele também se faz presente, na Ceia, não no pão e no vinho, mas pelo poder do Espírito. O corpo e o sangue de Cristo não se acham encerrados nos elementos, já que ele está à destra do Pai (At 3.21); mas, pelo poder do Espírito, somos introduzidos à sua presença e ele se põe entre nós.

Neste contexto, é difícil resistir à idéia de que é para o ministério do Espírito na Ceia que João aponta quando registra as palavras de Jesus à igreja de Laodicéia: “Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com ele e ele comigo” (Ap 3.20). Porventura isso não aponta para o fato de que João cria que a igreja poderia desfrutar com ele, quando estava “no Espírito no dia do Senhor” (Ap 1.10)?

Ao longo da história os teólogos da igreja têm-se esforçado por sustentar esta perspectiva. Isidoro de Seville (560-636), por exemplo, parece ter enfatizado que o Espírito Santo faz o corpo de Cristo presente aos crentes, prendendo-se, assim, ao corpo de Cristo para que ele possa mediar o virtus ou o poder da Ceia aos que a recebem com fé. Ratramus de Corbie (morto em 868), em sua celebrada controvérsia sobre a presença de Cristo na Ceia do Senhor com Paschasius Radbertus (morto em 865; às vezes considerado como o teólogo da transubstanciação), semelhantemente procurava preservar o entendimento da real presença de Cristo como sua presença por intermédio do Espírito.

Provavelmente, nenhum teólogo se esforçou mais para expressar este mistério do que João Calvino. E no entanto, mesmo em suas expressões mais fortes do significado da Ceia, permanece a admissão de mistério:

E ainda que pareça incrível que a carne de Cristo, tão afastada de nós pela distância, chegue até nós, fazendo-se nosso alimento, pensemos até que ponto a oculta virtude do Espírito excede e supera nosso entendimento, e quão vã e louca coisa é querer medir sua imensidão com a nossa medida. Assim, pois, o que nosso entendimento não pode compreender, a fé o recebe: que o Espírito verdadeiramente junta as coisas que permanecem afastadas, e Jesus Cristo assegura e sela na Ceia esta participação de sua carne e de seu sangue, pela qual faz fluir e transfere para nós sua vida, nem mais nem menos como se entrasse em nossos ossos e em nossa medula. E não nos oferece um sinal vazio e sem valor, senão que nos mostra nele a eficácia de seu Espírito, cumprindo o que promete. E, verdadeiramente, oferece e dá a todos os que tomam parte neste banquete espiritual, a realidade nele significada, ainda que somente os fiéis a recebam com proveito, posto que recebem tão imensa liberalidade do Senhor com verdadeira fé e profunda gratidão. [7]

Tal pensamento (assim chamado “virtualismo” em virtude de sua ênfase sobre o virtus da ascendida humanidade de Cristo) permeia a doutrina eucarística de Calvino. Cristo vem a seu povo no mesmo corpo no qual encarnou-se, foi crucificado, sepultado e ressuscitou, subiu e está agora glorificado. A vida é assim “infusa em nós a partir da substância de sua carne”. [8]

A linguagem de Calvino tem evocado radicalmente diferentes reações mesmo dentro da tradição que traça sua linhagem até ele. No século dezenove, teólogos tais como Charles Hodge e R. L. Dabney, denodados defensores da teologia calvinista nos Estados do norte e do sul da América, e William Cunningham, o prendado teólogo escocês, todos reagiram a tal ensino negativamente, questionando-o como, ou seriamente equivocado, ou simplesmente incompreensível. Por outra parte, à guisa de contraste, ele tem sido recebido como, virtualmente, a mais profunda visão sacramental de Calvino. [9]

Não há dúvida de que a linguagem de Calvino é muito mais realista do que costuma ser o ensino evangélico sobre a Ceia do Senhor; e, conseqüentemente, sua exposição é lida como sendo excessivamente material. Ora, o mesmo poderia seguramente ser dito sobre a linguagem de João 6.51-58 e, para essa matéria, sobre 1 Coríntios 10.16; devemos ser prudentes para que a paridade do raciocínio não implique que o desconforto produzido pela linguagem de Calvino dissimule o desconforto produzido pela linguagem da própria Escritura. O próprio Calvino insistia em que nem todos os que sustentam comer e beber de Cristo de forma real sustentam comer e beber de forma carnal.

O que se tem, amiúde, negligenciado neste contexto é o papel e o poder que Calvino atribui ao Espírito Santo. Fundamental ao seu pensamento sobre a Ceia é a obra da correlação entre Cristo subindo e o Espírito descendo. O Espírito desce a fim de elevar-nos à comunhão com Cristo (cf. Cl 3.1-4). Semelhantemente, na Ceia, o Espírito vem “fechar a fenda”, por assim dizer, entre Cristo no céu e o crente na terra, e produzir comunhão com o Salvador exaltado.

Mas a pergunta que Calvino formula é: “Com que Cristo o crente tem comunhão à mesa?” Sua resposta é: “O Cristo vestido da humanidade na qual sofreu, morreu, foi sepultado, ressuscitou e na qual ele agora subiu em glória. Não há nenhum outro Cristo além do Verbo encarnado (Logos ensarkos). Não há nenhuma outra via da graça senão através da união e comunhão com ele como ensarkos. Na Ceia, pois, comungamos com a pessoa de Cristo no mistério da união hipostática; fazemos isso espiritualmente, ou seja, pelo poder do Espírito.

Calvino não precisa ser interpretado como a dizer mais do que isso. Nós mesmos não dizemos menos; do contrário, ou negaríamos a realidade da koinonia de que fala o Novo Testamento (1 Co 10.16), ou, muito mais seriamente, nos acharíamos negando a realidade contínua da humanidade do Cristo glorificado. A dificuldade aqui jaz não tanto no que Calvino diz em seu ensino sobre a Ceia, mas na questão de que muito pensamento cristológico não leva em conta adequadamente o fato de que não existe outro Cristo. Não leva plenamente a sério a veracidade da ressurreição e ascensão físicas de Cristo. Uma vez sendo isto apreendido, a teologia eucarística de Calvino se torna menos desconcertante, ainda que a verdade para a qual ela aponta (como o próprio reformador admite) permanece um mistério. Mas o mistério não é maior aqui do que noutros aspectos da obra do Espírito.


Qual, pois, é o papel do Espírito na Ceia?

Pode ser satisfatoriamente descrito nas palavras de João 16.14. O Espírito tomará o que é de Cristo e “o fará conhecido” a seus discípulos. Ele faz isso fundamentalmente através da revelação apostólica, de modo que nada é revelado na Ceia que já não se tenha feito conhecer nas Escrituras. Na Ceia, porém, há (1) representação visual e (2) enfoque simples e específico sobre a carne partida e o sangue derramado de Cristo. Isso nos leva ao cerne da questão, e de fato ao centro do ministério do Espírito: iluminar a pessoa e a obra de Cristo. Nenhuma nova revelação é dada; nenhum outro Cristo é feito conhecido. Mas, como disse bem Robert Bruce (1554-1631), embora não obtenhamos um Cristo diferente e melhor na Ceia do que o Cristo obtido na Palavra, podemos obter melhor o mesmo Cristo que o Espírito ministra pelo testemunho dos emblemas físicos sendo associados à Palavra. [10]

Escritores cristãos no passado, sem dúvida influenciados por uma interpretação alegórica do Cântico de Salomão, empregaram a linguagem do namoro, do amor e matrimônio, para descrever a relação entre Cristo e seu povo. Falaram do “ósculo” de Cristo. Este é o ministério secreto do Espírito. Assim como o emblema ou a ação física de um ósculo comunica (bem como simboliza) amor, assim os emblemas físicos que apontam para um Salvador crucificado e ressurreto são empregados pelo Espírito operando no coração para comunicar ao povo de Cristo o amor que ele tem por eles. Como confirmação da graça e fé, a Ceia é usada nas mãos do Espírito para ministrar paz, alegria, amor e segurança. Aqui pode haver “alegria indizível e cheia de glória” (1Pe 1.8), uma prelibação concedida pelo Espírito da plenitude da presença de Cristo, a qual o crente antecipa quando proclama a morte de Cristo “até que ele venha”. Então a obra regeneradora do Espírito será consumada (1 Co 11.26). Então, quando o Espírito disser: “Vem!” (Ap 22.17), a plena realidade expressa pelos símbolos estará presente, e se tornarão, como o edifício do templo, redundantes (Ap 21.22).

NOTAS:

[1] - Livy, History of Rome, 2.32.

[2] - A. E. Hill, “The Temple of Asclepius: An Alternative source of Paul’s Body Theology?” Journal of Biblical Literature 99 (1980), pp. 297-309; J. Murphy-O’Connor, St Paul’s Corinth: Texts and Archaeology (Delaware: Michael Glazier, 1983), pp. 161-167.

[3] - Para uma recente discussão, ver Gosnell L. O. R. Yorke, The Church as the Body of Christ in the Pauline Corpus: A Re-examination (Lanham, MD: University Press of America, 1991).

[4] - Ver G. R. Beasley-Murray, Baptism in the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1962), pp. 18ss. para discussão.

[5] - Robert Barclay, The Confession of the Society of Friends, Proposition XII.

[6] - Ver M. G. Kline, By Oath Consigned (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1969), pp. 65ss.

[7] - João Calvino, Institutas, ed. J. T. McNeill, tr. F. L. Battles (Londres: SCM Press, e Filadélfia: Westminster, 1961), IV.17.10.

[8] - Ibid. IV.17.4.

[9] - Por exemplo, pelo teólogo de Mercersburgo, J. W. Nevins, “The Doctrine of the Reformed Church on the Lord’s Supper”, The Mercersburg Review (1850), pp. 421-549. Cf. T. F. Torrance em sua introdução a Robert Bruce, The Mystery of the Lord’s Supper (Edinburgo: James Clark, 1958).

[10] - Ver Robert Bruce, op. cit. pp. 64, 85.


Fonte: Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, Editora Puritanos.
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