Calvinismo e Democracia

por

Renato Pompeu

 

Calvino, seus discípulos e o mundo moderno: democracia e propriedade como deveres religiosos - O líder protestante francês estabeleceu as bases a partir das quais se desenvolveu a ética do capitalismo democrático, em que a justiça social é deixada a Deus

Mais do que qualquer outra personalidade isolada, o líder protestante francês João Calvino (1509-1569, de nome original Jean Calvin – ou melhor, Cauvin – e conhecido nos países anglo-saxões como John Calvin) encarnou as principais aspirações ideológicas do Ocidente contemporâneo, em que se misturam princípios das éticas do cristianismo, do capitalismo e da democracia. No entanto, o que chamamos de calvinismo, a principal corrente ideológica dos Estados Unidos desde sua formação, não consta inteiramente da obra de Calvino. Boa parte das teses do calvinismo foi, na verdade, desenvolvida não por ele e sim por seus seguidores.

Na verdade seu sobrenome era Cauvin; ficou conhecido como Calvin a partir de seus textos em latim, em que assinava Calvinus. Nasceu em Noyon, cidade da região francesa da Picardia em que seu pai era secretário do bispo. Destinado a ser padre e subvencionado por benefícios (hoje se diriam bolsas) do bispado, ele foi estudar em Paris em 1523, mas cinco anos depois, já com o mestrado em artes (humanidades), seu pai decidiu que ele seria advogado e o mandou estudar Direito nas cidades de Orleãs e Bourges.

Seu pai, nessa época, se envolveu numa complicada questão a respeito de uma propriedade rural reclamada pelo bispado e acabou sendo excomungado. Morreu logo depois, com o que o filho, em 1531, voltou a Paris e escreveu um estudo sobre o pensador romano Sêneca, que levava uma vida algo debochada mas, como escritor, era estóico e passou a ser muito considerado pelos eruditos cristãos.

Aos 24 anos, Calvino, em 1533, foi acusado de heresia, juntamente com outros alunos da Universidade de Paris, por estar estudando as obras de Erasmo e Lutero (já discutidos na série). Fugiu da cidade, abandonou o catolicismo e aderiu ao protestantismo, mas só meses depois, já em 1534, é que renunciou aos benefícios do bispado de sua cidade natal. Sem que os biógrafos tenham esclarecido como ele garantiu sua sobrevivência nos anos seguintes, Calvino ficou estudando profundamente a Bíblia e os escritos dos Padres da Igreja (os eruditos cristãos dos primeiros séculos) e também dos principais autores protestantes de então.

Em 1536, com apenas 27 anos, ele publicou, em latim, na Basiléia, Suíça, a primeira edição de sua monumental obra Instituições da Religião Cristã, tendo como prefácio uma carta-aberta ao rei Francisco I da França, pedindo o fim da perseguição aos protestantes. O êxito da obra foi imediato, seguindo-se várias edições, sempre ampliadas.

Estabeleceu-se em Genebra, onde um movimento popular havia expulsado o príncipe-bispo que governava a cidade. Esta foi proclamada um Estado “livre e independente” (ou seja, a caminho da instituição de um regime republicano e democratizante numa Cidade-Estado), que em 1535 proibiu o culto católico-romano. Mas Calvino, em 1538, foi expulso de Genebra, pois seu Conselho (Parlamento) rejeitou sua proposta de “Instrução e Confissão de Fé Segundo os Usos da Igreja de Genebra”.

Dali ele foi para Estrasburgo, então cidade alemã sob o controle do Sacro Império Romano-Germânico, onde introduziu a liturgia em francês na Igreja fundada por seus compatriotas protestantes ali asilados. Participou em várias cidades alemãs de reuniões entre protestantes e católicos, até se convencer que a reunificação era uma causa perdida. Em 1540, aos 31 anos, casou com Idelette de Bure, viúva de um correligionário, a qual porém morreu nove anos depois.

Seus adeptos haviam então tomado o poder em Genebra, para onde foi chamado em 1541, com liberdade para instaurar um regime protestante segundo suas concepções. Inspirou-se no famoso livro Utopia, do inglês Tomás Mórus (Thomas More). Estabeleceu a estrutura organizacional até hoje vigente nas Igrejas calvinistas, com quatro níveis: 1) doutores, eruditos em textos sagradores; 2) pastores, pregadores nas igrejas; 3) anciães, que transmitem a doutrina ao grande público e velam por seu comportamento; 4) diáconos, que promovem a caridade e velam pelo bem-estar material da comunidade.

Os pastores e anciães formam um Consistório com poderes, inclusive de excomunhão, para disciplinar a ética e o comportamento do povo. Calvino, como o único doutor da Igreja de Genebra, era também o coordenador da Companhia de Pastores e trabalhava ainda com os anciães. O Consistório acabou se tornando o governo da cidade e instaurou um regime de terror, inclusive com condenações à morte, contra os que não seguiam as novas linhas religiosas.

Esse regime era uma espécie de teocracia democrática excludente, democracia da qual só participavam os fiéis. Algo semelhante, mas muito mais violento e repressivo, à democracia instaurada nos Estados Unidos, que sempre excluiu os escravos e durante séculos encarou com desconfiança os não-protestantes. Até hoje nos EUA se fazem exigências para conceder o título de eleitor que não existem, por exemplo, no Brasil, onde basta completar 16 anos para se tornar eleitor). Uma vez consolidado o seu poder, Calvino se dedicou até sua morte a organizar uma rede clandestina de seus adeptos nos países dominados pelo catolicismo.

Suas principais doutrinas incluem a predestinação, ou seja, a noção de que Deus escolhe os que vão ser salvos, mas para ele esse era um mistério incompreensível, diante do qual se tinha de aproximar “com medo e tremor”. De todo modo, a “vida santa” era um sinal de que Deus tinha escolhido a pessoa para ser salva. Para Calvino, ainda mais, o mundo, tendo sido criado por Deus, a Ele pertencia e estava destinado a ser, progressivamente, o Reino de Cristo, cuja instauração era uma das obrigações dos cristãos.

Para se salvar do pecado original, não basta se apoiar nos méritos como pessoa e sim é preciso se entregar a Cristo e à graça de Deus. A vida, assim, se torna ao mesmo tempo uma luta contra o Mal e uma peregrinação. Seus discípulos se espalharam pela Inglaterra e suas colônias americanas, a Escócia, Holanda e partes da Alemanha, Europa Central e França (o luteranismo triunfara em outras regiões da Alemanha e na Escandinávia, enquanto o catolicismo se manteve dominante nos países latinos, na Europa Central, partes da Alemanha, Irlanda e Polônia.)

Para distinguir-se das Igrejas Luteranas e da Igreja Católica-Romana, o conjunto das Igrejas calvinistas adotou inicialmente o nome de Igrejas Reformadas, como até hoje acontece na Holanda. No entanto, os discípulos foram levando às últimas conseqüências as concepções de Calvino. Suas doutrinas da predestinação (a escolha por Deus dos que vão ser salvos), de que a “vida santa” é um sinal dessa predestinação e de que o mundo, criado por Deus, a ele pertence, ou seja, é também santo, acabaram sendo fundidas na chamada ética cristã do capitalismo.

Segundo essa ética calvinista, que não era a de Calvino, mas que move grande parte dos magnatas americanos, e sempre moveu particularmente os pequenos empresários, o êxito neste mundo, que é santo, é um sinal da salvação eterna. Mais exatamente, enriquecer licitamente é um imperativo religioso, pois a salvação da alma começa já neste mundo. Tais concepções tiveram muita importância no desenvolvimento econômico primeiro da Holanda e depois da Inglaterra, Escócia e Estados Unidos, e estão ligadas ainda ao desenvolvimento de uma ideologia propriamente capitalista na Escócia, como mostra o exemplo do filósofo Adam Smith (a ser discutido ainda na série).

Não convém, porém, exagerar esse ponto, pois, na verdade, as pesquisas indicam que as grandes famílias burguesas, tanto na Holanda como na Inglaterra – e em grau menor na Escócia e nos Estados Unidos – tendiam muito mais a ser agnósticas do que praticantes de alguma religião. (Os agnósticos se dividem entre os que acreditam que Deus existe, mas é inalcançável pelos seres humanos e entre os que não sabem dizer se Deus existe ou não.)

Mas, de todo modo, os calvinistas (em grau menor, o próprio Calvino) tiveram papel decisivo, além de na formação da ética capitalista, também na ideologia da democracia. Lendo a Bíblia, puderam verificar que, no começo, os cristãos não eram governados por bispos nomeados por uma autoridade central, o patriarca (o patriarca de Roma se tornou o papa católico-romano), e sim por presbíteros (ou seja, padres ou pastores) escolhidos pela comunidade a que serviam. É isso que consta nos Evangelhos, onde quando se fala de bispos se fala de bispos eleitos, e não o governo episcopal (por bispos nomeados) instituídos séculos depois e adotado pelas várias Igrejas Católicas e ainda pela Igreja Anglicana, Igrejas Luteranas e outras igrejas protestantes.

Os discípulos de Calvino introduziram, ou reintroduziram, o presbiterianismo. Assim, às Igrejas Reformadas se acrescentaram as Igrejas Presbiterianas, como a da Escócia. Nelas, os doutores, pastores, anciães e diáconos são eleitos. Como, além da Igreja, para os calvinistas o mundo também é santo, com o correr dos tempos eles quiseram estender essa democracia do governo da Igreja para o governo mundano.

A grande maioria dos autores da Constituição dos Estados Unidos, assim, foi constituída de presbiterianos. Essa origem presbiteriana do regime democrático é uma das razões pelas quais a democracia foi secularmente encarada com desconfiança pela Igreja Católica-Romana. Nesta, a democracia mundana só alcançou plena legitimação sob o atual papa João Paulo II, em grande parte em razão da luta que teve de travar contra o comunismo. O papa, porém, sempre reitera que não pode haver democracia dentro da Igreja, pois esta se baseia numa “verdade que só pode vir de Deus”.

Nas Igrejas Luteranas, a democracia mundana também só recentemente se tornou um ponto central, bem mais cedo na Escandinávia do que na Alemanha. Nas Igrejas Católicas Ortodoxas a democracia mundana ainda é vista com desconfiança. De todo modo, a democracia capitalista, apesar de suas evidentes desigualdades e gritantes injustiças e das multidões que mantém sempre excluídas de seus benefícios, ainda é, aos olhos da maioria da população mundial, o regime mais legítimo, seja como algo já constituído a ser aperfeiçoado, seja como meta a atingir. É verdade que, como aconteceu no passado, a grave crise econômica mundial dos dias de hoje pode levar a uma adesão de massa, conforme o país, a regimes autoritários de esquerda ou direita.

De todo modo, o triunfo atual da ética capitalista e democrática se deve em parte não pequena a Calvino e seus discípulos. Assim, é importante ainda ler Calvino, como seu trecho das Instituições:

Quais pessoas devem ser eleitas como bispos é um tema tratado longamente por Paulo em duas passagens (Tit. 1,7: I Tim. 3,1). A substância desses textos é que ninguém deve ser escolhido, exceto aqueles que são de doutrina sã e vidas santas, e não notórios por qualquer defeito que possa destruir sua autoridade e trazer desgraça ao ministério. A descrição de diáconos e anciães é inteiramente semelhante. Precisamos sempre levar em conta que não sejam inaptos ou incapazes para a carga imposta a eles; em outras palavras, devem ser dotados dos meios que serão necessários para cumprir seu ofício. Assim nosso Salvador, quando estava para enviar seus apóstolos, lhes forneceu as armas e instrumentos que eram requisitos indispensáveis. E Paulo, depois de retratar o caráter de um bispo bom e genuíno, adverte Timóteo para não se contaminar ao escolher uma pessoa imprópria para o ofício. A expressão “de que modo”, uso, não em referência ao ritual da escolha, mas somente ao temor religioso que deve ser observado na eleição.

Mais adiante, diz Calvino:

Vemos que o costume de Paulo era nomear bispos pelos sufrágios do povo. (...) Corretamente, portanto, Cipriano exige, como marca de autoridade divina, que o sacerdote seja escolhido na presença do povo, diante dos olhos de todos, e seja aprovado como digno e apto pelo julgamento e testemunho públicos. Na verdade, vemos que, por mandamento de Deus, a prática na eleição dos sacerdotes levitas era trazê-los à frente à vista do povo antes da consagração. (...) Vemos, então, que os ministros são legitimamente convocados, de acordo com a palavra de Deus, quando aqueles que pareciam aptos são eleitos com o consentimento e a provação do povo. Outros pastores, no entanto, devem presidir à eleição, para impedir que algum erro seja cometido pelo corpo geral, seja por leviandade, má paixão ou tumulto.

A democracia, assim, para os calvinistas em particular e os presbiterianos em geral, é um dever religioso, mas não a justiça social, pois esta deve ser deixada às mãos de Deus, que escolhe quem vai triunfar neste mundo, como sinal da futura salvação eterna no Além.

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Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor de obras em hipertexto na Internet (http://www.pompeu.com/) e, entre outros, dos livros impressos Globalização e Justiça Social, ensaio econômico; 2084 – O Admirável Mundo Neoliberal das Mulheres, ficção erótica, e Um Dia no Mundo, romance “globalizado” que se passa em todos os países do mundo e do qual já saíram dois tomos, dentro da série A Última Noite do Botequim.


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