João 1:1

por

F. F. Bruce

 


O prólogo ao quarto evangelho antecipa a temática de toda a obra [57]. A narrativa como um todo expressa a mensagem do prólogo: que na vida e ministério de Jesus de Nazaré a glória de Deus foi revelada de maneira única e perfeita. Naturalmente, esta mensagem não é exclusiva ao quarto evangelista, entre os escritores do Novo Testamento; ela é muito bem resumida na afirmação de Paulo: “O Deus que disse: De trevas resplandecerá luz , ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo” (2 Coríntios 4:6). O prólogo de João traça o mesmo paralelo entre a atuação de Deus na primeira criação e na nova criação.

O prólogo foi escrito em prosa rítmica dificilmente como poesia, como alguns pensam. Originalmente ele pode ter sido uma composição separada, que foi integrada no evangelho e recebeu dois trechos introdutórios de narrativa, os versículos 6-8 e 15, que registram o início do testemunho de João Batista. Esta sugestão e outras semelhantes (como a de que o prólogo foi escrito depois do evangelho, para lhe servir de prefácio) são especulações, na melhor das hipóteses. Com certeza, ele é obra do próprio evangelista, a julga da maneira como antecipa as diversas maneiras em que o tema principal do evangelho é apresentado nos capítulos subseqüentes. Várias palavras-chave do evangelho vida, luz, testemunho, glória (por exemplo) aparecem no prólogo. Todavia, o termo mais característico do prólogo, o “Verbo”, não aparece mais no evangelho no sentido de que apareceu no prólogo. Mesmo assim, no que diz sobre o “Verbo”, o prólogo mostra-nos a perspectiva sob a qual todo o evangelho deve ser compreendido: tudo o que foi registrado, das margens do Jordão às aparições depois da ressurreição, mostra como a Palavra eterna de Deus tornou-se carne, para que homens e mulheres cressem nele e vivessem.

1. Não é por acaso que o evangelho inicia com a mesma frase de Gênesis. Em Gênesis 1:1, “no princípio” inicia a história da primeira criação; aqui a expressão inicia a história da nova criação. Nas duas obras de criação o agente é a Palavra de Deus.

Sem dúvida, nosso termo “Verbo” é uma tradução inadequada do vocábulo grego logos, mas será difícil encontrar outro melhor. Em uma versão ou comentário escrito para eruditos pode ser suficiente manter logos sem tradução, mas este não é o caso em uma obra dirigida a leitores em geral, como a tradução de James Moffatt. A tradução de Moffatt inicia assim: “O Logos existia bem no começo”, e isto é justificado com a observação de que “Logos de qualquer modo é menos enganoso para um leitor moderno, do que Verbo”. Pode ser que Logos não seja tão enganoso para o leitor moderno, mas provavelmente lembra algo como “razão”, e isto é mais enganoso que “Verbo”. Um “Verbo” é um meio de comunicação, a expressão do que está na mente de alguém. J. B. Phillips traduz a frase assim: “No princípio Deus se expressou”; ele protege a qualidade pessoal que o evangelista credita à auto-revelação de Deus continuando: “Esta expressão pessoal, esta palavra, era com Deus...”. Phillips concorda que esta tradução não é cem por cento correta, mas diz que muitos leitores lhe têm dito que ela transmite um significado positivo, enquanto que a tradução “Verbo” (com ou sem maiúsculas) lhes parece ambígua demais [58].

Há uma passagem famosa em Faust, de Goethe, onde Faust se debate com a tradução desta frase, tentando descobrir o mot juste de logos, até que, afinal, pensa tê-lo achado: “Im Anfang war die Tat No princípio era a ação”. [59] Este não é o significado completo, mas é parte dele. Se entendemos logos neste prólogo como “palavra em ação”, estamos começando a fazer-lhe justiça.

O termo logos era conhecido em algumas escolas gregas de filosofia, onde significava o princípio de razão ou ordem imanente no universo, o princípio que dá forma ao mundo material e constitui a alma racional no ser humano. Entretanto, não devemos procurar o pano-de-fundo do pensamento e da linguagem de João no contexto filosófico grego. Mesmo assim, por causa deste contexto, logos foi uma palavra-ponte através da qual pessoas educadas na filosofia grega como Justino Mártir no segundo século, foram conduzidas ao cristianismo joanino. [60]

Não encontramos na filosofia grega o verdadeiro pano-de-fundo do pensamento e da linguagem de João, mas, sim na revelação hebraica. No Antigo Testamento, a “palavra de Deus” indica Deus em ação, em especial na criação, na revelação e na libertação.

Na narrativa da criação, no início de Gênesis, lemos repetidas vezes que “Disse Deus...e assim se fez”. Isto pode ser expresso com outros termos, como no Salmo 33:6: “Os céus por sua palavra se fizeram”. Quando se usa esta terminologia, abre-se a porta para se personificar “a palavra do Senhor” e entendê-la como seu agente ou mensageiro. De modo semelhante, ao lado de afirmações de que “Disse o Senhor a Isaías...” (Isaías 7:3), lemos que “veio a palavra do Senhor a Isaías” (Isaías 38:4). As duas afirmações são sinônimas, mas na segunda a “palavra do Senhor” pode ser retratada como um mensageiro que Deus enviou ao profeta.

Um exemplo ainda mais claro deste uso está no Salmo 107:20. Ali são descritas pessoas atacadas de enfermidade quase fatal, que imploram ajuda de Deus:

“Enviu-lhes a sua palavra e os sarou, e os livrou do que lhes era mortal”

Em uma passagem famosa do livro de Sabedoria (18:14,15), o anjo da morte que operou a matança no Egito, na primeira noite de Páscoa, é identificado com a “Palavra onipotente” que “lançou-se do trono real dos céus” para a terra condenada, brandindo o mandamento divino como uma “espada afiada”:

“Deteve-se e encheu de morte o universo: de um lado tocava o céu, de outro pisava a terra”.

Nesta passagem a personificação é mais detalhada e mais circunstancial do que em qualquer outra da Bíblia hebraica. Mas podemos reconhecer nisto um desenvolvimento da concepção profética da palavra de Deus como mensageiro que cumpre sua missão sem falhar, como em Isaías 55:11:

“A palavra que sair da minha boca
não voltará para mim vazia,
mas fará o que me apraz,
e prosperará naquilo para que a designei”.

“No princípio”, portanto, quando o universo foi criado, o Verbo divino que o trouxe à existência já estava ali. E as palavras que seguem mostram que nosso evangelista não tem em mente uma mera personificação literária. O “status” pessoal que ele atribui ao Verbo tem a ver com existência real; a relação que o Verbo tem com Deus é de pessoa para pessoa: O Verbo estava com Deus.

Esta afirmação tem implicações teológicas profundas, mas que não influíram na escolha da preposição grega pros para detonar “com”. É verdade que no grego literário não é como usar-se pros com este sentido, mas nos quatro evangelhos encontramos muitos paralelos, no contexto mais comum e cotidiano imaginável. Quando os nazarenos dizem, em Marcos 6:3, a respeito de Jesus “Não vivem aqui entre nós suas irmãs?”, a palavra grega traduzida “entre” é pros. O Verbo de Deus é distinto de Deus em si, mas tem uma relação pessoal muito íntima com Ele; mais ainda, Ele participa da própria natureza de Deus, porque o Verbo era Deus.

A estrutura da terceira frase do versículo 1, theos en ho logos, requer a tradução o Verbo era Deus. Já que logos é precedido do artigo, ele é identificado como sujeito. O fato de theos ser a primeira palavra depois da conjunção kai (e) mostra que a ênfase principal da frase está nele. Se tanto theos como logos fossem precedidos de artigo, o significado seria que o Verbo é complementamente idêntico a Deus, o que é impossível se o Verbo também está com Deus. O sentido é que o Verbo compartilha da natureza e do ser de Deus ou (usando uma expressão moderna) era uma extensão da personalidade de Deus. A paráfrase da NEB: “Tudo o que Deus era, a Palava era” transmite o sentido da frase da melhor maneira que uma paráfrase pode fazê-lo. “João quer que todo o seu evangelho seja lido à luz deste versículo. As ações e palavras de Jesus são ações e palavras de Deus; se isto não for verdade, o livro é blasfemo”. [61]

Portanto, quando céu e terra foram criados, o Verbo de Deus estava lá, já existia em relação íntima com Ele e fazia parte da Sua essência. Não importa até onde tentemos fazer voltar nossa imaginação, nunca alcançaremos um ponto em que poderemos dizer do Verbo divino, como Ário: “Houve um dia em que ele não era”. [62]

 


Fonte: Extraído de João– Introdução e Comentário, F.F. Bruce. 1ª Edição, Edições Vida Nova, 1987. São Paulo, SP. 33-36. Compre o seu exemplar aqui.


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