Autodefesa ou Dar o Outro Lado da Face?

por

George Crocker

 


Parece haver uma grande confusão nos círculos cristãos com respeito à declaração do nosso Senhor em Mateus 5:39: “Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra” (ARA). Muitos tomam esse versículo e reivindicam que não é correto, nem permitido, que um cristão se defenda, mas, antes, que ele deve ser passivo durante todo o tempo. À primeira vista parece que eles podem estar certos. Certamente parece que Cristo está ensinando o pacifismo aqui. Sim, mas é realmente isso?


O Contexto

O contexto dessa passagem é o Sermão do Monte, onde nosso Senhor está ensinando a conduta cristã apropriada no meio de um mundo incrédulo e de líderes religiosos hipócritas. Os escribas e os fariseus estavam tomando passagens da Escritura no Antigo Testamento (que era toda a Escritura que eles tinham naquela época) fora do contexto. Esse é o porquê Cristo constantemente começa suas palavras com: “Ouvistes que foi dito”. Ele estava corrigindo os erros de ensinamento e pensamento deles. Os escribas e fariseus eram famosos por dizer e não praticar (Mateus 23:3).

No contexto de Mateus 5:38-39 (bem como de Lucas 6:29 também), nosso Senhor ainda está corrigindo outro erro desses líderes religiosos. No versículo 38 ele diz: “Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente”. Os líderes religiosos, os escribas e fariseus, estavam tomando o que Deus tinha instruído em sua lei (Êxodo 21:24; Deuteronômio 19:21; Levítico 24:20) para o governo civil e fazendo dessa instrução uma questão privada e individual. O Senhor Deus tinha instruído os juízes e magistrados a punirem aqueles que faziam injúrias, fazendo-os sofrer do mesmo modo que eles tinham feito suas vítimas sofrer. Os escribas e fariseus ensinavam que isso significava vingança privada ou individual. Isso não estava certo. Não havia sido dado ao indivíduo o direito de vigança. Isso está nas mãos de Deus (veja Deuteronômio 32:35; Romanos 12:9) e de seus “meios” de punição = os magistrados civis (Romanos 13:4). Cristo desafia esse ensino contrário, e aqueles que deviam ter conhecido melhor, dizendo “eu, porém, vos digo”.

No versículo 39 de Mateus 5 Cristo agora os intrui que é o dever de todo homem suportar pacientemente as injúrias que ele recebe (Calvino) e não buscar vingança. É minha convicção que o Senhor NÃO está se referindo a questão de “autodefesa” nesse contexto. Ele NÃO está dizendo que é pecaminoso alguém se defender ou defender sua família quando ameaçado. Se ele tivesse dito, então isso seria uma contradição do que a Escritura diz em outros lugares. Aqui é onde eu me aparto de alguns comentaristas conversadores e reformados (tais como Ridderbos) que implicam que uma pessoa deve resistir “até mesmo de se defender”. Se eles querem dizer que em todas as circunstâncias esse deve ser o caso, então eles estão errados. Novamente, o Senhor não permite “vingança” individual. Contudo, defender a si mesmo ou sua família certamente não é proibido.

Se esse texto não está falando sobre autodefesa, o que o Senhor quer dizer quando ele diz “não resistais ao perverso” e então adiciona “mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra”? Admitidamente, esse parece ser um texto pacifista. H.N. Ridderbos não nos ajuda nessa área quando ele diz:

Jesus especificamente menciona a face direita aqui, embora uma bofetada de uma pessoa destra normalmente acertaria o lado esquerdo do rosto. Isso provavelmente significa que a bofetada é dada com as costas da mão, visto que ela se daria no lado direito do rosto. Certamente sabemos que tal golpe seria considerado particularmente como um insulto. Essa injustiça, que é voluntariamente aceita aqui, é, portanto, não tanto uma questão de lesão ao corpo quanto de vexame (H.N. Ridderbos. “Matthew”: Bible Students Commentary. Zondervan. p. 113)

Portanto, essa não é uma passagem tratando com o que alguém deve fazer quando sendo fisicamente atacado e/ou tendo a vida ameaçada. É, contudo, uma passagem que ensina que a “vingança” não deve ser deixada nas mãos do indivíduo que é a vítima. A vingança pessoal ou até mesmo o “linchamento” está certamente fora de questão. O Senhor já tinha estabelecido o meio de tratar com punição o ofensor, pela espada do Estado. Também, é uma passagem que ensina paciência quando a pessoa está errada. Como o grande reformador João Calvino diz:

Quando a injustiça lhes (crentes) é feita, ele (Cristo) deseja que eles sejam treinados por esse exemplo à mansa submissão, para que pelo sofrimento eles possam aprender a ser pacientes (John Calvin. “Harmony of Matthew, Mark and Luke” Calvin's Commentaries. Baker.  p. 299)

Essas passagens em Mateus 5, então, proíbem a autodefesa?... Elas não tratam com ela e, além do mais, elas não a proibem também. Voltemos, então, o outro lado da face (trocadilho intecionado)... e brevemente olhemos algumas passagens que tratam com a autodefesa.


O Conceito de Autodefesa

Como escrevi acima, nosso Senhor estaria contradizendo a si mesmo ou a Escritura ao dizer que uma pessoa nunca deve defender a si mesmo ou sua família em nenhuma circunstância. A Palavra de Deus permite e encoraja a autodefesa. Nas Escritura não encontramos Deus encorajando seu povo a serem “abutres” ou “pombas” quando tratando com questões de autodefesa. Eles devem ser apenas racionais.

Na parte primitiva da história redentora vemos o patriarca Abraão reunindo uma das primeiras milícias armadas (sem a aprovação de qualquer governo estatal ou federal, devo observar) para resgatar seu sobrinho sequestrado, Ló (Gênesis 14:12ss). Isso não era vingança, mas puramente defesa e proteção (nesse caso, resgate) de um membro da família e resgate de propriedade. Isso pode ser classificado como um exemplo bíblico de autodefesa. É interessante notar que mais tarde o “exército israelista foi uma milícia armada que entrou na batalha com cada homem levando as suas próprias armas - desde os tempos de Moisés, por todos os Juízes, e depois” (Pratt; ibid).

Em Êxodo 20:13, o sexto dos Dez Mandamentos, lemos: “Não matarás” (ARC e ARA). A tradução mais correta seria “não assassinarás”. Esse mandamento NÃO proíbe tirar a vida sob certas circunstâncias. Uma boa interpretação do que esse mandamento significa (exige de nós) é encontrado no Catecismo Maior de Westminster:

Quais são os deveres exigidos no sexto mandamento?

Resposta: Os deveres exigidos no sexto mandamento são todo empenho cuidadoso e todos os esforços legítimos para a preservação de nossa vida e a de outros, resistindo a todos os pensamentos e propósitos, subjugando todas as paixões e evitando todas as ocasiões, tentações e práticas que tendem a tirar injustamente a vida de alguém por meio de justa defesa dela contra a violência; por paciência em suportar a mão de Deus; sossego mental, alegria de espírito e uso sóbrio da comida, bebida, remédios, sono, trabalho e recreios; por pensamentos caridosos, amor, compaixão, mansidão, benignidade, bondade, comportamento e palavras pacíficos, brandos e corteses, a longanimidade e prontidão para se reconciliar, suportando pacientemente e perdoando as injúrias, dando bem por mal, confortando e socorrendo os aflitos, e protegendo e defendendo o inocente. (Q. & A. 135).

Note que o Catecismo diz “preservação de nossa vida e a de outros, resistindo...”. Os escritores desse magnífico doumento entenderam a necessidade, às vezes, de usar meios defensivos para socorrer outros quando necessário. Eles também disseram: “por meio de justa defesa dela contra a violência”. Esse é um chamado para o uso legítimo da autodefesa. As passagens da Escritura que eles usam para defender (nenhum trocadilho intencionado!) essa declaração são: Salmos 82:4; Provérbios 24:11-12; 1 Samuel 14:45. Outra passagem da Escritura em Êxodo nos diz que proteger sua família e possessões usando força física quando um intruso entra em sua casa de noite é legítimo: “Se o ladrão for achado a minar, e for ferido, e morrer, o que o feriu não será culpado do sangue. Se o sol houver saído sobre ele, será culpado do sangue. O ladrão fará restituição total; e se não tiver com que pagar, será vendido por seu furto” (Êxodo 22:2-3). Essa passagem simplesmente significa que uma pessoa pode defender sua casa, sua vida e a da sua família se um ladrão ou intruso vier de noite e lhes ameaçar. Se for durante a luz do dia e a situação não ameaçar a vida, então a força letal NÃO pode ser usada se ele ver que o intruso não está armado. O intruso deve pagar por seu crime por restituição (fazer um pagamento substancial para a vítima) ou (se ele não tiver dinheiro) “pagar gradualmente” (até mesmo ser vendido como encravo para pagar).

Em 1 Samuel 13:19,22 vemos o que acontece quando indivíduos de uma nação não têm mais o equipamento para fazer e ter armas e defenderem a si mesmos, suas famílias e nação. Isso é um convite aberto para ser atacado e saqueado. Se não, na realidade, o que as pessoas anti-autodefesa estão colocando sobre nós? Tire as armas das mãos das pessoas comuns e você terá uma nação dominada por tiranos e criminosos (freqüentemente um e o mesmo).

Em Neemias 4 vemos que os judeus que retornaram foram instruídos a defenderem a si mesmos e ao muro que eles estavam construindo daqueles que queriam usar quaisquer meios para impedi-lo de ser construído. “Os que edificavam o muro, e os que traziam as cargas, e os que carregavam, cada um com uma mão fazia a obra e na outra tinha as armas. E os edificadores cada um trazia a sua espada cingida aos lombos, e edificavam; e o que tocava a trombeta estava junto comigo” (Neemias 4:17,18; ARC). Eles estavam prontos para usar a autodefesa não somente para protegerem a si mesmos e as suas famílias do pacto, mas também para defender a propriedade (casas e o muro de Jerusalém) deles por direito, lhes dado pelo Senhor. Nós estamos menos obrigados, como o povo do pacto de Deus, a usar medidas defensivas (o uso de armas de fogo, por exemplo) de proteger a nós mesmos, nossas famílias e nossas propriedades? Eu penso que não.

Há outras passagens no Antigo Testamento que poderiam ser dadas, mas essas devem ser suficientes. No Novo Testamento temos passagens tais como Lucas 22:36, que diz: “Disse-lhes, pois: Mas, agora, aquele que tiver bolsa, tome-a, como também o alforje; e o que não tem espada, venda a sua veste e compre-a” (ARC). Nosso Senhor encorajou seus discípulos para terem proteção para uso em autodefesa. Em outros lugares no Novo Testamento temos Paulo dizendo que uma pessoa deve tomar cuidado de sua própria casa (1 Timóteo 5:18) e, comi eu disse em outro lugar, isso também implica em defender eles também. O Novo Testamento não contradiz a instrução do Antigo Testamento sobre autodefesa ao dizer “volta-lhe também a outra [face]”.


Conclusão

Esse pequeno artigo não pretende ser a resposta final sobre o assunto, nem eu espero necessariamente mudar as mentes dos pacifistas. Contudo, espero que eu tenha mostrado que “volta-lhe também a outra [face]” não proíbe uma pessoa de usar a autodefesa quando a vida de alguém e/ou família está enfrentando situações ameaçadoras. Referir-se à passagem de Mateus 5:38-39 para provar o pacifismo é enganoso e errôneo.

Estou totalmente convencido de que as Escrituras permitem que nos defendamos. Isso significa que temos direitos dados por Deus de “portarmos armas” para assim o fazer. Somente Deus pode tirar esses direitos. Eu concluo com uma citação do falecido Dr. A. T. Robertson, um estudioso do grego, sobre a passagem de Mateus:

Jesus protestou quando golpeado no rosto (João 18:22). E Jesus denunciou os fariseus (Mateus 23) e sempre lutou com o diabo. A linguagem de Jesus é ousada e pitoresca e não deve ser pressionada tão literalmente (ele está falando aqui da passagem de Mateus 5:39-39 em questão, GC). Paradoxos nos assustam e nos fazem pensar. Somos esperamos de satisfazer no outro lado da figura... Guerra agressiva ou ofensiva pelas nações é também condenada, mas não necessariamente a guerra defensiva ou a defesa contra o roubo e o assassinato. O pacifismo profissional pode ser mera covardia (A.T. Robertson. “Word Pictures in the New Testament”, Vol. I, p. 48).

 


Traduzido por: Felipe Sabino de Araújo Neto
Cuiabá-MT, 13 de Setembro de 2005.

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