Deus, o Autor da Evangelização

por

R. B. Kuiper

 

O Trino Deus como Autor da Evangelização

As raízes da evangelização estão na eternidade.

Os teólogos costumam falar do pactum salutis, feito desde toda a eternidade pelas três pessoas da Divindade. Pode-se traduzir a expressão pactum salutis tanto por aliança da redenção como por conselho da redenção. Este escritor prefere a segunda tradução porque a palavra aliança em geral se emprega na teologia para designar um acordo feito por Deus com o homem, acordo administrado historicamente. Seja como for, a verdade aí expressa é que o Pai, o Filho e o Espírito Santo, antes que o mundo existisse, planejaram juntos a salvação dos pecadores.

Neste plano, Deus o Pai devia enviar Seu Filho ao mundo para resgatá-lo; Deus o Filho haveria de vir voluntariamente ao mundo para se tornar merecedor da salvação por Sua obediência até à morte; e Deus o Espírito aplicaria a salvação aos pecadores, instilando neles a graça renovadora.

A Escritura ensina com clareza que houve de fato esse conselho da redenção. Principalmente nos escritos de João, o Pai é mencionado repetidamente como tendo enviado o Filho. Para dar apenas um exemplo, em 1 João 4:10 lê-se: "Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou a nós, e enviou Seu Filho como propiciação pelos nossos pecados". Cristo costumava falar de uma comissão que Lhe fora dada pelo Pai. Por exemplo, quando estava próximo o fim do Seu ministério terreno, Ele, por assim dizer, relatou ao Pai: "Eu te glorifiquei na terra, completando a obra que me deste para fazer" (João 17:4). Em passagens como Isaías 53:12, entre outras, menciona-se com destaque a recompensa dada pelo Pai ao Filho, pela realização da Sua obra: "Pelo que lhe darei o seu quinhão com os grandes e com os poderosos repartirá ele o despojo, porquanto derramou a sua alma até a morte, e foi contado com os transgressores, mas ele levou sobre si o pecado de muitos, e pelos transgressores intercedeu". Com igual clareza a Escritura ensina que o Espírito Santo foi enviado pelo Pai e pelo Filho. Jesus prometeu aos Seus discípulos "o Espírito Santo, a quem", disse Ele, "o Pai enviará em meu nome" (João 14:26). E Ele descreveu a terceira pessoa da Trindade como "o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai" (João 15:26).

Em resumo, antes que o mundo existisse, o Trino Deus elaborou um plano de salvação para ser executado em várias partes, reciprocamente distribuídas pelo Pai como Enviante e Diretor, pelo Filho como Enviado, Mediador e Enviante, e pelo Espírito Santo como Enviado e Aplicante.

Resulta disso que o Trino Deus é o Autor da salvação. E, visto que Ele executou no tempo o plano eterno de salvação, revelou sua execução no Evangelho, e estabeleceu o Evangelho como o meio indispensável de salvação, não é menos claro que o Trino Deus é o Autor da evangelização.

 

O Pai como Autor da Evangelização

Deus o Pai é o Autor da evangelização.

Ele concebeu a evangelização na eternidade.

Igualmente na eternidade Ele comissionou o Filho para se fazer merecedor da salvação em favor dos pecadores. Faria isso mediante Sua morte vicária na cruz que era objeto da maldição, e mediante o oferecimento ao Pai - em favor dos pecadores - daquela obediência perfeita que tem por recompensa a vida eterna.

Ele inspirou os antigos profetas a predizerem a vinda do Filho de Deus - na carne - e a predizerem que por meio do sofrimento Ele entraria na glória dele (Lucas 24:26). Por meio do profeta Isaías Ele retratou o padecente "servo do Senhor" (Isaías 53), proclamou o convite universal do Evangelho - "Olhai para mim, e sede salvos, vós, todos os confins da terra; porque eu sou Deus, e não há outro" (Isaías 45:22), e prenunciou o glorioso dia em que "a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar" (Isaías 11:9).

Ele ordenou os sacrifícios cruentos da velha dispensação para prefigurarem o sacrifício salvador do Filho na cruz do Calvário.

"Vindo, porém, a plenitude do tempo", Ele "enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei", a fim de que o Seu povo recebesse "a adoção de filhos" (Gálatas 4:4,5).

No começo do ministério público do Deus-homem, o Pai enviou sobre Ele o Espírito Santo em forma semelhante a uma pomba (Lucas 3:22) e assim O qualificou para a realização das Suas obras como Mediador. Ele O "ungiu para evangelizar aos pobres", enviou-O "para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor" (Lucas 4:18,19).

Ele deu, submeteu, sacrificou o Seu Filho unigênito para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (João 3:16).

Ele deu forças ao Seu Filho enquanto Este levava a incalculável carga da ira do Deus santo e justo contra o pecado da humanidade inteira, de modo que, quando o Filho foi abandonado por Deus e naquele abandono sofreu as angústias do inferno, Ele ainda se apegou ao Pai chamando-lhe "meu Deus" (Mateus 27:46).

Ressuscitando o Filho dentre os mortos, o Pai pôs o selo da Sua aprovação incondicional na obra consumada pelo Filho. Pois Ele foi ressuscitado, não somente para que pudéssemos ser justificados, mas porque nós tínhamos sido justificados por Sua morte - morte que sofreu em nosso lugar (Romanos 4:25).

Uma vez que o Filho se tornou "obediente até à morte, e morte de cruz", o Pai "o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai" (Filipenses 2:8-11).

No Pentecoste Deus o Pai transmitiu à igreja o poder do Espírito Santo, para que ela pudesse testemunhar das coisas de Cristo "tanto em Jerusalém, como em toda Judéia e Samaria, e até aos confins da terra" (Atos 1:8).

 

O Filho como Autor da Evangelização

Deus o Filho é o Autor da evangelização.

Embora "subsistindo em forma de Deus", Ele "não julgou como usurpação o ser igual a Deus"; contudo, voluntariamente "a si mesmo se esvaziou, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens" (Filipenses 2:6,7) para que pudesse realizar a obra salvadora para a qual tinha sido comissionado pelo Pai. Quando veio ao mundo, Ele disse "Eis aqui estou (no rolo do livro está escrito a meu respeito), para fazer, ó Deus, a tua vontade" (Hebreus 10:7).

Ele se tornou "obediente até à morte, e morte de cruz" (Filipenses 2:8). Sofrendo assim a morte de um ser maldito, Ele redimiu da maldição de Deus aqueles que não tinham condições de permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei (Gálatas 3:10,13). Ao fazer isso, Ele trouxe à luz a essência mesma do Evangelho. Como "o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (João 1:29), Ele criou o Evangelho.

Ele proclamou o Evangelho por meio dos antigos profetas, numa antecipação da Sua morte expiatória. Eles foram como que as boas pelas quais Ele falava. Foi Ele quem foi pregar aos rebeldes contemporâneos de Noé, enquanto em Sua paciência, Deus aguardava o término da construção da arca (1 Pedro 3:18-20). Quando os santos homens no passado distante "profetizaram acerca da graça que havia de vir", foi o "Espírito de Cristo, que neles estava", que deu "de antemão testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo, e sobre as glórias que os seguiriam" (1 Pedro 1:10,11).

Nos dias da Sua carne, Ele proclamou o Evangelho do reino de Deus (Mateus 13), do amor do Pai celeste por Seu filho rebelde (Lucas 15:11-24), do "Filho do homem", coroado rei pelo Ancião de dias - coroado rei de um reino universal e eterno (Daniel 7:13,14), condescendendo Ele em "buscar e salvar o que se havia perdido" (Lucas 19:10), incluindo os publicanos e pecadores que eram escórias da sociedade. E embora tivesse ordenado aos doze discípulos, que mandou pregar o Evangelho, que limitassem a sua atividade evangelística às "ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mateus 10:6), Ele mesmo levou o Evangelho aos samaritanos (João 4).

Havendo morrido e ressuscitado, introduzindo assim uma nova dispensação, Ele deu responsabilidade aos Seus apóstolos e à Sua igreja de todos os tempos, dizendo: "Toda a autoridade me foi dado no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo; ensinando-os a observar todas as coisas que vos tenho ordenado". E a fim de encorajá-los para a realização dessa tarefa colossal, Ele acrescentou: "E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século" (Mateus 28:18-20).

Foi o Filho de Deus que, nas proximidades de Damasco, deteve Saulo de Tarso, transformando-o de perseguidor da igreja no maior missionário cristão de todos os tempos, e dele disse: "Este é para mim um vaso escolhido para levar o meu nome perante dos gentios e reis, e filhos de Israel" (Atos 9:15).

No Pentecoste o Espírito foi derramado. Ele operou poderosamente, tanto nos que falaram como nos que ouviram. Os discípulos receberam, então, poder para serem testemunhas de Cristo no mundo inteiro (Atos 1:8). E daqueles que estavam ouvindo, uns três mil foram convertidos e batizados. Foi o Filho de Deus que, tendo conquistado o merecimento do Espírito em favor da igreja, nessa ocasião O derramou sobre a igreja. No sermão que pregou no dia de Pentecoste, disse Pedro: "Exaltado, pois, à destra de Deus, e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis" (Atos 2:33).

Todo pregador do Evangelho hoje fala em nome de Cristo. Ou melhor, Cristo prega por meio dele, usando-o como Seu embaixador. Todos os evangelistas podem dizer com Paulo: "Rogamo-vos pois da parte de Cristo que vos reconcilieis com Deus" (2 Coríntios 5:20).

Na verdade, "o Filho de Deus, de toda a raça humana, desde o começo até o fim do mundo, reúne, defende e preserva para Ele mesmo, por Seu Santo Espírito e por Sua Palavra, na unidade da fé, uma igreja escolhida para a vida eterna" (Catecismo de Heidelberg, O Dia do Senhor XXI, Resposta 54),

Em conclusão, ressaltemos que o Filho de Deus não ocupa apenas o primeiro lugar daquela classe de homens conhecidos como missionários ou evangelistas. Como missionário e evangelista, Ele pertence a uma categoria exclusivamente dele. Ele é incomparável. Ele criou o Evangelho. Ele constitui o tema central do Evangelho. Em última análise, Ele é o único e exclusivo pregador do Evangelho. Ele faz eficiente aplicação do Evangelho, mediante o Espírito Santo. E Ele não precisa do Evangelho. Isso tudo só se pode dizer do Filho de Deus - e de mais ninguém.

 

O Espírito Santo como Autor da Evangelização

Deus o Espírito Santo é o Autor da evangelização.

Quando os homens santos do passado distante predisseram o nascimento, o ministério, a morte e a ressurreição do Salvador, e colocaram em forma escrita as suas profecias, de sorte que o Velho Testamento é Evangelho tanto quanto o Novo, eles foram "movidos pelo Espírito Santo" (2 Pedro 1:21).

No Pentecoste o Espírito Santo deu poder a um pequeno grupo de homens e mulheres insignificantes, incultos e fracos - mas crentes - para se lançarem à estupenda tarefa de conquistar o mundo para Cristo, seu Senhor. O poder do Espírito foi adequadamente simbolizado por duas das maiores forças da natureza - o vento e o fogo. Esse poder - é bom lembrar - nunca se apartou e nunca se apartará da igreja, pois, como disse Cristo, o Espírito foi dado "a fim de que esteja para sempre convosco" (João 14:16). Um segundo Pentecoste está fora de cogitação. O derramamento do Espírito Santo no dia de Pentecoste foi um acontecimento único e que se deu uma vez por todas, como no caso da encarnação do Filho de Deus.

Por meio do poder do Espírito Santo, a igreja se tornou uma igreja que testifica. Não foi só Pedro que, de covarde que era, se tornou corajoso pregador, mas cada um dos discípulos passou a ser um evangelista. "Todos ficaram cheios do Espírito Santo, e passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem" (Atos 2:4).

Estavam ali presentes homens "de todas as nações que há debaixo do céu" (Atos 2:5), "tanto judeus como prosélitos" (Atos 2:11). Pela operação do Espírito Santo nos corações deles, três mil se converteram. Foram recebidos - pelo batismo - à comunhão da igreja, como os primeiros frutos da abundante colheita que haveria de congregar-se na igreja nos séculos futuros, pessoas "de toda tribo, língua, povo e nação" (Apocalipse 5:9).

O Espírito Santo vocaciona os evangelistas para a obra que devem realizar, e os guia na sua realização. Na era apostólica, Ele os chamou e os guiou mediante revelação especial. À igreja de Antioquia da Síria, "disse o Espírito Santo: Separai-me a Barnabé e a Saulo para a obra a que os tenho chamado" (Atos 13:2). E Lucas relata que Paulo e seus auxiliares foram "impedidos pelo Espírito Santo de pregar a palavra na Ásia" e que "o Espírito de Jesus não lhes permitiu" ir para a Bitínia, encaminhando-os à Macedônia por meio de uma visão sobrenatural (Atos 16:6-9). Agora que a revelação está completa nas Escrituras do Velho e do Novo Testamentos, a maneira pela qual o Espírito Santo chama e dirige as pessoas é diferente. Contudo, não é nem um pouco menos real. Ele nos vocaciona e nos dirige pela providência divina e pela influência que, por Sua graça, Ele exerce na mente e no coração daqueles que Ele quer que semeiem a semente do Evangelho e trabalhem na seara. Jesus ordenou aos setenta que enviou a cada cidade e lugar que Ele planejava visitar: "Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara" (Lucas 10:1,2). "Ora, o Senhor é Espírito" (2 Coríntios 3:17).

O Espírito Santo abre portas para a propagação do Evangelho. Por uma providência maravilhosa, Ele guiou Paulo para Roma, a capital do mundo pagão. Ali, embora prisioneiro, ele pregou o reino de Deus e ensinou as coisas concernentes ao Senhor Jesus Cristo, "com toda a liberdade, sem impedimento algum" (Atos 28:31). Como conseqüência, até mesmo pessoas que pertenciam ao quadro da casa de César foram levadas a crer em Cristo (Filipenses 4:22). Os que proclamam o Evangelho podem ser aprisionados, e freqüentemente é o que sucede, "mas a palavra de Deus não está presa" (2 Timóteo 2:9), porque o Espírito de Deus não pode ser aprisionado. E "como ribeiros de águas, assim é o coração do rei na mão do Senhor; Ele o inclina para onde quer" (Provérbios 21:1). Deus muitas vezes dobra a vontade dos Seus mais cruéis inimigos, levando-os a cumprirem Suas ordens, a ponto de fazer com que a ira humana O louve (Salmos 76:10).

Sendo o Espírito da verdade, a terceira pessoa da Trindade Santa preserva o Evangelho. Não fosse esta Sua atividade, há muito tempo se teria perdido o Evangelho. A própria igreja o teria destruído. A história da igreja está repleta de corrupções e rejeições do Evangelho. Mas o Espírito - derramado sobre ela no Pentecoste - haveria de estar com ela e nela para sempre (João 14:16). Por esta razão, e somente por esta, a Igreja continua e continuará existindo como a "coluna e baluarte da verdade" (1 Timóteo 3:15). Até o fim dos tempos, sempre existirá um grupo de verdadeiros crentes que, como um só corpo, estarão anunciando o verdadeiro Evangelho.

Daquela numerosa multidão que recebeu o Evangelho pregado por Pedro em Jerusalém, no dia de Pentecoste, ninguém foi convertido pela eloqüência do apóstolo. Como também nenhum daqueles conversos foi convertido por ter posto em exercício a sua vontade não regenerada. Todos e cada um daqueles que receberam a Palavra, a receberam devido à operação da graça irresistível do Espírito Santo. Da mesma forma, em Filipos, Lídia deu ouvidos às coisas que Paulo dizia, somente porque o Senhor abriu o coração dela (Atos 16:14). Ele o fez mediante a operação do Espírito Santo. Através de toda a história, todo verdadeiro convertido ao cristianismo foi convertido pela graça regeneradora do Espírito de Deus e pela eficaz aplicação do Evangelho feita pelo mesmo Espírito. "Ninguém pode dizer: Senhor Jesus! senão pelo Espírito Santo" (1 Coríntios 12:3). Aqui se aplica também a máxima divina: "Não por força, nem por poder, mas pelo meu Espírito" (Zacarias 4:6).

O Trino Deus - o Pai e o Filho e o Espírito Santo - é o Autor tanto da salvação como do Evangelho da salvação. É Ele, deveras, o Autor da evangelização.


Extraído de "Evangelização Teocêntrica", de R.B. Kuiper, Editora PES.
Páginas 7-14.