Qual é o Conteúdo da Mensagem Evangelística?

por

J. I. Packer


Este assunto será por nós tratado de forma bastante sumária. Em uma palavra, o conteúdo da mensagem evangelística é o evangelho de Cristo, e do Cristo crucificado; a mensagem do pecado do homem e da graça de Deus, da culpa humana e do perdão divino, do novo nascimento e da nova vida por meio do dom do Espírito Santo. Trata-se de uma mensagem composta de quatro ingredientes essenciais:

1. O evangelho é uma mensagem sobre Deus . Ele nos diz quem ele é, qual o seu caráter, quais os seus padrões e o que ele requer de nós, que somos suas criaturas. Ele nos diz que devemos, nada mais nada menos, do que a nossa própria existência a ele, que, para bem ou para mal, estamos sempre nas suas mãos e sob as suas vistas, e que ele nos criou para o glorificarmos e servirmos, para anunciarmos seu louvor e vivermos para a sua glória. Estas verdades representam o fundamento da religião teísta, e, enquanto elas não forem compreendidas, o restante da mensagem do evangelho não parecerá nem convincente nem relevante. Aqui, com a declaração da completa e constante dependência do homem em relação ao seu Criador, que começa a história cristã.

Neste ponto temos, mais uma vez, muito que aprender com Paulo. Quando pregava para os judeus, como em Antioquia da Pisídia, [64] ele não sentia a necessidade de mencionar o fato de o que os homens eram criaturas de Deus; pois já podia contar com este pressuposto como ponto pacífico, pois os seus ouvintes pautavam-se na fé do Antigo Testamento. Ele podia ir logo falando-lhes de Cristo como o cumprimento das esperanças do Antigo Testamento. Mas quando pregava aos Gentios, que não sabiam nada do Antigo Testamento, Paulo tinha que começar um pouco antes, voltando ao começo. E o começo, do qual Paulo partia nestes casos, era a doutrina da criação da parte de Deus e da criaturalidade do homem. Assim, quando os atenienses solicitaram que ele explicasse o que queria dizer toda aquela sua conversa sobre Jesus e a ressurreição, ele lhes falou, antes de mais nada, sobre Deus o Criador, e o porquê ele criou o homem. “ O Deus… fez o mundo… ele mesmo é quem dá vida, respiração e tudo mais; e de um só fez toda a raça humana… para buscarem a Deus. ” [65] Não se tratava aqui, como alguns supunham, de uma peça de apologética filosófica, como aquela a que Paulo iria renunciar mais tarde, mas da primeira e mais fundamental lição de fé teísta. O evangelho começa ensinando-nos que, como criaturas, somos absolutamente dependentes de Deus, e que ele, como Criador, tem direito absoluto sobre nós. Somente depois de termos entendido isso, estaremos em condições de reconhecer o que é o pecado, e somente quanto reconhecemos o que é o pecado, podemos entender as boas novas da salvação do pecado. É necessário antes de mais nada, compreendermos o significado de chamar a Deus de Criador, para estarmos em condições de entender o que significa falar dele como Redentor. Falar sobre o pecado e a salvação não resultará em nada, se não tivermos aprendido esta lição preliminar pelo menos em parte.

2. O evangelho é uma mensagem sobre o pecado . Ele nos fala de como foi que não alcançamos o padrão divino; como nos tornamos culpados, corruptos e impotentes no pecado, e como estamos sob a ira de Deus agora. Ele nos conta que a razão porque pecamos constantemente é que somos pecadores por natureza, e que nada do que fazemos ou tentamos fazer por nós mesmos pode nos endireitar ou nos fazer voltar a usufruir o favor de Deus. Ele nos mostra como Deus nos vê, e nos ensina a pensar a nosso respeito da mesma forma como Deus pensa a nosso respeito. Deste modo ele nos leva ao autodesespero. Este estágio, aliás, também é necessário. Enquanto não tivermos nos dado conta da nossa necessidade de fazer as pazes com Deus, e da nossa incapacidade de fazê-las pelas nossas próprias forças, não podemos vir a conhecer o Cristo que nos salva do pecado.

Existe um grave perigo aqui. Todos nós já experimentamos coisas que nos causaram insatisfação e vergonha na vida. Todos têm uma consciência pesada devido a alguma coisa em seu passado, questões nas quais não alcançamos os padrões que estabelecemos para nós mesmos, ou que eram esperadas pelos outros. O perigo que corremos na nossa evangelização é de que nos contentemos em evocar as lembranças destas coisas, fazendo as pessoas sentirem-se incomodadas com elas, para depois descrever a Cristo como o único que nos salva desses elementos em nós mesmos, chegando até a deixar de tocar na questão do nosso relacionamento com Deus. Mas esta é precisamente a questão que deve ser levantada quando falamos sobre o pecado. Pois a própria idéia de pecado na Bíblia é de uma ofensa contra Deus, que rompe o relacionamento do homem com Deus. Se não reconhecermos as nossas deficiências à luz da lei e da santidade de Deus, jamais seremos capazes de reconhecê-las como pecado . Pois o pecado não é um conceito social; trata-se de um conceito teológico. Embora o pecado seja cometido pelo homem e muitos pecados sejam cometidos pela sociedade, o pecado não pode ser definido em termos, quer do homem quer da sociedade. Nunca saberemos o que o pecado realmente é, enquanto não tivermos aprendido a pensar nele como Deus pensa, medindo-o não segundo padrões humanos, mas de acordo com o parâmetro da sua exigência absoluta sobre as nossas vidas.

O que é preciso que compreendamos, então, é que a consciência pesada do homem natural não significa absolutamente o mesmo que a convicção de pecado. Não se pode, portanto, concluir que uma pessoa está convencida do pecado, só porque está angustiada com a sua fraqueza e as coisas erradas que tenha praticado. A convicção de pecado não se reduz em sentir-se miserável consigo mesmo, suas próprias falhas e a incapacidade de satisfazer as exigências da vida. Nem seria salvadora a fé se um homem nesta condição invocasse o Senhor Jesus Cristo somente para se acalmar, animar-se e sentir-se confiante de novo. Nem tão pouco estamos pregando o evangelho (embora pudéssemos imaginar que estivéssemos), se não fizemos nada mais do que apresentar a Cristo, como se fosse um meio de satisfação dos desejos que o homem possa sentir. ( “ Vocês estão certos de que são felizes? Estão se sentindo satisfeitos? Desejam ter paz de espírito? Sentem-se fracassados? Sentem-se cheios de si mesmos? Estão precisando de um amigo? Então venham a Cristo; ele satisfará cada uma das suas necessidades… ” – como se o Senhor Jesus Cristo fosse uma espécie de fada madrinha ou um super-psiquiatra). Não, precisamos ir mais longe do que isso. Pregar sobre o pecado não significa tirar proveito das fragilidades sentidas pelas pessoas (o truque da “ lavagem cerebral ” ), mas de julgar suas vidas de acordo com a santa lei de Deus . Estar convencido do pecado não significa meramente sentir-se um completo fracasso, mas dar-se conta de que ofendeu a Deus, a sua autoridade, e que o provocou, desafiou, e colocou-se de forma totalmente errada com ele. Pregar a Cristo significa anunciá-lo como o Único que, por meio da sua cruz, é capaz de novamente corrigir a situação do homem diante de Deus. Depositar a fé em Cristo significa confiar nele, e somente nele, para restaurar-nos à comunhão e ao favor de Deus.

A verdade é que o Cristo real, o Cristo da Bíblia, que se oferece a nós como Salvador do pecado e como o nosso Advogado diante de Deus, de fato dá paz, alegria, força moral e o privilégio de sua própria amizade a todos aqueles que confiam nele. Mas o Cristo que é apresentado e desejado simplesmente para tornar mais fáceis a grande quantidade de infortúnios da vida, suprindo-os com ajuda e conforto, não é o Cristo real, e sim, um Cristo distorcido e mal interpretado – com efeito, nada mais do que um Cristo imaginário. Se nós fazemos as pessoas olharem para um Cristo imaginário, não temos motivo algum para esperar que elas encontrem a verdadeira salvação. É preciso, portanto, que estejamos atentos para o perigo de equipararmos uma consciência pesada e sentimento de infelicidade naturais com a convicção espiritual do pecado, e assim esquivar-nos, em nossa evangelização, da tarefa de deixar bem claro aos pecadores a verdade fundamental acerca da condição em que se encontram – que é de alienados de Deus pelo seu pecado e de pessoas à mercê da Sua condenação, hostilidade e ira, de modo que sua primeira necessidade é a de restauração do relacionamento com ele .

Poderíamos nos perguntar agora o seguinte: quais são os sinais da verdadeira convicção do pecado, como distinta da mera consciência natural pesada, ou do mero desgosto na vida, que qualquer pessoa desiludida pode sentir?

Os sinais parecem ser ao todo três:

a) A convicção de pecado é essencialmente a consciência de um relacionamento errado com Deus : não apenas com o nosso vizinho, ou com a própria consciência e ideais que cultivamos para conosco mesmos, mas com o nosso Criador, o Deus em cujas mãos está o ar que respiramos, do qual depende a nossa existência a cada momento. Não seria absolutamente suficiente definirmos a convicção do pecado como um senso de necessidade, sem qualificação; não se trata de um senso de necessidade qualquer, mas de um senso de necessidade em particular – a saber, uma necessidade de restauração da nossa comunhão com Deus. Trata-se da compreensão de como a pessoa está agora. Ela está em um relacionamento com Deus que só pode expressar rejeição, vingança, ira e sofrimento para o presente e para o futuro; e uma compreensão de que este tipo de relacionamento é intolerável e que não podemos mantê-lo sob hipótese alguma, e conseqüentemente, um desejo de que ele seja mudado a todo o custo e em quaisquer condições. A convicção do pecado pode estar centrada na nossa consciência de culpa diante de Deus, ou então, da nossa impureza aos seus olhos, ou da nossa rebelião contra ele, ou da nossa alienação e estranhamento dele, mas sempre teremos a consciência da necessidade de acertar as coisas, não só conosco mesmos ou com as outras pessoas, mas com Deus.

b) A convicção de pecado sempre inclui a convicção de pecados : um senso de culpa por erros particulares cometidos aos olhos de Deus, dos quais devemos retornar e sermos libertos, se quisermos sempre estar de bem com Deus. Foi assim que Isaías conscientizou-se especificamente dos pecados da língua [66] e Zaqueu do pecado de extorsão. [67]

c) A convicção de pecado sempre inclui convicção da pecaminosidade : uma consciência da nossa corrupção e perversidade total aos olhos de Deus e da conseqüente necessidade do que Ezequiel chamou de um “ novo coração ” , [68] e nosso Senhor de novo nascimento, [69] isto é, uma recriação moral. Assim, o autor do Salmo 51 – tradicionalmente tido como Davi, convencido do seu pecado com Bate-Seba – não se limita a confessar transgressões particulares (versos 1-4), mas também confessa a total depravação da sua natureza (versos 5,6), e busca purificar-se tanto da culpa quanto da corrupção (versos 7-10). Na verdade, talvez a forma mais breve de dizer se uma pessoa está convicta do pecado é remetê-la ao Salmo 51, e ver se o seu coração está de fato falando algo parecido com a linguagem empregada pelo salmista.

3. O evangelho é uma mensagem acerca de Cristo – Cristo, o Filho de Deus encarnado; Cristo, o Cordeiro de Deus, que morreu pelos pecados; Cristo, o Senhor ressurreto; Cristo, o Salvador perfeito.

Nesta parte da mensagem, é preciso notar dois pontos:

a) Nunca devemos apresentar a Pessoa de Cristo separada da sua obra salvadora.

Diz-se, às vezes, que é a apresentação da pessoa de Cristo muito mais do que as doutrinas a seu respeito, que faz com que os pecadores se lancem aos seus pés. A verdade é que é o Cristo vivo que salva, e que uma teoria da expiação, por mais ortodoxa que seja, não pode substituí-lo. Entretanto, quando é feita esta observação, o que geralmente se sugere é que o ensino da doutrina é dispensável na pregação evangelística, e que tudo o que um evangelista precisa fazer é pintar um vívido retrato falado do Homem da Galiléia, que procurou praticar o bem, e depois assegurar aos seus ouvintes que este mesmo Jesus continua vivo para ajudá-los nas suas dificuldades. Acontece que uma mensagem como esta dificilmente poderia ser chamada de evangelho. Na realidade, não passaria de uma mera charada, que não serviria para nada mais do que mistificar as coisas. Mas quem foi esse Jesus, afinal? – poderíamos perguntar. Qual é sua posição agora? Uma pregação como esta daria margem a este tipo de questionamento, ao mesmo tempo em que acabaria ocultando as respostas. E isso certamente deixaria qualquer ouvinte atencioso absolutamente confuso.

Pois a verdade é que a figura histórica de Jesus nunca fará sentido para você enquanto não souber nada sobre a encarnação – o fato de que este Jesus era mesmo Deus, o Filho, que se fez homem para salvar os pecadores, de acordo com o propósito eterno do seu Pai. A vida dele também não lhe fará qualquer sentido enquanto você não souber nada a respeito da expiação – que ele viveu como homem, a fim de que pudesse morrer no lugar dos homens, e que a sua paixão, o seu assassinato judicial, representou, na realidade, a sua ação salvadora de tirar os pecados do mundo. Você também não pode falar sobre quais as condições para ter acesso a ele agora, enquanto não souber nada acerca da ressurreição , ascensão e das regiões celestiais – que Jesus foi ressuscitado, entronizado e feito Rei, e que ele vive para salvar absolutamente todos os que reconhecem o seu Senhorio. Estas doutrinas, para não falar de outras, são essenciais ao evangelho. Sem elas não há evangelho, mas somente uma história que é um verdadeiro quebra-cabeça sobre um homem chamado Jesus. Opor o ensino das doutrinas sobre Cristo à apresentação da sua Pessoa é, portanto, estabelecer divisão entre duas coisas que Deus juntou. E isso seria algo deveras perverso, pois todo o propósito no ensino destas doutrinas através da evangelização, é o de lançar luz sobre a Pessoa do Senhor Jesus Cristo, e de deixar claro aos nossos ouvintes tão somente quem é esta pessoa que desejamos que eles encontrem. Quando, na vida social comum, desejamos que as pessoas conheçam quem estamos lhes apresentando, nós lhes contamos alguma coisa sobre ela, e o que ela fez; e precisamente o mesmo se aplica ao nosso caso. Os próprios apóstolos pregavam estas doutrinas a fim de pregar a Cristo, como indica o Novo Testamento. Pois o fato é que, se você deixar de fora estas doutrinas, não lhe restará mais evangelho algum para pregar. De fato, sem estas doutrinas você não teria absolutamente nenhum evangelho para pregar.

b) Mas existe um segundo ponto, complementar a este. Não se deve apresentar a obra salvadora de Cristo de forma separada da sua Pessoa .

Muitos pregadores evangelísticos e praticantes da evangelização pessoal ficaram famosos por terem cometido este equívoco. Na sua preocupação em concentrar a sua atenção sobre a morte expiatória de Cristo, como a única base suficiente pela qual os pecadores podem ser aceitos por Deus, eles formulavam os seus apelos à fé salvadora nestes termos: “ Creia que Cristo morreu pelos seus pecados. ” O efeito de uma exposição como esta é apresentar a obra salvadora de Cristo no passado, dissociada da sua Pessoa no presente, como todo o objeto da nossa confiança. Mas não é nada bíblico isolar o trabalho do Trabalhador. O chamado para a fé jamais se expressa nestes termos em lugar algum do Novo Testamento. O único tipo de apelo que o Novo Testamento faz é para depositarmos a nossa fé em ( en-eis ) [70] ou sobre ( epi ) o próprio Cristo – o lugar certo para depositarmos a nossa confiança no Salvador vivo que morreu pelos pecados. Estritamente falando, o objeto da fé que salva, portanto, não é a expiação, mas o Senhor Jesus Cristo , que realizou a obra de expiação. Ao apresentarmos o evangelho, não devemos isolar a cruz dos benefícios que ela traz, do Cristo nela crucificado. Pois as pessoas que usufruem os benefícios da morte de Cristo são precisamente as mesmas que confiam na sua Pessoa, e não crêem apenas e simplesmente na sua morte salvadora, mas nele mesmo , o Salvador vivo. “ Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo ” , [71] disse Paulo. “ Vinde a mim … e eu vos aliviarei ” , [72] disse o nosso Senhor.

Sendo assim, uma coisa se torna imediata e instantaneamente clara: a saber, que a questão sobre a extensão da expiação, que está sendo bastante discutida em determinados meios, neste ponto particular não tem ligação com o conteúdo da mensagem evangelística. Meu propósito não é o de discutir esta questão agora; mesmo porque eu já o fiz em outra ocasião. [73] No presente não estou lhe pedindo para decidir, se você pensa que é verdade ou não que Cristo morreu com o propósito de salvar cada ser humano individualmente no passado, no presente e no futuro. Nem tão pouco tenho a pretensão de convidá-lo para mudar de opinião sobre esta questão agora, se é que você já não o fez. Só o que quero dizer aqui é que, mesmo que você pense que a afirmação acima é verdadeira, sua apresentação de Cristo, na evangelização, não deve diferir daquela de uma pessoa que pensa que ela é falsa.

O que quero dizer é o seguinte. É óbvio que, se um pregador acha que a afirmação: “ Cristo morreu por cada um de vocês ” , feita a uma congregação, não é verificável, e provavelmente nem verdadeira, ele deveria tomar o cuidado para não declarar isso na sua pregação evangelística. Você não encontrará afirmações como esta, por exemplo, nos sermões de um George Whitefield ou Charles Spurgeon. Agora porém, o ponto que eu gostaria de frisar aqui é que, mesmo que a pessoa pense que esta declaração seria verdadeira, não é algo que ela sempre precise dizer, ou sempre tenha motivo para mencioná-la quando pregar o evangelho. Pois pregar o evangelho, como acabamos de ver, significa convidar os pecadores a virem até Jesus Cristo, o Salvador vivo , que em virtude de sua morte expiatória, está em condições de perdoar e salvar todos aqueles que depositam a sua confiança nele. O que é preciso que se diga a respeito da cruz, sempre que pregarmos o evangelho, é simplesmente que a morte de Cristo é a razão pela qual nos é dado o perdão de Cristo. E isso é tudo o que precisa ser dito. A questão da extensão designada da expiação não tem absolutamente nada a ver com a história.

O fato é que o Novo Testamento nunca chama ninguém ao arrependimento, por ter Cristo morrido específica e particularmente por ele. O fundamento sobre o qual o Novo Testamento convida os pecadores a depositarem a sua fé em Cristo é simplesmente o fato de que eles necessitam dele, que ele se oferece a si mesmo a eles, e que aqueles que o recebem têm a garantia de usufruir de todos os benefícios que a sua morte assegura para o seu povo. O que é universal e abrangente no Novo Testamento é o convite à fé e à promessa de salvação a todo aquele que crê. [74]

Nosso trabalho na evangelização é reproduzir, da forma mais fiel possível, a ênfase do Novo Testamento. O que será sempre errado é tentar ir além do Novo Testamento, distorcer o seu ponto de vista ou mudar sua ênfase. Por isso – valendo-nos neste ponto das palavras de James Denney – “ nem sequer nos passa pela cabeça separar a obra (de Cristo) daquele que a realizou. O Novo Testamento conhece apenas um Cristo vivo, e toda a pregação apostólica do evangelho apresenta o Cristo vivo aos homens. Mas este Cristo vivo é o Cristo que morreu e jamais se deve pregar sobre ele de modo separado da sua morte e do seu poder reconciliador. É o Cristo vivo, com o mérito da sua morte reconciliadora nele , que é o tema principal da mensagem apostólica… A tarefa do evangelista é pregar sobre “ Cristo… em seu caráter como o Crucificado. ” [75] Crer no evangelho não significa “ crer que Cristo morreu pelos pecados de todos, e portanto pelos seus ” , e muito menos “ crer que Cristo morreu somente pelos pecados de algumas pessoas e, portanto, quem sabe até pelos seus. ” Crer no evangelho significa “ crer no Senhor Jesus Cristo, que morreu pelos pecados, e agora se oferece a Si mesmo como o seu Salvador. ” Eis aí a mensagem que nós devemos levar para todo o mundo. Não temos o direito de pedir que as pessoas depositem a sua fé em uma visão qualquer sobre a extensão da expiação; nosso negócio é atrair a atenção das pessoas para o Cristo vivo e apelar para que elas confiem nele.

Foi pelo fato de os dois terem entendido isso, que John Wesley e George Whitefield podiam dar-se as mãos, no que diz respeito à evangelização, por mais divergentes que fossem quanto a extensão da expiação. Pois o ponto-de-vista que cada um tinha quanto a este assunto não interferia na sua pregação do evangelho. Ambos limitavam-se a pregar o evangelho exatamente como ele se encontra nas Escrituras: isto é, proclamar “ o Cristo vivo, com o mérito da sua morte reconciliadora nele ” , oferecê-lo aos pecadores e convidar o perdido a vir até ele e, assim, encontrar vida.

4. Isso nos leva ao ingrediente final da mensagem do evangelho. O evangelho é um apelo à fé e ao arrependimento .

Todos aqueles que ouvem o evangelho são chamados por Deus para se arrependerem e crerem . “ … Deus… notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam ” ; disse Paulo aos atenienses. [76] Quando seus ouvintes lhe perguntaram, o que é que eles deveriam fazer para “ realizar as obras de Deus ” , nosso Senhor lhes respondeu: “ A obra de Deus é esta: que creiais naquele que por ele foi enviado. ” [77] Em 1ª João 3.23, lemos: “ Ora, o seu mandamento é este: que creiais em o nome de seu Filho, Jesus Cristo… ” O arrependimento e a fé são apresentados como questões de dever pelo mandamento direto de Deus, e portanto, toda falta de penitência e incredulidade são identificadas no Novo Testamento como pecados dos mais graves. [78] Conforme indicamos acima, juntamente com estes mandamentos universais vão as promessas universais de salvação a todos quantos os obedecem. “ Por meio de seu nome, todo aquele que nele crê recebe remissão dos pecados. ” [79] “ Aquele que tem sede venha, e quem quiser, receba de graça a água da vida. ” [80] “ Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. ” [81] Estas palavras representam promessas que Deus cumprirá enquanto o tempo durar.

É necessário dizer que a fé não é um mero sentimento otimista, e muito menos o arrependimento pode ser considerado um mero sentimento de lamentação ou de remorso. Tanto a fé quanto o arrependimento são ações, as quais envolvem o homem como um todo. A fé é mais do que apenas acreditar; ela é essencialmente o lançar-se e descansar e a confiança nas promessas de misericórdia que Cristo deu aos pecadores, e no Cristo que fez tais promessas. Semelhantemente, o arrependimento significa mais do que simplesmente entristecer-se pelo passado. Arrependimento representa uma mudança de opinião e de atitude, representa uma vida nova que nega a si mesmo e que serve ao Salvador, entronizado como rei, no lugar do seu próprio eu. A mera crença sem confiança e o mero remorso sem conversão, não salvam ninguém. “ Até os demônios crêem e tremem. ” [82] “ … mas a tristeza do mundo produz morte. ” [83]

Dois aspectos a mais precisam ser destacados:

a) A exigência diz respeito tanto a quanto ao arrependimento . Não basta tomar a decisão de dar as costas ao pecado, abrir mão de maus hábitos e tentar pôr em prática os ensinamentos de Cristo, tornando-se uma pessoa extremamente religiosa e fazendo todo o bem possível aos outros. Não há boa intenção, ou decisão, ou moralidade ou religiosidade que possa ser substituto eficiente para a fé. Martinho Lutero e João Wesley apresentavam todas estas características muito antes de terem tido fé. Se, entretanto, deve haver fé, deve existir um fundamento de conhecimento: uma pessoa necessariamente precisa conhecer a Cristo, ouvir falar a respeito da sua cruz e das suas promessas, antes que a salvação pela fé se torne uma possibilidade para ela. É necessário, portanto, que destaquemos estas coisas na nossa apresentação do evangelho, se é que queremos levar os pecadores a abandonar toda a sua confiança em si mesmos, e confiar totalmente em Cristo e no poder do seu sangue remissor, a fim de torná-los aceitáveis diante de Deus. Pois a fé não é nada mais nada menos do que isso.

b) A exigência diz respeito tanto ao arrependimento quanto à . Não basta crer que o pecador só pode ser justificado e tornar-se aceitável através de Cristo e sua morte, e que a própria reputação de uma pessoa é suficiente para fazer cair mais de vinte vezes sobre ela a sentença de condenação de Deus, e que, à parte de Cristo ela não tem qualquer esperança. O conhecimento do evangelho e a fé ortodoxa nele, absolutamente não são substitutos para o arrependimento. Se, entretanto, quisermos que haja arrependimento é preciso, repito, que necessariamente haja também uma base de conhecimento. Todo ser humano precisa ter conhecimento de que, como se coloca na primeira das noventa e cinco teses de Lutero “ quando o nosso Senhor e Mestre, Jesus Cristo, disse ‘ Arrependei-vos ' , ele estava apelando para que a vida toda dos crentes se tornasse uma vida de arrependimento ” ; e deve conhecer ainda as implicações desse arrependimento. Mais do que uma vez, Cristo chamou atenção deliberada para a necessidade de rompimento radical com o passado, como algo relacionado ao arrependimento. “ Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue , dia a dia, tome a sua cruz e siga-me… quem perder a vida por minha causa , esse (mas somente ele) a salvará. ” [84] “ Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida (isto é, coloca tudo isso decididamente em segundo plano de prioridade na sua vida), não pode ser meu discípulo … todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu discípulo . ” [85] O arrependimento que Cristo exige do seu povo consiste em uma firme recusa a levantar qualquer objeção contra as reivindicações que ele possa fazer sobre as suas vidas. Nosso senhor sabia – e quem poderia saber melhor do que ele? – do enorme custo que os seus seguidores teriam que assumir a fim de permanecerem fiéis a esta recusa, e permitirem que ele agisse com eles à sua maneira, o tempo todo, e por isso ele desejava tanto que eles encarassem de frente todas as implicações de ser um discípulo e refletissem sobre elas, antes de se comprometerem com elas. Ele não desejava fazer discípulos que o seguissem sob falsos pretextos. Ele não tinha interesse algum em arregimentar vastas multidões de adeptos professos, que se dissipassem assim que ficassem sabendo o que segui-lo realmente exigiria deles. Portanto, precisamos dar igual destaque, em nossa própria apresentação do evangelho de Cristo, ao custo implícito de seguir a Cristo, e fazer com que os pecadores o encarem de frente, antes de apressá-los a responderem à mensagem do perdão gratuito. Com toda honestidade, não devemos ocultar o fato de que perdão gratuito, em certo sentido, custará tudo; ou do contrário nossa evangelização torna-se um tipo de conto do vigário. E onde o conhecimento se torna ambíguo e obscuro, e portanto um reconhecimento não realista das reais exigências que Cristo impõe, não pode haver arrependimento, e, portanto, também não pode haver salvação.

Eis aí o conteúdo da mensagem evangelística que fomos enviados para dar a conhecer ao mundo.

Notas:

64. At 13.16 ss.

65. At 17.24 ss. Veja ainda At 14.15 ss.

66. Is 6.5.

67. Lc 19.8.

68. Ez 36.26.

69. Jo 3.3 ss.

70. N.T. Enquanto en se traduz por in , no inglês eis foi traduzido como into . No português não ocorre esta distinção, sendo ambas preposições traduzíveis por em .

71. At 16.31.

72. Mt 11.28.

73. Conf. introdução de minha autoria à reedição de 1959 de The Death of Death in the Death of Christ (A Morte da Morte na Morte de Cristo) de John Owen. Esta obra de Owen é uma discussão clássica da complexidade das questões envolvidas em torno da polêmica da “ expiação limitada ” . A temática central não diz respeito ao valor da expiação, considerada em si mesma, nem à disponibilidade de Cristo àqueles que confiariam nele como o seu Salvador. Todos concordam que não se pode estabelecer nenhum limite ao valor intrínseco da morte de Cristo, e que Cristo jamais rejeita aqueles que se dirigem a ele. A controvérsia gira em torno da questão, se a intenção do Pai e do Filho na grande transação do Calvário foi de salvar mais do que àqueles que na realidade já estão salvos. Não há espaço aqui para entrarmos no mérito desta intrincada questão; e, em todos os casos, não há nada no texto que, de uma forma ou de outra, dependesse da resposta que possamos dar a essa questão.

74. Veja Mt 11.28 ss., 22.9; Lc 2.10 s., 12.8; Jo 1.12, 3.14 ss., 6.40, 54, 7.37, 11.26, 12.46; At 2.21, 10.43, 13.39; Rm 1.16, 3.22, 9.33, 10.4 ss.; Gl 3.22; Tt 2.11; Ap 22.17; cf. Is 55.1.

75. The Christian Doctrine of Reconciliation , (A Doutrina Cristã da Reconciliação) p. 287, grifos do autor.

76. At. 17.30.

77. Jo 6.29.

78. Cf. Lc 13.3, 5; 2Ts 2.2 ss.

79. At 10.43.

80. Ap 22.17.

81. Jo 3.16.

82. Tg 2.19.

83. 2Co 7.10.

84. Lc 9.23 ss.

85. Lc 14.26, 33.


Fonte: A Evangelização e a Soberania de Deus, J. I. Packer. 1ª edição. Editora Cultura Cristã, 2002. São Paulo, SP: 52-67).


http://www.monergismo.com/

Este site da web é uma realização de
Felipe Sabino de Araújo Neto®
Proclamando o Evangelho Genuíno de CRISTO JESUS, que é o poder de DEUS para salvação de todo aquele que crê.

TOPO DA PÁGINA

Estamos às ordens para comentários e sugestões.

Livros Recomendados

Recomendamos os sites abaixo:

Monergism/Arquivo Spurgeon/ Arthur Pink / IPCB / Solano Portela / Spurgeon em Espanhol / Thirdmill
Editora Cultura Cristã /Editora Fiel / Editora Os Puritanos / Editora PES / Editora Vida Nova