Herdeiros da Mesma Graça de Vida:
A Família na Experiência dos Reformadores

por

Alderi Souza de Matos



Além da igreja, outra esfera que a Reforma Protestante afetou profundamente foi a do casamento e da família. Durante a Idade Média, e mesmo antes, a vida celibatária havia sido considerada a condição ideal para o cristão, o estado espiritual mais elevado. Jerônimo, que morreu no ano 420, foi particularmente enfático nesse sentido. Ao comparar a virgindade, a viuvez e o casamento, ele deu à primeira o valor numérico de 100, à segunda 60 e ao casamento 30. Mais de um milênio depois, em seus Exercícios Espirituais (1548), Inácio de Loiola exortou os seus seguidores a exaltarem o matrimônio, mas exaltarem ainda mais a castidade. De fato, ao se observar a longa lista de santos católicos, verifica-se que muito poucos deles foram casados.

Uma área correlata que também mereceu reparos por parte dos reformadores foi a da sexualidade. Na concepção tradicional, o sexo, embora permitido dentro do casamento, não devia ser desfrutado. De acordo com um catecismo do final do século 15, os leigos pecavam sexualmente no casamento quando, entre outras coisas, praticavam o sexo por prazer e não pelas razões que Deus ordenou, a saber, evitar o pecado da concupiscência e povoar a terra. Por outro lado, havia a situação irregular de muitos religiosos que, não se mantendo fiéis aos seus votos de castidade, praticavam o sexo fortuito ou viviam abertamente em concubinato.

Os líderes da Reforma entendiam que o celibato é um dom de Deus, mas um dom reservado para as poucas pessoas dotadas de força para viverem vidas de abstinência. Mais excelente era o casamento, divinamente ordenado como o único contexto em que a sexualidade podia ser praticada sem pecado. À luz das Escrituras, esses líderes e seus sucessores expressaram essas convicções tanto em sua teologia quanto em sua vida pessoal.



O exemplo de Lutero

O primeiro reformador foi um grande defensor da dignidade da mulher e da importância do casamento e do lar, tendo escrito amplamente sobre o assunto. Em A Vida Conjugal (1522), Lutero ponderou que Deus ordenou que os homens e as mulheres fossem impelidos por natureza para serem frutíferos e se multiplicarem e que, portanto, as pessoas deveriam se casar para não caírem em impureza, fornicação e adultério. Aqueles que se sentiam inaptos para uma vida de celibato — o que incluía quase todos — deveriam se casar na convicção de que isso estava de acordo com a vontade de Deus e de que Ele iria prover tanto um cônjuge quanto o sustento necessário.

Por muito tempo, a literatura antiprotestante afirmou que Lutero havia rompido com Roma para poder se casar. O fato é que seu casamento só ocorreu vários anos depois da Reforma, no dia 13 de junho de 1525, quando ele se uniu à ex-freira Catarina de Bora. Comentando o fato, o reformador assim se expressou: “Repentinamente, inesperadamente, e enquanto a minha mente estava voltada para outras questões, o Senhor me prendeu com o jugo do casamento... Mal posso acreditar, mas as testemunhas são muito fortes”. Lutero tinha uma personalidade forte e podia ser muito agressivo em suas palavras e atitudes; todavia, ele sempre se referiu à esposa e à sua vida familiar com as expressões mais elogiosas.

Dotada de um temperamento igualmente forte, “Katie” revelou-se uma excelente esposa e administradora do lar, despertando grande respeito e admiração em seu famoso marido. Ele disse certa vez: “Eu sou um senhor inferior; ela, o superior. Eu sou Arão; ela, o meu Moisés”. O casal teve seis filhos: Hans, Elizabete, Madalena, Martinho, Paulo e Margarida. Lutero era por vezes um pai rigoroso, mas ao mesmo tempo nutria profunda afeição por seus filhos. Ele sentiu profundamente a morte de Elizabete, com 8 meses de idade, e principalmente a de Madalena, com 13 anos, em 1542. Apesar das lutas, podia dizer: “Tenho sido muito feliz em meu casamento, graças a Deus... Ter paz e amor no casamento é a dádiva mais próxima do conhecimento do evangelho”.



O reformador de Genebra

Como é bem conhecido, os dois maiores reformadores tinham temperamentos muito diferentes. Enquanto Lutero era impulsivo e extrovertido, Calvino tinha uma personalidade sensível e introspectiva. Mas isso não impediu que este também usufruísse as alegrias da vida conjugal e familiar. Depois de algumas tentativas malsucedidas com candidatas que lhe haviam indicado, Calvino casou-se em agosto de 1540 com a viúva Idelette de Bure, uma de suas paroquianas na pequena igreja de refugiados que pastoreou por 3 anos em Estrasburgo. O casamento foi oficiado pelo colega e amigo Guilherme Farel, que, escrevendo a outro pastor, disse que Calvino havia se casado com uma mulher “íntegra e honesta”, e “até mesmo bonita”.

Idelette veio da atual província holandesa de Gelderland. Seu primeiro marido, o comerciante Jean Stordeur, um ex-anabatista que havia abraçado as idéias de Calvino, faleceu vitimado pela peste, deixando-a com dois filhos — um menino e uma menina. Em suas cartas a amigos, Calvino disse que nunca imaginou ser possível tamanha felicidade. Idelette mostrou-se uma companheira exemplar e seu marido se orgulhava do seu bom senso, da sua coragem e da sua espiritualidade calorosa e comunicativa. O relacionamento quase perfeito foi, contudo, sombreado por algumas provações. Os dois cônjuges tinham muitos problemas de saúde e seu único filhinho, Jacques, morreu pouco depois de nascer em 28 de julho de 1542.

Após quase 10 anos de harmoniosa vida conjugal, a própria Idelette veio a falecer no dia 29 de março de 1549. Escrevendo pouco depois ao colega Pierre Viret, Calvino afirmou: “Choro a perda da minha melhor companheira... Durante a sua vida, ela foi a fiel auxiliadora do meu ministério”. Nos 15 anos que ainda viveu, o reformador não tornou a casar-se, mas não viveu só — moravam com ele seus irmãos, suas famílias, estudantes e hóspedes freqüentes.



A tradição puritana

Muitos herdeiros das primeiras gerações de reformadores preservaram os seus ensinos e práticas no que diz respeito à centralidade do casamento e da família. Um exemplo eloqüente nesse sentido foi deixado pelos puritanos, os calvinistas ingleses que defendiam a “pureza” da Igreja da Inglaterra em sua doutrina, culto e forma de governo. Por causa da sua cosmovisão teocêntrica e da convicção de que Deus é senhor de todas as áreas da vida, eles atribuíram enorme importância à família, unidade básica da igreja e da sociedade. Esses reformados consideravam a família uma pequena igreja, o nível mais básico em que se deveria vivenciar a realidade do pacto no relacionamento entre os cônjuges, e entre pais e filhos.

Um dos exemplos mais belos dessa ênfase dos puritanos no casamento e na família pode ser observado na experiência do célebre pastor, teólogo e escritor norte-americano Jonathan Edwards (1703-1758), que viveu em Massachusetts, na Nova Inglaterra. Jonathan casou-se com Sarah Pierrepoint em 28 de julho de 1728, quando ela tinha 17 anos. Sarah era filha do ministro congregacional de New Haven e bisneta do primeiro prefeito de Nova York. O casal Edwards teve onze filhos, todos os quais chegaram à idade adulta, fato raro naquela época. Entre os seus descendentes contam-se centenas de pessoas destacadas, incluindo professores universitários, advogados, médicos, políticos, banqueiros, industriais, pastores e missionários.

As pessoas que conheceram esse notável casal testificaram sobre a perfeita harmonia e mútuo amor e estima que sempre existiu entre eles. Edwards tratava a esposa como sua igual e compartilhava com ela todas as suas preocupações e atividades. Eles costumavam cavalgar juntos nos bosques ao cair da tarde para poderem conversar sem interrupções e, antes de se recolherem para dormir, tinham em conjunto os seus momentos devocionais. Edwards também se mostrou um pai atencioso e amigo. Tinha o hábito de levar um filho em sua companhia quando viajava para outra cidade e dava toda a sua atenção aos filhos por uma hora antes do jantar, todas as noites. O grande evangelista George Whitefield comentou: “Nunca vi casal mais afetuoso”.



A casa e a igreja

Um dos argumentos usados pelos defensores do celibato clerical é que se os ministros cristãos se casarem eles não terão tempo para cuidar das coisas de Deus, visto que estarão envolvidos com os interesses e necessidades de suas famílias. Os exemplos acima mostram que isso não é verdade. Esses três homens extremamente ocupados, que se destacaram como líderes dinâmicos e produziram obras monumentais, também encontraram tempo para glorificar a Deus, constituindo boas famílias cristãs. Afinal, como argumentou o apóstolo Paulo, se alguém não cuidar bem da sua própria casa, como irá cuidar da igreja de Deus? (1 Tm 3.5.) Mais que isso, eles mostraram que é no contexto da vida comum, com suas alegrias e tristezas, que a fé cristã deve ser vivida em sua plenitude.


Sobre o autor: Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil.

Fonte: Revista Ultimato


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