Haverá uma Razão de Justiça para que a Duração das Penas
Não Seja Mais Extensa do que a dos Pecados?

por

Santo Agostinho



Alguns daqueles, contra os quais defendemos a Cidade de Deus, consideram injusto que, pelos pecados, por muito graves que sejam, cometidos, sem dúvida, num curto espaço de tempo, alguém seja condenado a uma pena eterna — como se a justiça legal vez alguma tomasse isso em consideração, para impor a cada um uma pena proporcional ao tempo que o delito levou a cometer. Escreve Cícero que nas leis há oito gêneros de penas: a multa (damnum), a prisão (vincula), os açoites (verbera), o talião, a ignomínia, o exílio, a morte, a servidão. A não ser a de talião, qual destas é a que restringe a sua duração à brevidade própria de cada delito, de maneira a ser punido durante um tempo estritamente igual àqueles de que se usou para o cometer? Realmente, o talião exige que cada um pague o que fez. Daí a expressão da lei:

Olho por olho, dente por dente [1]

Pode-se, de fato, fazer com que alguém perca um olho, devido a severa punição, em tão breve tempo quanto ele próprio demorou em arrancá-lo a outrem por criminosa perversidade. Pelo contrário, se é razoável castigar como azorrague o beijo dado à mulher de outrem — não é verdade que aquele que o fez num instante seja açoitado durante horas, tempo incomparavelmente mais longo, e que a doçura duma breve volúpia seja castigada por um longo sofrimento? Quê! algum juiz decidirá que deve estar aprisionado durante tanto tempo quanto o que demorou ao fazer o que lhe valeu as cadeias? Nesse caso não expia com toda a justiça durante longos anos um escravo, aferrolhado em grilhões por ter ferido ou atingido seu senhor, de palavras ou com um golpe, no mais célere instante? Na verdade, a multa, a ignomínia, o exílio, a servidão, que, a maior parte das vezes são impostas sem nenhuma indulgência a amenizá-las, não são, parece, em relação à extensão desta vida, semelhantes às penas eternas? Claro está que não podem ser eternas porque nem a própria vida que por estas penas é castigada se prolonga pela eternidade. Todavia, os pecados que são punidos com penas de muita longa duração, são cometidos num brevíssimo espaço de tempo e jamais houve quem pensasse que os tormentos dos que cometem o mal devem terminar num espaço de tempo tão rápido como aquele em que foi cometido o homicídio, o adultério, o sacrilégio ou qualquer outro crime a avaliar, não pela duração do tempo utilizado, mas pela magnitude da iniqüidade ou da impiedade. O que é condenado à morte por um crime grave, será que as leis avaliam o seu suplício pelo tempo, que é brevíssimo, em que é executado e não porque o tiram para sempre da sociedade dos vivos? Tirar os homens desta sociedade mortal pelo suplício da primeira morte corresponde a tirar os homens da cidade imortal pelo suplício da segunda morte. Efetivamente, assim como as leis da cidade mortal não fazem com que à vida volte um homem executado, assim também as leis da cidade imortal não fazem com que volte à vida eterna um condenado à segunda morte. Como é então verdade, replicam eles, o que diz o vosso Cristo:

Pela medida com que medirdes, por essa medida sereis medidos [2],

se um pecado temporal é punido com um suplício eterno? Não reparem que se disse que esta medida é a mesma, não devido a um igual espaço de tempo mas devido a uma igual troca de mal, isto é, quem tiver feito o mal pagará com o mal. Aliás, isto poderia ter sido tomado no sentido próprio na questão de que o Senhor falava quando isso dizia, isto é, quando falava acerca de julgamentos e condenações. Conseqüentemente, quem julga e condena injustamente, se for julgado e condenado justamente, recebe na mesma medida, embora não receba o que deu. Fê-lo, realmente, por um julgamento e, por um julgamento, sofre — embora tenha feito, por condenação, o que é iníquo e por condenação sofrerá o que é justo.

 


NOTAS:

[1] - Oculum pro oculo, dentem pro dente. Êxodo, XX, 24.

[2] - In qua mensura mensi fueritis, in ea remetietur vobis. Lucas, VI, 38.

Fonte: A Cidade de Deus, Volume III, Fundação Calouste Gulbenkian, páginas 2167-2169.



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