O Livro de Ouro da Oração

por

João Calvino

 

 

EXERCÍCIO PERPÉTUO DE FÉ PELA QUAL RECEBEMOS DIARIAMENTE BENEFÍCIOS DA PARTE DE DEUS

1.Lugar da oração no conjunto da vida cristã

Como sabemos, e como também nos parece o homem está clara e completamente destituído de todo bem e desprovido de meios para encontrar sua própria salvação. Por conseguinte, para que ele obtenha socorro para sua necessidade, deve ele ir além de si mesmo e buscá-lo alhures. Temos também demonstrado que o Senhor amável e espontaneamente manifesta-se-nos a si mesmo em Cristo, em quem ele nos oferece toda felicidade no lugar de nossa miséria, toda abundância no lugar de nossa pobreza, abrindo-nos os tesouros dos céus, de maneira que podemos nos converter com plena confiança a seu Filho amado; para que dele dependa toda nossa expectação, nele descansando e se Lhe apegando com toda esperança. Esta, na verdade, é aquela filosofia secreta e oculta que não pode ser aprendida por silogismos; uma filosofia entendida completamente apenas por aqueles cujos olhos Deus tem de tal forma aberto para que vejam a luz em sua luz.

No entanto, após termos sidos ensinados pela fé a conhecermos aquilo que nos é indispensável ou nos falta e que está em Deus e em nosso Senhor Jesus Cristo, em quem aprouve ao Pai que habitasse toda plenitude, para que daí tirássemos como de uma fonte inesgotável, apenas aquilo que buscamos nele mediante a oração, e que sabemos estar ali. Porque de outro modo, conhecer a Deus como o soberano senhor e dispensador de todo bem, que nos convida a que apresentemos nossas petições, e, ainda assim, não se aproximar ou pedir-lhe algo é o mesmo que se ouvíssemos falar que há para nós um tesouro disponível e o deixássemos enterrado.

Por isso, o Apóstolo, para mostrar que a fé desacompanhada de oração a Deus não pode ser genuína, estabeleceu esta ordem: como a fé provém do Evangelho, assim pela fé nossos corações são instruídos a invocarmos o nome de Deus (Rm 10,14).

E isto é o que foi expresso a pouco, a saber, que o Espírito de adoção, que sela o testemunho do Evangelho em nossos corações, nos concede coragem para fazermos nossas petições conhecidas por Deus, com gemidos que não podem ser expressos, fazendo-nos clamar, Abba, Pai (Rm 8,26).

Devemos, pois, agora tratar mais profundamente deste último ponto, do qual temos até então falado apenas incidentalmente.

2.Definição, necessidade e utilidade da oração

Ao orarmos, portanto, somos obrigados a penetrar naquelas riquezas que estão entesouradas para nós e que estão junto ao nosso Pai celestial. Pois há um tipo de comunicação entre Deus e os homens, pela qual estes adentram ao santuário celestial, e diante dele apelam para que se lembre de suas promessas. Para que quando a necessidade requerer eles possam aprender através da experiência que não era em vão aquilo em que eles acreditavam apenas com base na autoridade de sua palavra. Por conseguinte, vemos que nada é posto diante de nós corno um objeto de nossa expectação para com o Senhor que não nos é ordenado a lhe pedirmos em oração; é tão grande esta verdade, que a oração é quem encontra e desenterra aqueles tesouros que o Evangelho de nosso Senhor faz descobrirmos por meio do olhar de nossa fé.

A necessidade e utilidade deste exercício de oração nenhuma palavra pode expressar de modo suficiente. Seguramente, não é sem razão que nosso Pai celestial declara que a única segurança de nossa salvação está em invocarmos ao seu nome (Jl 2,32); visto que, por ela invocamos a presença de sua providência para que nos assista, cuidando e provendo o quanto nos é necessário; e por seu poder e virtude, com os quais nos sustém, quando fracos e desfalecidos, para que por meio de sua bondade recebamos graciosamente, embora estejamos miseravelmente sobrecarregados de pecados; em uma palavra, invocamo-lo para que ele se manifeste a nós em toda a sua perfeição.

E, por conseguinte, nos proporcione a paz e a singular tranqüilidade à nossa consciência, pela qual somos forçados a nos colocarmos diante do Senhor, para que assim descansemos plenamente satisfeitos com a garantia de que nenhum dos nossos males fique oculto dele, pois que Ele é, não só capaz, mas também deseja nos fazer aquilo que nos é melhor.

3.Objeção extraída da onisciência de Deus. Resposta

Alguém poderá dizer: Ele não sabe sem uma admoestação quais são as nossas dificuldades e o que deve vir de encontro ao nosso interesse, de maneira que parece um tanto supérfluo que ele seja solicitado por nossas orações , como se ele fizesse vista grossa ou até mesmo dormisse, até que fosse despertado pelo som de nossa voz? Aqueles que, desse modo, argumentam não atentam para o fim para o qual o Senhor nos ensinou a orar. Não foi tanto por sua causa quanto pela nossa. Ele, na verdade, deseja, como é justo, que a devida honra lhe seja dada por meio do reconhecimento de que tudo que os homens desejem ou sintam seja útil e orem para obter algo que provenha dele. Contudo, mesmo o benefício das honrarias que nós, desse modo, lhe ofertamos redunda em benefício para nós mesmos. Por isso, os santos patriarcas, quanto mais confiantemente proclamavam as misericórdias de Deus para si, tanto mais fortemente os outros se sentiam incitados a orar.

Para que isto se confirme basta notar o exemplo de Elias, que estando seguro do propósito de Deus, teve um bom fundamento para que prometesse a chuva ao rei Acabe, e nem por isso deixa de orar insistentemente e envia seu servo sete vezes a verificar a formação da chuva (lRs 18,41-43). Não que ele descresse do oráculo, mas porque ele sabia ser seu dever colocar seus desejos diante de Deus, para que sua fé não se tornasse sonolenta ou tórpida, pois era seu dever propor sua petição a Deus.

Seis razões principais de orar a Deus.

Por conseguinte, embora seja verdadeiro que enquanto estamos apáticos ou invisíveis à nossa miséria, ele desperta e fica atento para usar e às vezes até auxiliar-nos sem que tenhamos pedido; é para nosso interesse, portanto, que precisamos suplicar-lhe constantemente:

Primeiramente, para que nosso coração possa sempre estar inflamado com um contínuo e ardente desejo de buscá-lo, amá-lo e servi-lo, enquanto nos acostumamos a recorrermos somente a ele, como uma âncora sagrada, em cada necessidade.

Além do mais, para que nenhum desejo, não nos leve a fazer algo vergonhoso diante dele, ou para evitar que algo entre em nossas mentes, enquanto aprendemos a colocar todos os nossos desejos à sua vista e, desse modo, derramarmos nosso coração diante dele.

E também, para que possamos estar preparados a receber todos os seus benefícios com verdadeira gratidão e ação de graças, pois são nossas orações que nos fazem lembrar que elas procedem de suas mãos.

Igualmente, para que uma vez tenhamos alcançado o que lhe pedimos nos convençamos de que ele ouviu nossos desejos, e por eles sejamos muito mais fervorosos em meditar sobre sua liberalidade, e, às vezes, desfrutarmos com muito mais alegria das misericórdias que nos tem feito, compreendendo que as temos alcançado mediante a oração.

Finalmente, a fim de que o uso e a. experiência confirmem em nós, conforme a nossa capacidade, sua providência, compreendendo que não somente promete que jamais nos faltará, que por sua própria vontade nos abre a porta para que no momento da necessidade possamos propor-lhe nossas petições e que não nos desapontará se divertindo com seu povo corri palavras vãs , prova-nos ser uma ajuda presente e real.

Por todos estes motivos nosso misericordiosíssimo Pai jamais está ocioso nem dormita, não obstante freqüentemente pareça assim fazer, é desse modo, no entanto, que ele pode nos exercitar, a pedir-lhe e importunar-lhe, pois, de outro, estaríamos sonolentos e indolentes, e não pediríamos, e nem seriamente lhe rogaríamos por nada para nosso próprio bem.

É, portanto, grande absurdo dissuadir homens a orar por pretender que a Divina Providência está sempre assistindo conservar todo o universo, e que, portanto, é supérfluo insistir com nossas súplicas, quando, do contrário, o próprio Senhor declara: “Próximo a todos aqueles que invocam está o Senhor, a todos aqueles que o invocam em verdade” (Sl 145,18).

Em nada são melhores as frívolas alegações de outros, de que é supérfluo orar por coisas que o Senhor já se dispôs por sua própria vontade a conceder; visto que é do seu agrado que aquelas muitas coisas que fluem de sua liberalidade espontânea devam ser reconhecidas por meio de nossas orações. Isto é testificado por aquela memorável declaração nos salmos a qual muitas outras estão de acordo: “Os olhos do Senhor estão sobre os justos e seus ouvidos estão abertos aos seus clamores.” (Sl 34:15). Esta passagem demonstra que Deus procura a salvação dos fiéis por sua própria vontade, de tal maneira que é de bom grado que ele deseja que eles exercitem sua fé para que se purifiquem de seu esquecimento ou negligência.

Os olhos de Deus estão prontos para auxiliar ao cego em sua necessidade; mas, quer igualmente ouvir aos nossos gemidos, para que possa nos conceder a melhor prova de seu amor. E desse modo ambas as coisas são verdadeiras, “Aquele que guarda a Israel não dormirá e sempre estará alerta” (Sl 121:3) e sempre que ele nos vir mudos e entorpecidos, ele se isolará como se nos tivesse esquecido.

 


Fonte: João Calvino – O livro de Ouro da Oração – Editora Cristã Novo Século – 2003 – Tradutor: Cláudio J.A. Rodrigues - Extraído da : Instituição da Religião Cristã – Livro Terceiro,Cap.XX – Intitulado: Da Oração.

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