Salmo 78:1-2

por

João Calvino



(Clique aqui para baixar a fonte hebraica usada neste artigo)



Para compreender muitas coisas dentro de pouco espaço deve-se observar que neste Salmo há dois tópicos principais. De um lado, declara-se como Deus adotou para si a Igreja, oriunda da posteridade de Abraão, quão terna e graciosamente ele cuidou dela, quão maravilhosamente ele a tirou do Egito e quão variadas foram as bênçãos que ele lhe outorgou. Do outro lado, os judeus, que lhe eram tão devedores pelas grandes bênçãos que ele lhes conferira, são censurados por terem de tempo em tempo perversa e traiçoeiramente se revoltado contra um Pai tão liberal; de modo que sua inestimável bondade foi claramente manifesta, não só em havê-los outrora adotado tão graciosamente, mas também em continuar no curso ininterrupto de sua bondade, tudo fazendo contra a rebelião de um povo tão pérfido e contumaz. Além disso, faz-se menção da renovação da graça de Deus, e como foi de uma segunda eleição que ele escolheu a Davi, da tribo de Judá, para alçar o cetro sobre o reino de Israel.

 

Asafe ministrando instrução

 

[vv. 1-6]

Dai ouvidos a minha lei, povo meu; [1] inclinai vossos ouvidos às palavras de minha boca. Eu abrirei minha boca em parábola; pronunciarei ditos obscuros desde os tempos de outrora: O que temos ouvido e conhecido, e nossos pais nos revelaram. Não encobriremos de seus filhos nas gerações vindouras, contando sobre os louvores de Jehovah, seu poder e suas obras maravilhosas que ele fez. Ele estabeleceu um testemunho em Jacó e designou uma lei em Israel; pois ele ordenou a nossos pais que os fizessem conhecidos a seus filhos: Para que a geração vindoura os conhecesse, e para que os filhos a nascerem se levantassem e declarassem a seus filhos.


1. Dai ouvidos a minha lei, povo meu!
Por todo o Salmo podemos conjeturar, com boa probabilidade, que ele foi escrito muito depois da morte de Davi; pois aí temos celebrado o reino erigido por Deus na família de Davi. Aí também a tribo de Efraim, a qual lemos ter sido rejeitada, é contrastada com e posta em oposição à casa de Davi. Disto é evidente que as dez tribos estavam naquele tempo em estado de separação do restante do povo eleito; porque deve haver alguma razão pela qual o reino de Efraim é estigmatizado com o estigma da desonra como sendo ilegítimo e bastardo. [2]

Quem quer que tenha sido o escritor inspirado deste Salmo, ele não introduziu Deus falando como alguns imaginam, mas ele mesmo se dirige aos judeus no caráter de mestre. Não há objeção quanto ao fato de ele chamar o povo de meu povo e a lei, minha lei; não sendo algo incomum que os profetas tomavam por empréstimo o nome daquele por quem eram enviados, para que sua doutrina desfrutasse de maior autoridade. Aliás, a verdade que lhes havia sido confiada pode, com propriedade, ser chamada sua. Assim Paulo, em Romanos 2.16, se gloria no evangelho como sendo meu evangelho, expressão essa que não deve ser entendida como significando que ele [o evangelho] era um sistema que devia sua origem a ele [Paulo], mas que ele era meramente pregador e testemunha dele. E tenho cá minha dúvidas se os intérpretes estão estritamente certos em traduzir a palavra hrwt, torah, por lei. [3] O significado dela parece ser um tanto mais geral, como transparece da sentença seguinte, onde o salmista usa a frase: as palavras de minha boca, no tempo sentido. Se considerarmos com que intenção mesmo aqueles que fazem veementes confissões de ser os discípulos de Deus ouvem sua voz, ficaremos admirados com o fato de que os profetas tivessem boa razão para introduzir suas lições de instruções com uma solene chamada de atenção. É verdade que ele não se dirige aos obstinados que não se deixam instruir, que teimosamente recusam submeter-se à Palavra de Deus; mas como até mesmo os verdadeiros crentes geralmente são tão relutantes em receber instrução, esta exortação, longe de ser supérflua, era muitíssimo necessária para curar a indolência e inatividade entre eles.

Para assegurar uma atenção mais firme, ele declara ser seu propósito discutir temas de um caráter profundo, elevado e difícil. A palavra lXm mashal, a qual traduzi por parábola, denota sentenças graves e notáveis, tais como adágios, provérbios e apotegmas.[4] Como, pois, a própria questão que temos tratado, se é de peso e importante, desperta a mente dos homens, a pena inspirada afirma que é seu propósito pronunciar somente sentenças notáveis e ditos extraordinários. A palavra twdyx, chidoth, a qual, seguindo a outros, traduzi por enigmas, é aqui usada não tanto para sentenças obscuras, mas para ditos que são enfatizados e dignos de nota especial.[5] Ele não pretendia encerrar seu cântico com linguagem ambígua, mas clara e distintamente conservar tanto os benefícios de Deus quanto a gratidão do povo. Como eu já disse, seu desígnio é apenas estimular seus leitores a pensarem e considerarem mais atentamente o tema proposto. Esta passagem é citada por Mateus [13.35] e aplicada à pessoa de Cristo quando ele manteve a mente do povo em suspenso através de parábolas às quais não podiam entender. O objetivo de Cristo, de agir assim, era provar que ele era um Profeta de Deus distinto dos demais, e que assim pudesse ser recebido com maior reverência. Visto que ele então se assemelhava a um profeta por pregar mistérios sublimes num estilo de linguagem acima do gênero comum, isso que o escritor sacro afirma aqui acerca de si mesmo é com propriedade transferido para ele [Cristo]. Se neste Salmo resplandece uma majestade tal que com razão incita e inflama os leitores com o desejo de aprender, deduzimos disto com que solícita atenção ele nos faz receber o evangelho, no qual Cristo nos abre e nos exibe os tesouros de sua celestial sabedoria.

[...]


NOTAS:

[1] - “Ou, ma doctrine.” - v.f.m. “Ou, minha doutrina, ou instrução”.

[2] - Calmet aponta a composição deste Salmo para os dias de Asa, o qual, ajudado pelos sírios, obteve uma magistral vitória sobre os israelitas; e trouxe de volta ao culto puro muitos dentre as tribos de Efraim, Manassés e Simeão. Veja-se 2 Crônicas 15 e 16. Schnurrer supõe que o propósito especial para o qual ele foi composto era a celebração da vitória decisiva que foi efetuada contra o reino de Efraim ou Israel por Abias, rei de Judá, durante o reinado de Jeroboão. Walford pensa ser esta opinião bem provável. Diz ele: “Há uma eulogia emitida sobre Davi na conclusão do Salmo, que faz provável que o autor dele desejasse conciliar o favor de todo o povo para com os sucessores de Davi, de quem Jeroboão havia se revoltado. E no versículo 9 há uma referência a Efraim que oferece algum grau de evidência em abandono da hipótese de Schnurrer. Seja o que for pensado dessa hipótese, não podemos hesitar em admitir que o próprio Salmo é claro, pungente e persuasivo, e deve ter sido sentido assim pelas pessoas para cujo uso ele foi escrito”.

[3] - Já vimos que Calvino, na margem da versão francesa, lê instrução, e esta é a redação adotada por Street, Fry, Morison e Walford.

[4] - Veja-se vol. 2, p. 374, nota 9.

[5] - Walford traduz twdyx, chidoth, “um registro impressionante”. Sua versão do primeiro e segundo versículo é:

“Ouvi, ó meu povo, minha instrução;
Inclinai vossos ouvidos às palavras de minha boca.
Abrirei minha boca com um discurso instrutivo.
Declararei um registro impressionante dos tempos antigos
”.

“As palavras lei, parábola e ditos obscuros”, observa ele, “que são encontradas na tradução inglesa dos versículos 1 e 2, não são apropriadas às descrições que estão contidas no Salmo. São aqui alteradas por outras que estão de acordo com os temas que se seguem e podem ser apoiadas pelo uso das palavras originais que são empregadas”. Semelhante é a nota de Street neste lugar. Ele traduz twdyx, chidoth, “verdades realçadas”; e outros que sua tradução deve ser ditos obscuros. “Não há nada de obscuro neste Salmo”, diz ele, “ele contém verdade histórica instrutiva, porém não enigma. Portanto, a redação da Bíblia inglesa, ditos obscuros, não parece correta. A Septuaginta traduz a palavra dihghma, Ezequiel 17.2, e essa redação se adequa melhor aqui do que prblhmata. Tenho tentado expressar a relação da palavra ddx, acutum est”. Veja-se vol. 2, desta obra, p. 375, nota. Mas, como observa Dinnock, “As várias transações do pacto mosaico recitadas mais adiante bem que poderiam ser chamadas de parábolas e discursos obscuros; ou, como o árabe, mistérios, considerados como tipos ou figuras do cristão; e visto que esse prisma oferece amplo motivo de contemplação, servindo não só como um pedagogo para conduzir-nos a Cristo, mas para guardar-nos firmes na fé e na obediência a Davi nosso rei”.

 

 


Fonte: João Calvino, O Livro dos Salmos, Volume 3, Editora Paracletos, páginas 194-197


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