Justificação - Pela Fé Somente ou Pela Fé Aliada às Obras?

por

Anthony Hoekema

Que dizer a respeito do ensino de Tiago sobre justificação ? Quando comparamos o que Tiago disse no capítulo 2 de sua carta, dos versos 14 a 26 com o que Paulo ensinou sobre justificação, parece haver uma contradição entre os dois. Paulo diz:

Gálatas 2:16

16 sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém será justificado.

Romanos 3:28

28 Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei.

E Tiago diz: Tiago 2:14-26

14 Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo?
15 Se um irmão ou uma irmã estiverem carecidos de roupa e necessitados do alimento cotidiano,
16 e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, sem, contudo, lhes dar o necessário para o corpo, qual é o proveito disso?
17 Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta.
18 Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me essa tua fé sem as obras, e eu, com as obras, te mostrarei a minha fé.
19 Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem. Até os demônios crêem e tremem.
20 Queres, pois, ficar certo, ó homem insensato, de que a fé sem as obras é inoperante?
21 Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque?
22 Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou,
23 e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça; e: Foi chamado amigo de Deus.
24 Verificais que uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente.
25 De igual modo, não foi também justificada por obras a meretriz Raabe, quando acolheu os emissários e os fez partir por outro caminho?
26 Porque, assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta.

Três tipos de solução a esse problema são sugeridos: (1) Tiago está combatendo o ensino de Paulo; (2) Tiago está combatendo um entendimento antinomianista dos ensinos de Paulo sobre justificação; ou (3) Paulo e Tiago lidam com diferentes problemas e, assim, não há contradição.

Os que adotam a primeira solução, que vêem uma contradição entre Paulo e Tiago, podem simplesmente aceitar a possibilidade de haver ensinos contraditórios nas escrituras (como faz Karl Barth que menciona essa diferença entre Paulo e Tiago como exemplo)1, ou podem inclinar-se a rejeitar Tiago como não pertencente ao cânon da escritura. Entretanto, nenhuma dessas asserções é aceitável.

Uma vez que Tiago foi escrito antes de Romanos, como é geralmente aceito, as duas primeiras soluções são improváveis. Isso deixa a terceira como a mais satisfatória: Paulo e Tiago estão tratando de problemas diferentes. O problema que Paulo enfrentava era o da oposição de pessoas que confiavam na sua guarda da lei para salvação (como ele mesmo havia feito durante o seu período farisaico); assim, ele ensinava que a pessoa era justificada pela fé à parte das obras da lei – isto é, obras feitas como meios de comprar a salvação. Tiago, porém, estava combatendo pessoas inclinadas a pensar que uma crença meramente intelectual nas verdades do Cristianismo era suficiente para a salvação. Veja 2.14: “Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo?” Tiago responde a pessoas desse tipo dizendo: “A fé sem obras é morta” (V.26).

Deve-se notar, no entanto, que as obras sobre as quais Tiago escreve não são as mesmas que Paulo tinha em mente. Paulo, em sua argumentação, sempre usa a expressão “obras da lei” ou “obras de lei” (erga nomou), quando diz que somos justificados à parte das obras (Romanos 3.20, 28; Gálatas 2.16). Quando Tiago fala de obras, por outro lado, ele não as chama de “obras da lei”, mas simplesmente “obras” (erga). Lutero dá-nos a chave para essa distinção:

“Ele (Paulo) chama de obras as obras da lei que alguém faz à parte da fé e da graça, e aquilo a que a lei impele pelo medo da punição ou pela ilusória promessa de recompensa temporal. Mas obras de fé, ele chama as obras que são feitas no espírito de liberdade e só [vindas; NT.] do amor de Deus. Isso só pode ser feito por quem é justificado pela fé. As obras da lei, entretanto, em nada contribuem para a justificação; na verdade, elas são um estorvo porque impedem alguém de ver a si mesmo como injusto e necessitado da justificação”2

Quando Tiago diz que ninguém pode ser justificado pela fé que não tem as obras da fé, ele não está dizendo algo diferente de Paulo eu expressa o mesmo pensamento em muitos lugares, como Gálatas 5:6 “Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão têm valor algum, mas a fé que atua [opera] pelo amor”.

Resta a questão do que significa, no dizer de Tiago, que alguém é justificado pelas obras (Tiago 2.21,24). Está ele contradizendo Paulo ? Não se entendermos corretamente o uso que Tiago faz da palavra “justificar” (dikaioo). Quando Tiago diz que Abraão foi justificados pelas obras ao oferecer Isaque sobre o altar (v.21), não está negando que Abraão foi realmente justificado muito tempo antes que isso ocorresse – quando, segundo Gênesis 15.6, “Ele creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça”. O ponto que Tiago focaliza é que “foi pelas obras que a fé se consumou” (eteleiothe – “chegou aos seu objetivo) (v.22); ou seja, que a obra de oferecer Isaque revelava que a fé pela qual Abraão havia sido justificado era a fé verdadeira. Essa obra mostrava que a fé de Abraão era genuína. Sugiro, então, que o entendimento de dikaioo em Tiago signifique: “ser revelado como justificado”. James Packer coloca assim:

Em Tiago 2.21,24,25 sua referência [a dikaioo] é prova de sua aceitação por Deus, que acontece quando suas ações mostram que ela tem o tipo de fé viva e operosa à qual Deus imputa justiça... A justificação que Tiago enfoca não é a aceitação original por Deus, mas a subsequente reivindicação de sua profissão de fé em sua vida. É na terminologia, não na teologia, que Tiago difere de Paulo.3
O verso 24 poderia, então, ser traduzido assim: “Você vê que um homem é revelado como justificado pelas obras e não pela fé somente”, isto é, que uma pessoa não será justificada pela fé que permanece só, mas pela fé que revela sua genuinidade por meio de obras de graciosa obediência.

Assim, a despeito da aparente contradição entre Paulo e Tiago, há aí uma profunda unidade. Paulo concordaria com Tiago que só a fé viva justifica. Paulo e Tiago concordariam com o dito de Calvino:

“É a fé sozinha que nos justifica, mas no entanto, a fé que justifica não está sozinha”.4


Notas:

1. Church Dogmatics (Edimburgo: T. Clark, 1956), I/2, p. 509.
2. Lectures in Romans, vol. 15 da Library of Christian Classics, trad. e org. por Wilhem Pauck (Filadélfia: Westminster, 1961), p. 101.
3. “Justification”, EDT, p. 594. Para conhecer entendimentos semelhantes de dikaioo em Tiago, ver Calvino Commentary on James, trad. de A. W. Morrison (Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p. 283; James Buchanan, The Doctrine of Justification (Grand Rapids: Baker, 1955), p. 247; R. V. G. Tasker, “James, Epistle of”, The New Dictionary of the Bible, org. por J. D. Douglas (Grand Rapids: Eerdmans, 1962), p. 598.
4. Calvino, “Antidote to the Canons of the Council of Trent” in Tracts and Treatises in Defense of the Reformed Faith, trad. de Henry Beveridge (1851; Grand Rapids, Eerdmans, 1958), 3:152.


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