A Doutrina da Justificação (1)
Sua Importância para o Evangelho Hoje

por

Cornelis P. Venema

 

Com este, eu começo uma breve série de artigos a respeito da doutrina da justificação pela graça somente e por meio da fé somente. Estes artigos são adaptados de duas palestras ministradas na Conferência da Banner of Truth, em maio de 1998 [1]. Apesar de já ter sido editado para o The Outlook , os artigos ainda retêm alguma coisa em seu conteúdo como originalmente foi entregue. Em anos recentes, tem havido um bom número de declarações de união a respeito da doutrina da justificação, feita por proeminentes representantes das igrejas evangélica e Católica Romana. Mais recentemente, em 31 de outubro de 1999, data comumente associada ao início da Reforma Protestante, representantes da Federação Luterana Mundial e da Igreja Católica Romana assinaram uma declaração de consenso sobre a doutrina, declarando que as diferenças históricas entre Protestantismo e Catolicismo quanto este assunto foram superadas. Estes acontecimentos tornam a matéria algo de certa urgência, pede que os crentes reformados dêem uma boa olhada na doutrina da justificação e temam que nossa herança da fé reformada, e o artigo sobre a mais básica verdade do Evangelho sejam comprometidos. O artigo a seguir, o primeiro desta série, somente objetiva estabelecer a importância do assunto para a igreja hoje. Começa com a citação de uma passagem de Romanos, que provê uma clássica declaração da doutrina.

“Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus. Por isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado. Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas; Isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que crêem; porque não há diferença. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus. Onde está logo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé. Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei. É porventura Deus somente dos judeus? E não o é também dos gentios? Também dos gentios, certamente, visto que Deus é um só, que justifica pela fé a circuncisão, e por meio da fé a incircuncisão. Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei. Que diremos, pois, ter alcançado Abraão, nosso pai segundo a carne? Porque, se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não diante de Deus. Pois, que diz a Escritura? CREU ABRAÃO EM DEUS, E ISSO LHE FOI IMPUTADO COMO JUSTIÇA. Ora, àquele que faz qualquer obra não lhe é imputado o galardão segundo a graça, mas segundo a dívida. Mas, àquele que não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça.” (Romanos 3.19-4.5)

 

A “Doutrina Principal” da Religião Cristã

Normalmente, quando um pregador toma a posição sobre um assunto – como eu fiz sobre a doutrina da justificação – ele começa defendendo a importância ou significância do assunto.

Partindo-se da história das igrejas reformadas, isto não deveria ser necessário com a doutrina da justificação. Calvino, não menos que Lutero durante a época da Reforma Protestante no século XVI, estava convencido de que esta doutrina era “a doutrina principal da religião cristã” (Institutas, Livro III). Se nos desligarmos deste ponto, então a totalidade da fé cristã corre o risco de ser perdida. A doutrina da justificação pela graça somente, com base nos méritos de Cristo somente, e por meio da fé somente – para afirmar a doutrina de forma mais clara – é, como a igreja luterana, historicamente tem expressado, o artigo de fundamento e queda da igreja (articulus stantis et cadentis ecclesiae). Porque esta doutrina, como nenhuma outra, cristaliza os grandes “solas” da Reforma – Sola Gratia (“somente pela graça”), Solo Christus (“somente por Cristo”), e Sola Fide (“somente pela fé”).

Mas não é apenas a história da Reforma que nos lembra da importância desta doutrina. Mesmo que sejamos capazes de esquecer isto, a doutrina da justificação, como John Murray apropriadamente enfatiza em seus estudos sobre o assunto, responde a mais básica das questões religiosas, a saber, qual minha posição diante de Deus? Mesmo antes de Adão pecar e empurrar toda a raça humana ao pecado – quanto estava no estado original do homem de integridade e nenhum pecado – o assunto mais importante para ele e todos os homens era quanto à sua aceitação diante de Deus. Não existe questão mais preocupante para qualquer criatura que a expressa nestas perguntas: O que Deus diz a respeito de mim? Ele me considera bom e aceitável? Ou Ele está contra mim? Está tudo correto entre nós? Qual é a minha reputação com Deus?

Sem dúvida, a realidade do pecado humano e a rebelião contra Deus têm complicado imensamente o assunto. E agora que “não há um justo, nem um sequer”, a questão da posição do pecador perante Deus se torna ainda mais urgente. Uma vez que “todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus”, a questão da aceitação do pecador e sua reputação com Deus têm se tornado mais preocupante.

Por estas razões, a doutrina da justificação é uma doutrina certamente muito importante. Não somente foi o foco da grande controvérsia na igreja a respeito do Evangelho durante o século XVI, mas também responde a questão mais básica de vida e de morte – em que posição estou diante de Deus, pobre e miserável pecador que sou?


“Evangélicos e Católicos Unidos”?

A importância da doutrina da justificação pode ser vista em termos da história da Reforma e por ser a questão religiosa básica. Mas também pode ser visto hoje o quanto a doutrina da justificação tornou-se assunto de uma discussão e debates renovados. Esta discussão renovada revelou uma considerável negligência, e até ignorância quanto à doutrina entre muitos protestantes e evangélicos. Mas, talvez de forma mais significante, a discussão é marcada por uma série de importantes declarações, assinadas em alguns pontos por cristãos evangélicos e católicos romanos igualmente, e afirmando que um novo consenso começa a emergir sobre esta doutrina.

Posso me lembrar, muitos anos atrás, de ler o livro de Michael Horton, As Doutrinas da Maravilhosa Graça . Enquanto lia o livro, fui surpreendido por uma história que ele conta, sobre um debate para o qual foi convidado, em um colégio cristão. Horton conta como teve a oportunidade de falar com aproximadamente 160 estudantes em diferentes ocasiões durante o dia. Por todo o dia, ele perguntou aos alunos sobre a doutrina da justificação. Ele pediu que eles definissem “justificação”. O que chamou minha atenção enquanto lia isto foi o registro de Horton, de que nenhum destes 160 estudantes (e lembre-se: eram estudantes num colégio cristão, e não público) poderia dar-lhe uma simples definição da doutrina. Nenhum! Mesmo que isto seja apenas uma simples história, é suficientemente alarmante para sugerir que, entre muitos cristãos evangélicos, a doutrina da justificação não é nem apreciada ou sequer claramente entendida.

Mas não é apenas esta negligência geral que é instrutiva. Aconteceram, no curso dos últimos vinte ou trinta anos, muitas discussões de altíssimo nível entre representantes da igreja evangélica, considerando de uma forma genérica, e da Igreja Católica Romana sobre a questão “Podemos criar uma ponte entre as divisões entre nós? Podemos superar a divisão entre protestantes e católicos? Esta é realmente uma questão de tamanha importância, entre a ‘verdadeira igreja' , aquela que sustenta o Evangelho de Cristo, e a ‘falsa igreja', que enterra Cristo debaixo de todas as formas de ritos e cerimônias religiosas, e boas obras meritórias?”

Por exemplo, já em 1963, na Assemléia de Helsinki da Federação Luterana Mundial (um grupo representativo do Luteranismo mundial, o primeiro ramo, poderíamos dizer, da Reforma do Século XVI), a conclusão encontrada foi, baseada em uma série de conferências com representantes católicos, de que não existe mais qualquer diferença substancial entre Roma e as igrejas luteranas sobre a doutrina da justificação. Mais recentemente, em 1985, uma declaração unificada de representantes luteranos e católicos sumarizou suas decisões desta forma: “um consenso fundamental no Evangelho é necessário para dar credibilidade às nossas afirmações previamente concordes a respeito do batismo, da eucaristia e das formas de autoridade eclesiásticas. Nós acreditamos que temos quase alcançado um consenso”.

Mais recentemente ainda, na Assembléia Geral das Igrejas Evangélicas Luteranas da América, que é uma combinação de várias denominações históricas luteranas, uma declaração luterana e católica romana unificada foi adotada, declarando que as diferenças da justificação pela fé não mais dividem a comunhão das igrejas. Alguém talvez responda estes acontecimentos dizendo: “bem, isto é verdade para representantes de não muitos, e existem muitas formas e corpos religiosos de luteranos e católicos por todo mundo”. Isto é, estes desenvolvimentos estão acontecendo somente dentro de um contexto eclesiástico, onde confissões históricas e o ensino da Escritura a respeito de muitas doutrinas importantes foi abandonado há muito tempo.

Mas em nosso contexto norte-americano, precisamos ter cuidado pelo fato de que dois documentos bastante importantes foram, em anos recentes, endossados por um considerável número de representantes, tanto do lado católico quanto do evangélico. O primeiro destes foi produzido em 1994, e carrega o impactante título “Evangélicos e Católicos Unidos”. Um grupo de importantes e proeminentes delegados (da Igreja Católica alguns bispos, como Richard John Neuhaus, editor da First Things ; outros do mundo evangélico, homens de grande proeminência e influência) afirmaram juntos, sobre a doutrina da justificação, que “nós somos justificados pela graça, por meio da fé, por causa de Cristo”. [2]

O que chama a atenção nesta afirmação unificada não é tanto o fato de ser assinada por evangélicos e católicos, mas que contenha algumas omissões dignas de nota. Não existe qualquer “sola” nesta declaração! Até onde posso ver, esta declaração é do tipo que qualquer signatário do grande Concílio de Trento da Contra-Reforma Católica poderia assinar. Católicos Romanos sempre ensinaram que somos justificados pela graça, por meio da fé, por Cristo. Entretanto, esta justificação não é Solo Christus, “por Cristo somente”. E porque não é por Cristo apenas, não é nem Sola Gratia, “somente pela graça”, nem Sola Fide, “somente pela fé”.

Apesar desta falha da “Evangélicos e Católicos Unidos”, boa parte de seus signatários foram responsáveis pela preparação da declaração seguinte. Esta declaração foi publicada em 1997 e carrega o título “O Dom da Salvação”. Escrita para deixar claras algumas questãos que a primeira declaração levantou (e para abrandar, talvez, os medos e temor de alguns de que eles tenham assinado um tipo de declaração ambígua e incerta), os autores desta confissão tentaram oferecer uma melhor, e de certa forma aparentemente mais aceitável, declaração sobre a doutrina da justificação. Esta declaração diz, a respeito da justificação: “Na justificação, Deus, com base da justiça de Cristo apenas, declara-nos que não mais somos seus inimigos rebeldes, mas amigos perdoados. Em virtude desta declaração, segue-se: Entendemos que aquilo que afirmamos nesta confissão está de acordo com o que as tradições da Reforma querem dizer com justificação pela fé somente”. Esta declaração, como parece, é uma melhora de sua anterior. É uma declaração que nós poderíamos provavelmente assinar, se fosse formulada em um contexto diferente, e se não tivéssemos conhecimento, em trechos adiante da declaração, de algumas áreas de contínua discórdia – incluindo se a justiça, na conta daquele que é justificado, é uma justiça “imputada” ou não!

Eu menciono estas coisas para ilustrar que vivemos um momento de grande confusão e incerteza a respeito da doutrina da justificação. Isto não seria tão sério se esta doutrina não fosse o artigo em que a igreja se sustenta ou cai, a “doutrina principal” da fé cristã. Além disso, por vivermos em uma época em que a tolerância algumas vezes toma o melhor de nós, alguns são capazes de mudar por causa a um desejo de concordar com outros sobre esta doutrina. E isto é de uma importância muito grande, não apenas por causa do valor perpétuo e essencial desta doutrinas, mas porque a forma como a questão é vista hoje, com tanta incerteza e confusão, devemos dá-la nossa mais cuidadosa atenção. Nada menos que um verdadeiro entendimento do Evangelho está em risco.


NOTAS:

[1] - Gostaria de agradecer a Virginia Eizenga, secretária do Mid-America Reformed Seminary, por aceitar o desafio e completar o tedioso trabalho de transcrever estas palestras.

[2] - R.C. Sproul tem feito um ótimo serviço às igrejas evangélicas e reformadas por nos trazer livros sobre estas duas declarações: Justificação Pela Fé Somente (Ed. Cultura Cristã) e Getting the Gospel Straight: The Tie That Binds Evangelicas Together (Grande Rapids: Baker). O segundo destes livros inclui um apêndice que dá o texto completo de uma recente declaração evangélica “O Evangelho de Jesus Cristo: Uma Celebração Evangélica”. Esta declaração mais recente tenta resolver algumas diferenças que emergiram entre os evangélicos sobre os documentos anteriores “Evangélicos e Católicos Unidos” e “O Dom da Salvação”.

Dr. Cornelis Venema, colaborador da The Outlook Magazine, ensina Estudos Doutrinários no Mid-America Reformed Seminary.


Tradução: Josaías Cardoso Ribeiro Jr.



http://www.monergismo.com/

Este site da web é uma realização de
Felipe Sabino de Araújo Neto®
Proclamando o Evangelho Genuíno de CRISTO JESUS, que é o poder de DEUS para salvação de todo aquele que crê.

TOPO DA PÁGINA

Estamos às ordens para comentários e sugestões.

Livros Recomendados

Recomendamos os sites abaixo:

Academia Calvínia/Arquivo Spurgeon/ Arthur Pink / IPCB / Solano Portela /Textos da reforma / Thirdmill
Editora Cultura Cristã /Editora Fiel / Editora Os Puritanos / Editora PES / Editora Vida Nova