A Doutrina da Justificação (2)
A Natureza da Justificação

por

Cornelis P. Venema

 

“Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus. Por isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado. Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas; isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que crêem; porque não há diferença. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus. Onde está logo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé. Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei.” (Romanos 3.19-28)

 

A Natureza da Justificação (O que é?)

Depois de considerar a importância da doutrina da justificação, precisamos agora prover uma declaração sumária da doutrina. Gostaria de trazer este tipo de introdução “primária” ou simples à doutrina usando três pontos básicos: primeiro, a natureza de nossa justificação – o que é? Segundo, a base de nossa justificação – em que é baseada? Terceiro, a concessão da justificação – como é obtida? Começaremos, neste artigo, com o primeiro destes, a natureza da justificação. Uma das formas de entendermos esta natureza é através da pergunta: a justificação é uma declaração forense e judicial de Deus? Ou é um processo e transformação moral em nós? O ponto de vista protestante ou reformado sustenta a primeira idéia, uma declaração legal de Deus, pronunciando como justo o pecador. O ponto de vista católico romano sustenta a segunda resposta, um processo de transformação moral equivalente, em termos evangélicos, ao que é conhecido como a santificação.

A maneira de colocar a questão já ilustra um dos problemas que freqüentemente encaramos quando consideramos a doutrina da justificação: os termos usados são sempre técnicos e abstratos e, por si, podem ficar no caminho de um entendimento claro. A fim de obtermos progresso, portanto, temos de ser cristalinos quanto à forma que usamos estas expressões, sabendo exatamente o que elas dizem.

Se dissermos que a justificação é um ato judicial, isto é, forense, o que estamos falando? Bem tenho certeza que alguns de vocês, ao menos os mais velhos, lembrarão de quando os colégios eram realmente escolas, e tinham o que chamávamos de “forenses”. “Forenses” era uma disciplina de debates ou palestras públicas. Se você participasse desta matéria, provavelmente entraria num debate ou discurso público. Forense tem relação com falar em público.

Mas há outro lado na idéia de forense, e é esta: é uma forma de falar publicamente, que toma lugar num contexto bastante peculiar. E este contexto é a Corte Judicial. Isto é evidente, na forma como a linguagem forense ainda é usada em nosso falar e escrever. As ciências forenses, incluindo, a medicina forense, são um componente de grande importância para determinar a culpa ou inocência de alguém que foi acusado de um crime num tribunal. A evidência de DNA, por exemplo, é uma parte importante do trabalho de reunir e apresentar evidências em casos judiciais. Cada evidência pode exonerar ou provar a culpa de alguém chamado à corte.

Se você colocar estas duas idéias juntas – como algo relacionado a falar em público e relacionado a um tribunal – a idéia básica de justificação forense é esta, que Deus faz uma declaração em Seu tribunal, a corte celestial, a respeito da culpa ou inocência de Seu povo. No ato da justificação, Deus assume a posição de Juiz no mais alto dos tribunais – não um tribunal público, ou a Suprema Corte, mas o foro de julgamento mais elevado que se possa conceber – e faz a declaração sobre Suas criaturas. Justificação tem relação com aquilo que Deus tem a dizer neste tribunal a respeito de você e de mim, miseráveis pecadores que somos. Qual é o julgamento de Deus a respeito de você e de mim? Este é o assunto da justificação. Ele nos declarará, dirá neste tribunal o quanto ele nos considera aceitável a Ele, não somente perdoados mas irrepreensíveis, como justos e aprazíveis? Ou Deus, em Seu julgamento no foro celestial (note que a raiz latina para forense é “fórum”, o lugar em que se realiza julgamento) nos condenará como culpados? No foro divino , no tribunal de Deus, o que Ele declarará a respeito de nós, pecadores? Este é o assunto essencial da justificação.

Agora, permita-me ilustrar isto um instante, por meio das Escrituras. A idéia da justificação, no sentido de declaração judicial, não se originou com o Apóstolo Paulo, mas já é encontrada na linguagem do Antigo Testamento. Se você ler escritores antigos – como James Buchanan ou John Owen, sobre a doutrina da justificação – notará que eles começam demonstrando como no Velho Testamento, esta é a idéia-chave de quando alguém é justificado. Na justificação, uma declaração é feita em um tribunal, a respeito da inocência ou culpa, justiça ou condenação, daqueles que são julgados.

Darei apenas duas ilustrações típicas do Antigo Testamento. Em Deuteronômio 25.1-3, Moisés diz que, se houver uma disputa entre homens, eles forem a juízo para ter seu caso decidido, os membros do júri “ao justo justificarão, e ao injusto condenarão”. Justiça requer que o inocente seja justificado e o culpado condenado. É certamente verdade que, no ato de pronunciar o juízo do tribunal, a culpa ou inocência, a justiça ou a falta daquele que foi julgado, há uma preocupação maior. Entretanto, não importa com o que o significado e a significância do termo, “justificar”, esteja se preocupando, esta palavra não significa tornar justo alguém justificado. Significa declará-lo desta forma, declarar que esta pessoa é reta, sem culpa.

O outro exemplo é Provérbios 17.5, que diz: “O que justifica o ímpio, e o que condena o justo, tanto um como o outro são abomináveis ao SENHOR.” Aqui, novamente, a idéia não pode ser que o júri, ao justificar o ímpio ou condenar o justo, torna o justo um ímpio ou faz do ímpio um justo. É o veredicto do júri, a declaração pronunciada na corte judicial que está em questão. Quase todas as aparições do verbo “justificar” no Antigo Testamento têm esse sentido ou significado, a saber, a declaração feita a respeito da culpa ou inocência de alguém.

É este uso veterotestamentário que predomina no Novo Testamento também, especialmente nas epístolas de Paulo. Isto é evidente no contraste desenhado entre “justificar” e “condenar”, e do imaginário e linguagens judiciais que permeiam a descrição feita por Paulo da justificação, particularmente nos primeiros capítulos de Romanos.

Sem dúvidas, muitos estão familiarizados com o este importante texto em Romanos 8.33, em que o Apóstolo diz: “Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica”. Mas se você ler Romanos 3 cuidadosamente, em especial os versos 19 e 20, notará o imaginário judicial que também se espalha nesta passagem: “Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus. Por isso nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado”. Paulo retrata nesta passagem a circunstância do pecador perante o trono de Deus, na corte celestial, e sob a acusação trazida pela Lei de Deus. Quando você estiver diante de Deus em Seu tribunal, e Ele fizer seu julgamento por meio de Sua Lei, o que você dirá em defesa própria? Você será capaz de fazer uma declaração de justiça diante de Deus? “De maneira nenhuma!”, responde o Apóstolo. Quando a Lei de Deus fala, todos se calam! Toda boca é silenciada, e o mundo inteiro é culpado diante de Deus. A idéia é bem simples: nenhum homem será capaz de falar sem sua própria defesa, justificando a si mesmo pelas obras da Lei.

Esta passagem e sua ilustração legal me lembra um pequeno incidente que aconteceu em minha vida quando morávamos na Califórnia. Fui chamado como testemunha em um tribunal. Alguém havia invadido nossa casa enquanto estávamos fora, numa tarde de domingo, e levou algumas coisas nossas, deixando impressões digitais no vidro da nossa sala. Bem, para não encompridar a história, encontraram o ladrão, levaram a julgamento e fui chamado para testificar. Meu testemunho foi este: “eu não conheço este homem. Nunca o convidei para entrar em minha casa. Então, como suas impressões digitais estão no meu vidro?”. Quando chegou o momento deste homem vir ao tribunal, logo que fui chamado à frente, imediatamente seu advogado pulou da cadeira e disse “Juiz, pedimos a indulgência deste tribunal”. E então ele entrou num procedimento que incluía termos de anistia com o juiz, por uma penalidade menor, devido à condição de reconhecer a culpa de seu cliente. Bem, por que ele fez isto? Porque era tão claro quanto o dia que o homem era culpado, e ele não tinha nada a dizer em sua defesa. Sua boca se calou!

Esta é a idéia que o Apóstolo quer passar quando fala de todo mundo como condenados diante de Deus, de forma que toda boca, a sua e também a minha, nada tem a falar com o objetivo de provar nossa inocência e que temos o direito de sermos justificados perante Deus. Justificação tem relação com o veredicto, a declaração de que não somos culpados, mas inocente.

 

Duas Observações

Agora, porém, levarei este primeiro tópico sobre a justificação a uma conclusão, analisando duas coisas.

Primeiro, eu não acredito que, numa análise final, a mais básica diferença entre protestantes e católicos romanos sobre a doutrina da justificação diz respeito à questão dela ser forense ou não. Em anos recentes, muitos católicos romanos desejaram reconhecer que a justificação inclui a idéia forense do julgamento de Deus a respeito da culpa ou inocência do pecador. Apesar de continuarem confundindo justificação e santificação, tratando a justificação como se envolvesse também um processo de renovação moral, os católicos freqüentemente querem conceber que a idéia básica é quanto nossa reputação diante de Deus, aquilo que Deus declara sobre nossa inocência ou culpa. Isto é algo que John Murray, por exemplo, reconhece também em seus estudos sobre justificação.

No entanto, pode ser uma surpresa para alguns protestantes, que mesmo o Concílio de Trento, em resposta à doutrina reformada da justificação, ao menos em um ponto diz que há relação com uma declaração judicial. Na 6ª sessão, capítulo VII, Trento fala da justificação desta forma: “Não somente somos reputados como justos, mas somos chamados justos, recebendo a justiça dentro de nós”. Em outras palavras, mesmo a Igreja Católica medieval entendeu que a justificação tinha relação com aquilo que Deus julga que somos. Para sermos claros, então, Trento diz a seguir, que, ao nos considerar justos, Deus também nos faz justos, e esta nossa própria justiça torna-se a base sobre a qual nos tornamos aceitáveis a Deus. Ao dizer isso, eles fazem nosso justificação depender de uma justiça que é nossa, não de Cristo somente. Sem dúvida, deveríamos afirmar, isto nos leva a nada menos que um abandono do Evangelho.

Então, onde o Catolicismo Romano erra não é tanto em ver que a justificação relaciona-se com o veredicto divino a respeito de nós, mas em seu entendimento sobre a base ou o fundamento deste veredicto.

Como deveríamos ver, aqui repousa a grande distinção entre a verdade do Evangelho da justificação gratuita e o ponto de vista romano: o Evangelho declara que nossa justiça diante de Deus não é a nossa, mas somente de Cristo. Resumidamente, a diferença crucial entre as doutrinas evangélica e católica da justificação surge quando consideramos duas questões que permanecem: primeiro, a base da nossa justificação e, segundo, como esta justificação é obtida. Mas trataremos destas duas questões nos próximos artigos.

Em segundo lugar, tenho a impressão – e às vezes testemunho isto mesmo entre pregadores evangélicos – que perdemos um pouco de nossa convicção sobre o assunto que iniciei nomeando de “a doutrina principal da fé cristã”. Podemos ainda acreditar que todo o Evangelho, em pelo menos de um ponto de vista, pode ser sumarizado em termos da doutrina da justificação?

Existem aqueles, por exemplo, que dizem que no mundo atual não precisamos mais entender a doutrina da justificação. A doutrina, porque pertence à corte judicial, assumindo que Deus é nosso Juiz e que a Lei serve para expor nossos erros, milita contra as pressuposições normais do mundo moderno, dizem eles. Nós não devemos mais pensar em termos legais. Deus não pode ser pensado na atividade de julgar pecadores. A Lei não é mais pregada ou ensinada como algo que tem autoridade divina ou que serve para nos condenar por nossos pecados.

Porém, não temos o direito ou a liberdade de mudar os temos do Evangelho da justificação. Pregar o Evangelho da justificação somente da forma que foi revelado nas Escrituras é o chamado da Igreja. Pregadores devem lembrar os pecadores – e este é o único tipo de pessoa a quem eles pregam – que não importa o que o seu chefe diz sobre você no fim do dia. Não importa, em última análise, o que sua esposa possa pensar de você (não que não importe, mas não em última análise), o que seus colegas de trabalho, seus vizinhos e seus amigos, e “o tribunal do júri público”, podem dizer sobre você, não importa o quanto sua reputação é boa. Porque não é o júri público que conta no final. Não é o que os homens podem dizer a respeito de mim que fará a diferença entre a vida e a morte eterna.

Nós devemos pregar isto, que aquilo que vale na vida e na morte, o que realmente importa é: O que Deus diz a respeito de mim? Em que posição estou diante dEle? Ele se deleita comigo? Ele me abraçará como alguém que está na retidão? O que Deus tem a dizer sobre mim em Seu tribunal? Ele me considera justo e portanto, um herdeiro legítimo da vida eterna e da liberdade do Evangelho? Isto permanece como nossa maior tarefa como pregadores: deixar que aqueles a quem você leva o Evangelho saibam que a justificação é a questão definitiva de vida ou morte. Que tudo, absolutamente tudo, repousa sobre eu ser aceito ou condenado por Deus, um herdeiro da vida eterna ou da condenação eterna.

 

Dr. Cornelis Venema, colaborador da The Outlook Magazine, ensina Estudos Doutrinários no Mid-America Reformed Seminary.


Tradução: Josaías Cardoso Ribeiro Jr.



http://www.monergismo.com/

Este site da web é uma realização de
Felipe Sabino de Araújo Neto®
Proclamando o Evangelho Genuíno de CRISTO JESUS, que é o poder de DEUS para salvação de todo aquele que crê.

TOPO DA PÁGINA

Estamos às ordens para comentários e sugestões.

Livros Recomendados

Recomendamos os sites abaixo:

Academia Calvínia/Arquivo Spurgeon/ Arthur Pink / IPCB / Solano Portela /Textos da reforma / Thirdmill
Editora Cultura Cristã /Editora Fiel / Editora Os Puritanos / Editora PES / Editora Vida Nova