As Duas Partes da Palavra de Deus Como Meio de Graça

por

Louis Berkhof




1. A LEI E O EVANGELHO NA PALAVRA DE DEUS.

Desde o princípio, as igrejas da Reforma distinguiam entre a Lei e o Evangelho como as duas partes da Palavra de Deus como meio de graça. Não se entendia esta distinção como idêntica à que existe entre o Velho Testamento e o Novo, mas era considerada como uma distinção aplicável a ambos os Testamentos. Há Lei e Evangelho no Velho Testamento, e há Lei e Evangelho no Novo. A Lei compreende tudo quanto, na Escritura, é revelação da vontade de Deus na forma de mandado ou proibição, enquanto que o Evangelho abrange tudo, seja no Velho Testamento seja no Novo, que se relaciona com a obra de reconciliação e que proclama o anelante amor redentor de Deus em Cristo Jesus. E cada parte destas tem sua função própria na economia da graça. A Lei procura despertar no coração do homem contrição pelo pecado, ao passo que o Evangelho visa ao despertamento da fé salvadora em Jesus Cristo. Num sentido, a obra da Lei é preparatória para a do Evangelho. Ela intensifica a consciência de pecado e, assim, faz ciente ao pecador da necessidade de redenção. Ambos são subservientes ao mesmo fim, e ambos são componentes indispensáveis do meio de graça. Esta verdade nem sempre tem sido reconhecida suficientemente. O aspecto condenatório da Lei às vezes tem sido salientado a expensas do seu caráter como parte do meio de graça. Desde o tempo de Márcion, sempre houve alguns que só viam contraste entre a Lei e o Evangelho e partiam da suposição de que eles se excluíam mutuamente. Baseavam sua opinião, em parte, na repreensão que Paulo passou em Pedro (G 2.11-14) e, em parte, no fato de que Paulo ocasionalmente traça uma aguda distinção entre a Lei e o Evangelho, e evidentemente os considera como contrastes, 2 Co 3.6-11; Gl 3.2, 3, 10-14; cf. também Jo 1.17. Não enxergavam o fato de que Paulo também diz que a Lei serviu de preceptor para conduzir os homens a Cristo, Gl 3.24, e de que a Epístola aos Hebreus descreve a Lei, não como estando em relação antitética com o Evangelho, mas, antes, como sendo o Evangelho em seu estado preliminar e imperfeito.

Alguns dos teólogos reformados (calvinistas) mais antigos apresentavam a Lei e o Evangelho como opostos absolutos. Eles entendiam que a Lei incorpora todas as exigências e mandamentos da Escritura, e que o Evangelho não contém nenhum tipo de exigência, mas unicamente promessas incondicionais; e assim excluíam dele toda sorte de solicitações imperativas. Isto aconteceu em parte pelo modo como os dois às vezes são contrastados na Escritura, mas também, em parte, como resultado de uma controvérsia com os arminianos, na qual estavam empenhados. O conceito arminiano, que faz a salvação depender da fé e da obediência evangélica como obras realizadas pelo homem , fez com que eles fossem ao extremo de dizer que a aliança da graça não exige coisa alguma da parte do homem, não lhe prescreve nenhum dever, não requer nem ordena coisa nenhuma, nem mesmo a fé, a confiança e a esperança no Senhor, e assim por diante, mas simplesmente transmite ao homem as promessas daquilo que Deus fará por ele. Outros, porém, afirmavam corretamente que nem mesmo a lei de Moisés está destituída de promessas, e que o Evangelho também contém certas exigências. Eles viam claramente que o homem não é meramente passivo, quando é introduzido na aliança, mas é chamado para aceitar ativamente a aliança, com todos os seus privilégios, conquanto seja Deus quem produz nele a capacidade de satisfazer as suas exigências. As promessas de que o homem se apropria certamente lhe impõem certos deveres, e, entre estes, o dever de obedecer à lei de Deus como norma de vida, mas também trazem consigo a segurança de que Deus operará nele “tanto o querer como o efetuar”. Os dispensacionalistas coerentes dos nossos dias voltam a apresentar a Lei e o Evangelho como opostos absolutos. Israel estava debaixo da Lei na dispensação anterior, mas a Igreja da dispensação atual está sob o Evangelho e, como tal, está livre da Lei. Isto significa que agora o Evangelho é o único meio de salvação, e que a Lei já não serve como tal. Os membros da igreja não precisam preocupar-se com as exigências da lei, visto que Cristo as satisfez todas. Ao que parece, eles se esquecem de que, embora Cristo tenha levado sobre Si a maldição da Lei, e tenha cumprido as suas exigências como uma condição da aliança das obras, Ele não cumpriu a lei por eles como norma de vida, à qual o homem está sujeito em virtude da sua criação, independentemente de qualquer acerto pactual.

2. DISTINÇÕES NECESSÁRIAS A RESPEITO DA LEI E DO EVANGELHO.

a. Como já foi dito no item anterior, a distinção entre a Lei e o Evangelho não é a mesma que há entre o Velho e o Novo Testamentos. Tampouco é a mesma que os dispensacionalistas atuais fazem entre a dispensação da Lei e a dispensação do Evangelho. É contrário aos simples fatos da Escritura dizer que não há Evangelho no Velho Testamento, ou pelo menos na parte do Velho Testamento que abrange a dispensação da Lei. Há Evangelho na promessa à mãe da humanidade, na lei cerimonial e em muitos dos profetas, Is 53 e 54; 55.1-3, 6, 7; Jr 31.33, 34; Ez 36.25-28. De fato há Evangelho percorrendo todo o Velho Testamento, culminando nas profecias messiânicas. É igualmente contrário à Escritura dizer que não há lei no novo Testamento, ou que a Lei não tem aplicação na dispensação do novo Testamento. Jesus ensinou a validade permanente da lei, Mt 5.17-19. Paulo afirma que Deus providenciou para que as exigências sejam cumpridas em nossas vidas, Rm 8.4, e declara os seus leitores responsáveis pela guarda da lei, Rm 13.9. Tiago assegura aos seus leitores que aquele que transgride um só mandamento da lei (e menciona alguns destes), é transgressor da Lei, Tg 2.8-11. E João define o pecado como “transgressão da lei” e declara que este “é o amor de Deus,, que guardemos os seus mandamentos”, 1 Jo 3.4; 5.3.

b. É possível dizer que, nalguns aspectos, o cristão está livre da Lei de Deus. Nem sempre a Bíblia fala da Lei no mesmo sentido. Às vezes a considera como a expressão imutável da natureza e da vontade de Deus, aplicável em todos os tempos e em todas as condições. Mas também se refere a ela de acordo com as funções que ela exerce na aliança das obras, na qual a dádiva da vida eterna foi condicionada ao seu cumprimento. O homem deixou de preencher a condição, com isso perdendo também a capacidade de preenche-la, e agora está, por natureza, sob a sentença de condenação. Quando Paulo traça um contraste entre a Lei e o Evangelho, está pensando neste aspecto da Lei, a quebrantada Lei da aliança das obras, que já não pode justificar o pecador, só podendo condena-lo. Da Lei neste sentido particular, como meio para obtenção da vida eterna e com poder condenatório, os crentes são postos em liberdade em Cristo, visto que Ele se fez maldição por eles e também satisfez as exigências da aliança das obras a favor deles. A Lei, nesse sentido particular, e o Evangelho da livre graça de Deus são mutuamente exclusivos.

c. Há, porém, outro sentido, em que o cristão não está livre da Lei. A situação é completamente diversa quando pensamos na Lei como expressão das obrigações morais do homem para com o seu Deus, a Lei como é aplicada ao homem, mesmo independentemente da aliança das obras. É impossível imaginar alguma condição na qual o homem pudesse reivindicar liberdade da Lei nesse sentido. É puro antinomismo afirmar que Cristo guardou a Lei como regra de vida pelos Seus, de modo que eles não precisam preocupar-se mais com isso. A Lei reivindica, e com justiça, toda a vida do homem, em todos os seus aspectos, sua relação com o Evangelho de Jesus Cristo inclusive. Quando Deus oferece o Evangelho ao homem, a Lei exige que este o aceite. Alguns falam disso como a Lei no Evangelho, mas isto dificilmente está correto. O Evangelho mesmo consiste de promessas, e não é nenhuma lei; todavia, há uma exigência da Lei em conexão com o Evangelho. A Lei não somente exige que aceitemos o Evangelho e creiamos em Jesus Cristo, mas também que levemos uma vida de gratidão, em harmonia com as suas exigências.


Fonte: Extraído da “Teologia Sistemática” do autor, publicada no Brasil pela Editora Cultura Cristã. A TS de Berkhof está entre as melhores existentes. Adquira a sua!


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