Autonomismo Apóstata: A Queda & A Teoria Autonomista

por

R. K. McGregor Wright




Os eruditos do liberalismo moderno querem que creiamos que as narrativas da Bíblia sobre a criação e a Queda sejam apenas mitos antigos, guardando como relíquias profundos conceitos sobre a condição humana, mas que não possuem nenhum conteúdo histórico importante. Por exemplo, Leslie Stevenson sugere em sua obra, Seven Theories of Human Nature, que a história da Queda não é uma narrativa de um evento real, embora ele pareça admitir que ela é cheia de implicações filosóficas (p. 41).

Estritamente falando, contudo, a própria Bíblia parece querer que entendamos as decisões feitas no Jardim do Éden como eventos reais que estabelecem o cenário para toda a história do pensamento humanista até o tempo presente. Da defesa que Isaías faz do monoteísmo em sua refutação da idolatria até a narrativa que Paulo fez do deslizamento da cultura degradada no caos moral, na Sua Carta aos Romanos, e na sua demolição da cosmovisão religiosa helênica em seu discurso no Areópago, conforme o registro de Atos, ilustrações claras dessa história nos são dadas, e elas todas pressupõem verdade literal da história de Gênesis. Tudo isso concorda com a visão bíblica do pecado e de seus resultados.


Antes da Queda

Gênesis 2 expande a afirmação breve com respeito à aparição dos seres humanos encontrada em 1.26-31. Esse capítulo 2 nos diz que Deus colocou o homem, que ele havia criado, num jardim protegido para que cuidasse dele. Imediatamente Adão começou a tarefa de entender o ambiente ao seu redor, começando com a classificação dos animais mais acessíveis. Contudo, nenhum desses animais era parecido com Adão, e, é-nos dito que Deus criou Eva do próprio ser de Adão para ser “sua ajudadora idônea” (2.18-22). Os dois prosseguiram juntos, então, com vigor a tarefa de estabelecer o reino de Deus sobre a Terra na forma desse pequeno “plano-piloto” edênico. Presumivelmente, se eles não houvessem se desviado tão levianamente, o sucesso no Éden teria sido seguido de venturas num mundo muito mais amplo, à medida que a sua família fosse crescendo o justo reino de Deus revelado sob sua mordomia capaz. Mas no curso de seus labores, eles encontraram um intruso no jardim.

Deus lhes havia dito que poderiam comer de todas as árvores do jardim, exceto daquela do centro, conhecida como “a árvore do conhecimento do bem e do mal” (v.17). Aparentemente Deus havia decidido colocar num lugar proeminente um exemplo material daquilo que Ele queria que fosse entendido como sendo uma sanção moral, pela diferença entre o certo e o errado. Foi-lhes dito especificamente para não comerem do fruto dessa árvore em particular. A sanção era tão certa como a identidade da própria árvore. Se eles comessem do fruto certamente haveriam de morrer (v.16-17). A morte seria certa porque Deus a havia tornado inevitável. Uma outra árvore bem próxima, a “árvore da vida”, parece ter tido a potencialidade para conferir imortalidade física a eles, mas eles não chegaram a se arriscar a tanto antes da Queda. Na importância das duas árvores, Deus havia definido e ilustrado o que ele queria dizer por “bem” e por “mal”. A obediência e tudo o que flui dela é bem, e a desobediência juntamente com tudo que flui dela é mal.

Quando a serpente levantou a questão da sanção moral com Eva (e é-nos dito em 3.6 que Adão estava com ela nesse momento), a discussão começou com uma tentativa aparentemente inocente de clarear o assunto. Se o que Deus havia dito era suficientemente claro para Adão e Eva, não era assim tão claro para a serpente. A palavra hebraica para “toda árvore” no verso 1 é ambígua e poderia significar tanto “todas” as árvores como “qualquer árvore em particular” . Na sua resposta, Eva introduz duas modificações supostamente no interesse de trazer luz à questão. Sua resposta (“… disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele para que não morrais” Gn 3.3) contém dois erros.

Primeiro, Deus não havia dito que eles não poderiam tocar na árvore. Não havia nada em sua ordem para impedi-los de cortá-la a fim de fazerem uma casa de madeira, ou de examinar a composição química das folhas ou de usar as folhas para decoração. Foi-lhes dito meramente que não comessem do seu fruto. Deus não a removeu de seu uso científico ou industrial. Ela estava ainda dentro do escopo da responsabilidade de mordomia deles. O simples acréscimo de Eva ao que Deus havia ordenado pôs em dúvida o significado completo e total do escopo da sua vice-regência.

Segundo, Deus havia dito que no dia em que eles comessem do fruto dessa árvore, eles “certamente morreriam”. A língua hebraica é daquelas que apresentam uma ênfase repetitiva (literalmente “morrendo, você morrerá”). Foi como se Deus houvesse explicado que a morte seria experimentada como um processo culminando num evento. O processo foi predeterminado para iniciar no momento em que tivessem comido do fruto proibido e continuaria até que o resultado fosse completado. Mas Eva enfraqueceu essa afirmação da certeza ordenada divinamente para uma mera possibilidade, uma mera contingência (“para que não morrais”).

Essas duas alterações, sendo uma adição e a outra uma diminuição, carregam consigo uma carga filosófica muito pesada. O erro de acrescentar ou de retirar as palavras do Senhor é tratado novamente em Deuteronômio 4.2 e em Provérbios 30.5-6. Exatamente no último capítulo da Bíblia esse perigo ainda não é esquecido. Aqui somos novamente advertidos para não acrescentar ou retirar nada da Palavra de Deus (Ap 22.18-19). Acrescentar algo às palavras de Deus implica que elas não são suficientemente claras do jeito que estão, e remover algumas delas implica que nossa mente é capaz de decidir autonomamente que Deus possivelmente pode estar errado a respeito de alguns detalhes. Mesmo antes de comer do fruto, Eva já havia começado a mudar seu ponto de referência da interpretação de Deus para a sua própria interpretação. Ela já havia começado a viver somente de pão e não de cada Palavra vinda da boca de Deus. Eva fez-se a si mesma a origem do significado da seleção e da aplicação das palavras de Deus para a sua própria situação. Ela separou o significado das palavras do texto da própria revelação. Daí por diante, a presuntiva mente autônoma da humanidade alegremente admitiria que um texto pode ser de Deus, mas também asseveraria que “nós temos a nossa própria interpretação” daquilo que ele significa – o texto pode ser objetivo, mas seu significado é subjetivo. A derrocada doutrinária havia começado.

Nesse ponto, Satanás proporcionou ele próprio uma saída. Ele começou com uma pergunta, mas agora que ele havia estabelecido que a interpretação de Deus é somente uma entre muitas, ele contradisse de forma expressa o que Deus havia dito: “É certo que não morrereis” (Gn 3.4). A justificação suplementar para essa opinião é igualmente interessante. Ele apelou para algo que disse que “Deus sabe” , mas não havia revelado. Aparentemente, Deus havia escondido de Adão e Eva que, quando eles comessem o fruto, eles haveriam de experimentar uma iluminação verdadeira. Por sua vez, isso foi expandido para significar que eles se tornariam iguais ao próprio Deus em conhecimento. Esse é o primeiro exemplo do que podemos chamar de “o princípio gnóstico da verdade religiosa” . Isto é, justamente como qualquer revelação pública e literal que Deus possa dar, há sempre uma religião secreta que é necessária para a interpretação verdadeiramente espiritual da revelação literal. A serpente levou-os a crer que, juntamente com o que Deus havia admitido diante deles, havia também um segredo interior que eles precisavam conhecer para que pudessem ser “iguais a Deus”, conhecendo a verdade autonomamente, tendo a si mesmos como ponto de referência, justamente como Deus faz. Desse modo, Satanás convidou Adão e Eva para entrarem na autonomia do pensamento teórico, para se tornarem o significado da vida em si próprios, para serem os primeiros a interpretar a sua própria experiência da realidade. Eles próprios poderiam dar permissão para criar sua própria realidade escolhendo seu próprio futuro. A humanidade finalmente atingiria a maioridade.


Há Somente Duas Cosmovisões

As duas proposições contraditórias “Certamente morrerás” e “É certo que não morrereis” implicam duas teorias ou modos de olhar para a realidade totalmente diferentes e incompatíveis; não podemos explorar todas as suas ramificações a essa altura, mas a sua disjunção sobre a questão da autonomia humana deve merecer atenção aqui.

A primeira proposição implica que Deus já determinou qual será o futuro para qualquer que comer do fruto proibido, porque Deus controla o futuro. E Deus predeterminou que a alma que peca “certamente morrerá”. O futuro dos pecadores está determinado por Deus.

Mas o futuro está também fixado para aqueles que são obedientes, para aqueles que vivem pelas palavras da revelação divina. Eles também experimentarão um futuro predeterminado de bênçãos sempre crescentes, à medida que eles entram por sua obediência na experiência de todas as possibilidades não-reveladas da criação de Deus, como foram ordenadas pelo seu Logos criador e eterno. Eles experimentarão a múltipla sabedoria de Deus à medida que refletirem sobre os pensamentos do seu Senhor em suas próprias mentes. Cada escolha que fizerem expressará livremente o desejo deles de adorar seu Criador e de servi-lo. Seus corações livremente se conformarão à vontade revelada de Deus, realizando a aspiração do filósofo estóico de estar em plena harmonia com a natureza. Mas ao invés do mundo caído com o qual Marcus Aurelius procurou conformidade, Adão e Eva teriam vivido em conformidade amorosa com o cosmos sem pecado e sem queda, no qual os seus intelectos teriam sido informados somente pelo próprio Logos. Para eles, o progresso não teria sido a luta da grande cadeia do ser com a sobrevivência daquele que melhor se adapta, mas o paraíso do trabalhador no qual os dons e as aspirações de todos teriam sido realizados na feliz produtividade de todos. A pequena família no Jardim do Éden teria sido finalmente ampliada pela simples obediência, tornando-se uma civilização poderosa do reino de Deus na Terra. Neste cenário, liberdade significa submissão ética a Deus e as bênçãos resultantes da realização pessoal. Isso não significa a autonomia da vontade, uma idéia que nunca é encontrada na Bíblia.

A segunda proposição, “É certo que não morrereis” , implica que o futuro é uma esfera de pura possibilidade a ser determinada pelos seres humanos de um momento existencial a outro. A primeira implicação dessa proposição não é somente que a revelação de Deus não seja perfeitamente clara, mas que ela é, ao menos, parcialmente falsa, se não simplesmente absurda. Nessa concepção, o que Deus realmente quer é que Adão e Eva cresçam para a maturidade pelo reinterpretar autonomamente sua experiência consigo mesmos como sendo eles próprios a origem do significado. Realmente Deus não controla nem determina o futuro de Adão. Ao contrário, Deus realmente limitou-se a dar a Adão a chance de mover-se livremente. Liberdade significa autodeterminação, não submissão a um padrão arbitrário externo. A verdadeira disciplina deve vir “de dentro” . A verdadeira iluminação é a realização existencial momento-a-momento da autonomia metafísica. Portanto, as pessoas deveriam viver pela máxima “Conhece-te a ti mesmo” e “Seja verdadeiro ao teu próprio ser”, uma vez que a revelação não-examinada não é digna de ser crida.

A história subseqüente da Bíblia é uma narrativa do que aconteceu do ponto de vista de Deus, a partir desse ato inicial de desobediência. Os séculos seguintes de filosofia humanista estavam subentendidos naquele ato original do abandono da coerência do Logos revelado. Desse ponto em diante, o pensamento caído necessariamente haveria de emergir de acordo com uma dinâmica interna inevitável.


O Racionalismo Absoluto

Para ter certeza de que estava errado a respeito do “certamente morrerás”, Adão teria precisado um conhecimento exaustivo e um controle correspondentemente exaustivo do futuro – onisciência e onipotência. Assim, a raça humana teria de ter sido divina. Para que eles conhecessem mesmo uma só coisa, eles teriam de conhecer todas as coisas, porque num universo finito tudo é relativo a tudo mais e pode ser somente entendido em termos do mundo circundante. A consciência humana teria de ser capaz de tornar todos os fatos da experiência coerentemente inteligíveis em termos de suas próprias inter-relações inatas e logicamente explicadas. Todas essas inter-relações são em princípio inteligíveis para a mente humana.

Mas essa abordagem implicaria e requereria um racionalismo supremo. O observador presume que o mundo é supremamente um, e sua unidade acessível pela lógica. No período imediato a Sócrates, essa posição foi articulada por Parmênides com sua asserção de que o “Ser é um”. Ele baseou a sua análise da realidade em uma antiga expressão da lei da contradição: “O Ser existe, e não-ser não existe”. Parmênides pensava que o ser é a unidade definitiva, em princípio penetrável pela mente humana pelo uso da lógica.


O Irracionalismo Absoluto

Ao mesmo tempo, a suposição de que Deus realmente não controla a realidade necessitaria que a criação fosse em grande medida, em e de si mesma, indeterminada. Ninguém pode predizer o que o futuro trará, porque ninguém (incluindo quaisquer deuses que possa haver) pode saber o que o verdadeiro livre-arbítrio vai decidir. Precisamos manter uma mente aberta, naturalmente, porque cada decisão do livre-arbítrio é em princípio imprevisível. Se tivéssemos de experimentar o futuro como um reino de pura possibilidade, poderia parecer que ambos, Deus e a humanidade juntos , seriam cercados por um ser indeterminado em si mesmo. Qualquer proposição preditiva a respeito do futuro poderia ser falsificada pelos eventos. Como William James, enfrentaríamos uma “confusão crescente e barulhenta”, e mesmo as leis da lógica poderiam tornar-se apenas conveniências pragmáticas do momento, meras convenções da cultura ocidental. E se todos os fatos fossem relativos, a que seriam eles relativos em qualquer momento? E por detrás de qualquer ordem que sejamos capazes de identificar, e adiante de um caleidoscópio de uma atual escolha presa ao tempo presente, repousaria a vasta esfera do ser-ele-próprio indeterminado, o mistério supremo de tudo.

Essa abordagem implica um irracionalismo supremo. O observador presume que por detrás do mundo repousa um muitos (múltiplo) supremo, manifestando-se por meio de variação ao acaso de dados. Essa posição foi articulada no período anterior a Sócrates por Heráclito, que postulava que “todas as coisas fluem”, e que, portanto, “você não pode pisar no mesmo rio duas vezes, porque novas águas estão fluindo sobre você” . Para Heráclito, o ser era uma diversidade suprema, uma probabilidade de guerra entre opostos oscilantes.


O Problema do Um e do Múltiplo

Porque ela começou consigo mesma como a origem finita do significado, Eva entrou automaticamente no dilema fundamental da consciência finita. Ela realmente escolheu um ponto de referência que precisava ser uma unidade absoluta e uma diversidade absoluta ao mesmo tempo. Um racionalismo absoluto requer um ser absolutamente coerente e unificado como seu sujeito, e um irracionalismo absoluto implica um ser absolutamente incoerente e diversificado como seu sujeito. Ser-a-si-mesmo deve ser tanto um supremo-um e um supremo-muitos (múltiplo) no mesmo momento da observação. Todavia, ambos não podem estar simultaneamente corretos, porque só pode haver um “supremo”. E, a fim de que esse renovado ponto de referência escolhido e finito seja suficiente na prática, ele é forçado a interpretar a realidade primeiro em termos de uma unidade suprema, e então, em termos de uma diversidade igualmente suprema.

Pelos milênios seguintes, a epistemologia oscilou entre o um e o múltiplo, entre os movimentos e opiniões racionalistas e irracionalistas, finalmente acomodando-se a uma neblina existencial quando as possibilidades da razão e as probabilidades dos dados haviam sido solicitadas. A ontologia tendeu a projetar-se em direção ao próprio Deus, alternando-se entre as várias formas de panteísmo de um lado, esperando fazer justiça ao um, e politeísmo do outro lado, a fim de explicar o múltiplo. A ética igualmente fixou um conjunto de padrões rígidos, algumas vezes, e uma política de permissividade outras vezes. Nosso sentido de propósito tentou primeiro uma série de estados monarquistas, então dissolveu-se numa sucessão de tribos errantes. Uma teleologia realizada foi empurrada para fantasia, para Valhalla, e finalmente para o inevitável e supremo paraíso dos trabalhadores, o reino vindo sobre a terra, finalmente levado à realização por uma humanidade que havia amadurecido.

O problema da unidade versus diversidade haveria de se manifestar em cada campo do esforço humano, à medida que civilizações sucessivas procuravam realizar sua própria idéia pública da sociedade ideal. Ao mesmo tempo, aqueles no poder procurariam usar o Estado para satisfazer suas próprias idéias particulares de felicidade. Isso usualmente significava guerra entre as tribos locais e entre os Estados totalitários. A História, como a filosofia e a religião, tornou-se um pouco mais do que a história da seqüência dos esforços malsucedidos para trazer unidade ao Estado e significado ao indivíduo, a alternância do dominante um com o incontrolável muitos.

Porque o ponto de referência finito é sempre insuficiente para poder com a supremacia, o um e o múltiplo não podem nunca, em princípio, estar reconciliados num nível finito. Em outras palavras, os pecadores não podem salvar a si mesmos epistemologicamente. Eles nunca podem decidir se a razão ou os fatos devem ter precedência, ou se Deus é um ou muitos. Seus maiores e melhores programas políticos tendem a terminar em ditaduras totalitárias. Algumas vezes um equilíbrio pragmático entre o um e o múltiplo pode ser sustentado por séculos, como o foi na cultura Harappa do vale Indus (cerca de 2500-1550 a.C.). Mas o preço foi a estagnação, e o sistema finalmente se tornou vítima de agressão externa.


A Grande Cadeia do Ser

Uma vez percebido que o problema é um princípio insolúvel, a questão cessou de ser como solvê-lo e mudou para como absorvê-lo. O problema a respeito do que deve ser levado em conta como uma revelação verdadeira ainda permaneceu, mas pensou-se que talvez isso pudesse ser resolvido por um apelo à esfera dos espíritos. Com esperança de que a espiritualidade pudesse ter sucesso onde o intelecto havia falhado, o oculto tornou-se o recurso de uma humanidade confusa. O misticismo tomou conta onde a mente havia caído em sossego, e esperou-se que nós fôssemos elevados a um plano mais alto, experimentando dimensões mais altas. Uma visão mais abrangente e mais nova foi necessária para substituir a revelação original que todos haviam compartilhado desde o Éden e o dilúvio.

O modelo bíblico de uma nova solução primeva foi a histórica Torre de Babel, um programa mundial de unificação ao redor de um sistema comum de símbolos. No topo haveria os sinais de nossas aspirações por esferas mais altas. Adorando no topo da torre, livres das realidades mais sólidas, a humanidade poderia aspirar explorar os estranhos e novos mundos do oculto.

A resposta de Deus a esse novo leviatã foi suficientemente simples: destruir a unidade do sistema de símbolos, e tudo se desintegraria, como a cultura se fragmentou, no survivalismo na selva pagã. A desintegração do liberalismo moderno ao encontrar as mordazes críticas pós-modernistas, repete esse processo na universidade moderna de nossa própria década.

A despeito dessa falha antiga de uma unificação política da raça humana, há uma visão de importância que reaparece com freqüência entre a massa esfuziante das revelações repetidas e aborrecidas do mundo dos espíritos. Todos os poderes mais altos, todos os espíritos ancestrais e familiares, todos os mestres importantes e todos os gurus e avatares estão em harmonia a respeito de uma coisa. Se considerarmos uma sessão espírita vitoriana ou Edgar Cayce, ou lermos o Mahabharata ou os Upanishads, ou as histórias da idade de ouro da Grécia, ou os mitos dos babilônicos, ou Madame Blavatsky ou A Course in Miracles , a “realidade” se torna uma série de ciclos eternamente repetitivos, do ser em desdobramento, uma emanação perpétua do múltiplo procedente do um e vice-versa, uma vasta cadeia consecutiva do ser desdobrando-se de si mesmo e retornando ao próprio eu, de eternidade a eternidade. Os “necromantes e os adivinhos que chilreiam e murmuram” de Isaías 8.19-20 e os demônios sábios de quem Sócrates dependeu, parecem ter a mesma visão definitiva do que o ser é. Em seu famoso panorama do misticismo, Aldous Husley juntou os quadros visionários representativos do passado religioso e os colocou numa visão unificada que chamou de Filosofia Perene (1945). (Arthur Lovejoy examina seu impacto sobre a filosofia ocidental numa obra intitulada The Great Chain of Beig [1957]).

Satanás sabe melhor do que ninguém que o problema de quem é supremo ou do que é supremo não pode ser resolvido por qualquer acordo, mas que um lado ou outro deve ser completamente dominado. Portanto, a qualquer custo, ele deve encontrar meios de usar a criação de Deus contra ele, com medo de que a ameaçadora profecia a respeito da semente da mulher de esmagar sua cabeça finalmente se cumpra. O consenso de seus seguidores tem sempre sido que, se o problema do Um-e-do-Múltiplo não pode ser resolvido, ele pode certamente ser contido simplesmente por voltá-lo sobre sua cabeça, de modo que o absoluto Um ocupe o topo da escada e o absoluto Múltiplo o pé da escada. Por esse simples movimento, uma grande balança da natureza, uma cadeia do ser, uma árvore da vida, pode ser construída para manter a continuidade entre os dois supremos incompatíveis. Tal visão estruturada do ser-em-geral pode ser feita para incluir todos os seres particulares, cada um tendo um lugar definido na escada. Adão pode ser colocado nos degraus medianos, com Eva no degrau logo abaixo. Essa visão da realidade pode então ser considerada como sendo a ordem da criação.

A suposição da autonomia metafísica que causou a apostasia de Adão e Eva finalmente levou a uma nova teoria, uma cosmovisão ou modo de contemplar a realidade que não é somente requerido pelas sugestões da serpente no jardim, mas parece vir à superfície repetidamente por meio de todo o ocultismo religioso subseqüente do qual a filosofia da Queda tem sido desenvolvida desde então. No Éden, a teoria divina foi substituída pela teoria do demônio. De lá para cá, o autonomismo apóstata haveria de conduzir, por sua própria dinâmica interna, à fé na cosmovisão demoníaca.

É essa cosmovisão pecaminosa que Paulo descreveu como o grande problema humano em Romanos 1, que ele confrontou com os sofismas de Atenas e aos quais ele dá o evangelho de Cristo como uma resposta em 1Coríntios 1 e 2. Os reinos de Israel e Judá enfrentaram isso nas idolatrias antigas das tribos Cananéias. Paulo enfrentou isso em seu próprio tempo na filosofia cultural do helenismo. Lutero encontrou-a na hierarquia da Igreja Católica Romana. Missionários a enfrentaram no hinduísmo. Os evangélicos de hoje encontram essa cosmovisão nas novelas fantasiosas de Charles Williams e C.S. Lewis até nas visões ocultistas da Nova Era, e mesmo nas defesas hierárquicas da subordinação das mulheres nas igrejas mais conservadoras.

Naturalmente, Filo combinou-a com o seu judaísmo do primeiro século, o pseudo-Dionysius, Erígena e, mais tarde, Tomás de Aquino a combinaram com a teologia medieval primitiva, e os cristãos de hoje a combinam em sincretismos com elementos do evangelho da Reforma. Ela é invariavelmente suposta antes do que provada – e é demasiadamente útil para que seja questionada. Mesmo um evangélico, consistente e criterioso como C.S. Lewis, usou-a constantemente como uma ponte entre a revelação e a imaginação do descrente.


Há Somente Duas Religiões

Parece que, no final das contas, as questões a respeito da filosofia, cosmovisão e religião tratam dos mesmos tópicos. Os problemas de uma são os problemas das outras. Em particular, a religião que os evangélicos costumavam pensar como sendo um reino privado da fé e da devoção pessoal é hoje a arena pública da igreja versus Estado, exatamente como aconteceu na Idade Média. Os pontos nos quais o estado mais seriamente ameaça o cristianismo são ainda a educação, os impostos e a justiça pública. Essas espécies de problemas nunca mudam enquanto o Um enfrenta o Muitos nas culturas caídas. Como a maré do consenso moral cristão baixa ao redor de nós, a base oculta da cosmovisão não-cristã é gradativamente exposta, e os crentes sincretistas descobrem que eles têm estado pescando no quebra-mar de outra pessoa durante todos esses anos.

Na filosofia humanista, as áreas da ontologia, epistemologia, ética e teleologia (ou: ser, conhecer, moral e propósito) são todas uniformes em seu testemunho contra a ortodoxia cristã. Elas todas fielmente refletem sua dependência da cosmovisão apóstata ou teoria demoníaca, e sua contribuição a ela. Elas todas operam a partir de um ponto de partida relativista, pragmático e imanentista, ao assumir que a mente humana é suprema. Elas concordam com Strato de Lampsacus de que os princípios para o entendimento do mundo devem ser encontrados no próprio mundo, e não em um Deus “fora do tempo”. Nós não nos atrevemos a obter as nossas pressuposições da Bíblia, com medo de que algum pagão alerta observe que nós todos estamos no mesmo universo criado, e nos acuse de um raciocínio circular, como se somente o cético pudesse ter a verdade objetiva.

Na religião humanista é-nos dito, de um lado, que todas as concepções são igualmente legítimas, mas de outro, que a ortodoxia evangélica deve ser excluída a todo custo. A Nova Era é uma forma aceitável de religião a ser estudada numa escola pública, mas o calvinismo não. A meditação oriental da ioga pode ser usada na escola pública, mas não a oração cristã. O ponto, naturalmente, é que toda forma de espiritualidade humana pode ser compreendida e tolerada como parte da visão mundial apóstata (a teoria demoníaca) exceto o cristianismo histórico.

Ao menos os humanistas autoconscientes verdadeiros têm uma coisa certa: eles sabem quem é o inimigo supremo. Eles o reconhecem pelo símbolo do peixe na camiseta. Eles usam seu filho, Calvino, como o que de pior pode acontecer quando a Bíblia é tornada a base da educação ao invés de ser apenas uma opção tradicional a ser interpretada humanisticamente.


Arminianismo e Calvinismo

Temos visto que esses dois termos históricos são apenas rótulos convenientes para duas abordagens muito diferentes da doutrina cristã que tem tomado várias formas, sendo algumas mais consistentes e outras menos, na história das igrejas. Minha intenção na análise prévia foi proporcionar um contexto para que o leitor possa decidir para onde o afastamento arminiano das doutrinas de Deus, da natureza humana e da graça sustentadas pela Reforma, realmente conduz. É minha opinião que o pensamento arminiano é melhor entendido historicamente, como um compromisso do evangelho da Reforma com o motivo humanista da autonomia da consciência humana, que adveio da erudição pagã antiga que havia sido redescoberta na Renascença e que logo chegaria à maturidade no Iluminismo.

Como uma posição de compromisso, a arminiana é necessariamente instável, porque suas suposições subjacentes a respeito da realidade são comprometidas pela problemática grega do Um e do Múltiplo. Conseqüentemente, os arminianos, como os católicos, invariavelmente toleram o pensamento da cadeia do ser e até (como pseudo-Dionysius, que foi um neoplatonista, ou C.S. Lewis, que não foi) escrevem como se ele fosse essencial ao cristianismo. Aqueles comprometidos com esse conceito são também menos hábeis e menos desejosos de criticar as idéias hierárquicas dos relacionamentos humanos na sociedade, na igreja e na família que têm sempre advindo da suposição da grande cadeia do ser.

Nos próximos cinco capítulos abordaremos a questão do grau em que o arminianismo realmente reflete uma forma defeituosa do evangelho, como entendido originalmente pelos Reformadores e, como J.I. Packer certa vez colocou, como encontrado na Bíblia “em texto claro após texto claro”.


Leitura Adicional

Para o modo como os cristãos têm desenvolvido formas comprometidas e, portanto, inconsistentes, de calvinismo, ver A Christian Theory of Knowledge ( Grand Rapids , Michigan: Baker, 1969) e A Survey of Christian Epistemology ( Ripon , Califórnia: Den Dulk , 1969) de Cornelius Van Til.

Para uma discussão do que significa uma “cosmovisão” , e como ela influencia a cultura, ver o livro de E.M.W. Tillyard, The Elizabethan World Picture (Nova York: Random House, 1969). Este maravilhoso livreto foi designado para explicar para estudantes de literatura inglesa como a visão da cadeia-do-ser controlava a atmosfera intelectual nos dias de Shakespeare. Tillyard e C.S. Lewis foram colegas durante os anos de Lewis em Oxford, de forma que esta obra proporciona atalho para também entender Lewis melhor.

Dois livros excelentes sobre as principais cosmovisões são os de Brian J. Walsh e J. Richard Middleton, The Transforming Vision (Downers Grove, Illinois: Inter Varsity Press, 1984) e o de James Sire, The Universe Next Door , 2ª edição (Downers Grove, Illinois: Inter Varsity Press, 1988). O livro de Francis Schaeffer, Escape from Reason (Downers Grove, Illinois: Inter Varsity Press, 1968) foi importante porque mostrou aos evangélicos como a cosmovisão do ocidente cristão havia mudado. Suas manifestações culturais e seus resultados foram incluídos como material ilustrativo no livro e na série de vídeos How Should We Then Live ? (Old Tappan , New Jersey: Revell , 1976).


Fonte: R. K. McGregor Wright. A Soberania Banida. Cultura Cristã.


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