Livre-Arbítrio: Algumas Considerações

por

Bento Souto

 


O texto abaixo foi postado numa lista de discussão teológica, Cristãos Reformados, pelo irmão Bento Souto, um batista calvinista, em resposta à uma afirmação do irmão Armando Lacerda, um batista arminiano.

O irmão Armando Lacerda assim definiu Livre-Arbítrio: "liberdade de auto determinação e ação independente de causas externas".

Eis a excelente resposta do irmão Bento Souto, totalmente coerente com o ensino das Escrituras:


Olá Armando,

Isso é assunto para ser discutido em volta de um waffle com mel, morango e chantilin em cima, acompanhado de um bom café com creme... Bem, isso fica pra uma possível oportunidade... deixe eu aproveitar que acordei muito cedo, hoje, e gostaria de cumprir a pena a mim imposta pelo Solano (escrever aqui pelo menos uma vez por mês).

Como você bem sabe, eu sou Batista! Predestinação, atualmente, não é uma doutrina bem quista em nossos arraiais. Contudo, não sei se por virtude ou defeito, eu sou chegado a examinar a origem das coisas.

Então, posso dizer com orgulho e louvor ao Senhor que os meus evangelizadores foram Mateus, Marcos, Lucas e João. Foi através dos textos que eles escreveram que eu me apaixonei por Jesus Cristo, acabando com alguns anos de Ateísmo. Eu achava que "os crentes" eram uns babacas, especialmente, uma família de vizinhos.

Assim, não poderia ser diferente em relação ao assunto em discussão. O apóstolo Paulo chega a usar essa palavra absurda - predestinados. Sim, mas havia, ou melhor, há aqueles que dão a essa palavra, predestinado, um sentido que não existe. Ou seja, eles dizem que predestinados são aqueles que escolhem o seu destino. Absurdo, não é , mas eu cria nisso, pois eu não podia abrir mão de Livre-Arbítrio. Tudo foi assim até o dia em que D.James Kennedy me desafiou pregando, à noite (portanto, só para crentes!), em Coral Ridge Presbiterian Church.

Kennedy perguntou: "em sua opinião, como nascem, espiritualmente, os bebês? Sãos, doentes ou mortos?" Acho que ninguém precisa ser Doutor em Teologia para saber que quando se responde essa pergunta, se esposa um feixe de doutrinas.

Se os bebês nascem sãos, espiritualmente, então, nascemos todos como Adão antes de pecar. Se é assim, como explicar que não um só sequer, entre todos os humanos, que faça o bem? Como explicar que todos se desviaram? Curto e grosso: isso é Pelagianismo!

Se nascemos, espiritualmente, doentes, quanto há de trabalho nosso e de Deus em nossa recuperação? Deus entra com a vacina e eu entro com minha disposição em tomá-la? Se for assim, glorificados sejam Deus e nós! Sim, glorificados sejamos nós porque somos melhores do que os nossos vizinhos, porque eles escolheram não tomar a vacina, enquanto nós fizemos a escolha certa. Isso é, tecnicamente, chamado de Semi- Pelagianismo, ou através do seu nome mais conhecido: Arminianismo.

Por último, se nascemos, espiritualmente, mortos, como pode um morto (necros - de onde vem a palavra necrotério, no original Grego) fazer alguma coisa? Como pode um morto tomar a decisão mais importante e sensata da existência - render-se à Jesus Cristo? Será que Lázaro poderia ouvir a voz de Jesus mandando-o sair da tumba? Isso é o que é chamado de Calvinismo.

O desafio de Kenneddy me levou a ler Agostinho, Pelagius, Armínio, Calvino, Lutero e outros. Foram quase dois anos tentando achar uma saída. Quanto mais eu lia a Bíblia e esses caras, mas o cerco se apertava. Finalmente, eu tive que aquiescer e dizer que acho que nascemos, espiritualmente, mortos.

Peraí, e o Livre-Arbítrio?

Ah, quanto mais eu leio, mas eu acho que esse é um termo vazio. Nem sabemos o que estamos dizendo que o Homem possui Livre-Arbítrio. Qual desses homens possui Livre-Arbítrio?

1) O Homem (Adão e Eva) antes de pecar.
2) O Homem caído e sem Cristo.
3) O Homem salvo por Jesus Cristo, mas ainda vivendo nesse mundo.
4) O Homem glorificado nos céus.

Qual desses 4 Homens possui Livre-Arbítrio? O Livre Arbítrio desses 4 Homens acima descritos são iguais? Depois de ler The Bondage of the Will (Servum Arbitrium), escrito por Lutero (você encontra aí na Christian Book Distribuitors, www.christianbook.com - ISBN: 0800753429), em resposta ao que escreveu Erasmo de Roterdã (De Libero Arbitrium), O LIvre-Arbítrio eu não posso mais dizer que esses 4 Homens possuem o mesmo Livre-Arbítrio.

Todavia, somente para demonstrar que Livre-Arbítrio é um termo vazio, vamos olhar sua definição do que é Livre- Arbítrio.

Armando escreveu:

" Livre Arbítrio – liberdade de auto determinação e ação independente de causas externas"

Eu concordo com ela. Acho que a definição é precisa. No entanto, tenho minhas dúvidas de que vejamos o mesmo sentido nessa descrição. Note que a definição diz "liberdade de auto (self, certo?) determinação (escolha, concorda?) e ação (não vou nem entrar na questão de Paulo dizer que escolhe o Certo e faz o Errado, fica pra outra ocasião!) independente (aparte, isolado, correto?) de causas externas (na intimidade do ser, apenas com as coisas do ser, certo?).

Bem, vamos testar se alguma escolha pode ser feita nessas condições. Onde vamos tomar o café da manhã? Na Waffle House ou na IHOP (International House of Pancake)? De que você gosta mais Waffle ou Panqueca? Você deixa para que eu decida? Você gosta mais de panqueca, e eu de waffle, mas você decide ir comer waffle, pois o que importa é a minha companhia? Você gosta mais de estar comigo do que comer panqueca? Infelizmente, a "causa externa" está presente em todos esses processos de escolha. Portanto, o arbítrio não é livre de "causas externas".

Vamos ao cinema. Não, é melhor você ir sozinho para eu não atrapalhar sua escolha. Que filme você decide assistir entre os 12 que estão passando? Sua escolha foi por causa do ator ou atriz? Foi por causa do horário em que ele vai começar? Foi por causa da trama? Foi por que alguém disse que o filme era bom? Onde você vai sentar ao entrar na sala de exibições? Bem no centro, para poder ver melhor a tela? Bem ao fundo, ou na ponta...? Por que você escolhe o lugar onde senta? Não tem jeito, em todas essas escolhas há "causas externas".

Bem, vamos tentar fazer uma escolha sem "causas externas". Você escolheu um modelo de camisa para comprar? E agora, vai ser a azul ou a marrom? Nenhuma das duas, vai ser uma outra cor porque ela é a sua cor favorita? Sinto muito, lá vem "causas externas" no exercício do seu arbítrio... Ou seja, qualquer escolha acontece por causa de inclinações ou preferências, se "preferir" chamar assim.

Livre arbítrio, no processo de escolha de comida, por exemplo,é quando você vai sozinho para um restaurante, na Malásia, e o garçom te dá o menu, e você nem sabe ler o que tá escrito. Você vai escolher um prato sem saber se é líquido ou sólido, se é pastoso ou seco, se é vegetal ou animal, se é cru ou cozido ou se é caro ou barato. Isso é o exercício do livre-arbítrio no processo de escolha de um prato. Ou seja, nenhuma informação (causas externas, lembra?).É como dizer escolha A ou B (se bem que você pode escolher A porque seu nome começa com A...causa externa!). Escolha 1 ou 2! Esquerdo ou direito. Etc.

Nesse ponto, talvez você pense como eu e diga: "peraí, e se for o contrário? E se Livre-arbítrio for um processo de escolha onde se sabe tudo sobre a escolha?" Ou seja, e se Livre-arbítrio for um processo de escolha onde se goste de duas coisas de igual forma? Se não houver preferência (ou inclinação, como eu prefiro chamar) por uma, apenas? A definição acima estaria errada, mas alguém poderia ter a mesma inclinação para os dois lados e escolher um, não seria isso Livre-arbítrio? Afinal, daqui a pouco vamos ter que lidar com o que levou Adão a escolher pecar!

Infelizmente, isso também não funciona. Vamos imaginar que você goste, igualmente, do azul e do marrom. Que camisa você irá comprar? Você só pode levar uma. Qual será? Azul ou marrom? Não adianta, se o gosto for igual, você irá ficar olhando para as camisas pra sempre, sem poder fazer uma escolha. Pois, se escolher uma é porque gostava mais daquela cor do que a outra. Percebe que não há saída? A escolha parece que nunca se livra de "causas externas".

Então, em minha opinião, Livre-Arbítrio é um termo vazio.

Peraí, Bento. E a escolha de Adão? Não foi exercício de Livre- Arbítrio? A de Adão foi livre de "causas externas"? Não estava Eva defronte dele comendo o fruto da árvore que Deus havia dito que se comesse morreria? Isso não é uma boa "causa externa"? E a de Eva, não foi uma escolha livre de "causa externas"? Não havia um outro ser dizendo que se ela comesse o fruto, ela seria igual a Deus? Isso não é uma "causa externa"? Se é assim, então qual foi a "causa externa" que levou Lúcifer a pecar? De onde veio a "inclinação para o mal" no ser dele?

Nesse ponto, acaba a razão humana. Chegamos ao limite da razão. Não há mais terreno para a Razão. Daqui pra frente só se vai pela Fé. É pela Fé que cremos que "Deus não pode ser tentado pelo mal e a ninguém tenta". Qualquer dúvida quanto a isso, eu sugiro que você leia de nova a epístola de Paulo aos Romanos. Lá, ele começa a elaborar o problema da Queda que atingiu toda a raça humana. Depois, ele segue com a Redenção através de Jesus Cristo... até que lá pelo final do capítulo 8 ele já está falando daqueles a quem Deus elegeu. E ele segue mostrando até onde a razão pode ir... Deus escolheu Jacó e não Esaú, antes que tivessem nascido ou feito mal ou bem, afim de que o propósito da eleição permanecesse... e segue até que pergunta se não há injustiça em Deus escolher uns e outros não. Note qual é a resposta. Doxologia. Louvor. Não há o que dizer. A razão humana não consegue explicar isso.

Falar de Livre-Arbítrio num ambiente ocidental é muito gostoso. Meu amigo, George Guilherme, repórter sênior da Globo foi para uns países asiáticos fazer uma reportagem sobre um esporte chamado Sepaktracal (parece nome de remédio, não é?). Num belo dia de domingo, na Malásia, ele acordou e quis ir para uma igreja. Perguntou na recepção do hotel e ninguém sabia o que era igreja. Perguntou para várias pessoas até se dar conta de que talvez ele fosse o único cristão naquela cidade. Se lermos Atos 16, veremos o motivo de George não encontrar cristãos ali. Deus tinha outros planos. Nós não sabemos explicar, apenas cremos e louvamos.

Ou você pode explicar por que eu vivi uma vida saudável (até hoje, graças a Deus) e minha prima Bernadete tem a mente de criança de dois dias de nascida? Nunca disse uma palavra. Nunca disse onde é que estava doendo. Nunca abraçou alguém e disse "eu te amo". Nunca saiu do lugar sem que alguém a carregasse. Nunca comeu nada que alguém não houvesse posto na boca dela. Nunca deu um passo na vida. Você pode explicar por que ela é assim e o irmão e a irmã dela não são? São 45 anos de uma vida dessa maneira.

Acho que nem você e nem ninguém pode. Deus disse que é Ele quem faz pessoas como Bernadete ou com qualquer outra enfermidade de nascimento (Ex. 4:11). Eu não entendo, será que por isso eu devo deixar de louvá-lo? Ou eu admito que a Razão Humana possui limites?

Essa discussão toda sobre Livre-Arbítrio, Eleição, Predestinação, etc., é tentativa de explicar o inexplicável. Há muito exagero e gente, como dizia Calvino, "que entra nos aposentos íntimos de Deus sem a reverência devida". Eu não quero ser um deles.

Sou apenas alguém que tem convicção de que não sou melhor do que ninguém. Sou amigo e discuto a vaga de "principal dos pecadores". Por isso, termino com as palavras daquele personagem de Ariano Suassuna: "eu não sei não, só sei que foi assim".

Abraço,

Bento Souto

25 de Julho de 2004.

 


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