Princípios Teológicos para a Ação Missionária Reformada

por

Timóteo Carriker



Uma boa parte do texto é uma adaptação da reflexão bíblica que se encontra no capítulo nove do livro Missão Integral: Uma teologia bíblica, Ed. SEPAL, 1992, do mesmo autor.


Introdução

Recentemente as denominações presbiterianas no Brasil têm passado por uma conscientização missionária. Isto se torna evidente não só pela proliferação de conferências missionárias patrocinadas por igrejas locais, mas também pelos encontros, consultas e conferências nacionais promovidos pelos diversos órgãos da IPB, desde a sua Comissão Executiva do Supremo Concílio (em março deste ano) até as diversas juntas. Também se evidencia pelas consultas, ao longo dos últimos anos, da Igreja Presbiteriana Independente, a implantação recente dum curso de preparo e educação contínua para missionários da mesma denominação, e a inauguração neste ano do programa de pós-graduação em missiologia do Seminário Presbiteriano do Sul.

O estudo seguinte visa esboçar alguns princípios teológicos que possam orientar este interesse missionário crescente. Tanto os detalhes quanto a própria linha mestre desta reflexão precisam ser debatidos e modificados amplamente nas igrejas. Servem de trampolim para tal tarefa. As sugestões são derivadas de três fontes: uma reflexão bíblica, a tradição reformada, e as discussões de missiólogos contemporâneos. Idealmente os princípios propostos devem ser os mais patentes possíveis para servirem de orientação em todos os níveis da igreja. Aqui organizamos os princípios em três afirmações.


1. Primeira Afirmação

A missão tem a sua origem no próprio relacionamento da Trindade (princípio 1) e encontra o seu instrumento na incumbência missionária atribuida à igreja (princípio 2). Disto surge o princípio de integralidade da missão (princípio 3). Noivo (Cristo) e noiva (igreja) possuem estratégias, metodologias, alvos e objetivos em comum.

1.1 A origem da missão: O Deus triuno

Através de toda a revelação bíblica se torna patente que o principal agente no drama é Deus. “No princípio criou Deus...” É Deus quem cria, quem julga, quem age, quem escolhe, e quem se revela. Ele é ativo não só na criação, mas também nos julgamentos, na libertação do seu povo do Egito, nas exortações dos seus profetas e na promessa de restauração vindoura. Ele é o único e verdadeiro Deus e deseja que sua glória seja conhecida nos céus (Salmo 19) e nas extremidades da terra (Isaías 11.9).

Portanto, “missão” é uma categoria que pertence a Deus. A missão, antes de ter uma conotação humana que fala da tarefa da igreja, antes de ser da igreja, é de Deus. Esta perspectiva nos guarda contra toda atitude de auto-suficiência e independência na tarefa missionária. Se a missão é de Deus, então é dEle que a igreja deve depender na sua participação na tarefa. Isto implica numa profunda atitude de humildade e de oração para a capacitação missionária, uma dependência confiante em Deus, em vez da independência característica da queda, do dilúvio, da torre de Babel e do próprio cativeiro.

Por outro lado, se a missão é de Deus, temos a segurança de que é Deus quem está comandando a expansão do seu reino, nos seus termos, e isto nos dá plena convicção de que ele realizará os seus propósitos.


Implicações

1.1.1 O embasamento teológico para a tarefa missionária da igreja é especialmente importante por causa da dependência que a igreja tem dele e para medir os nossos esforços com o padrão divino.

1.1.2 Isto releva mais ainda o papel da oração e a postura de humildade que a igreja necessita. Em termos práticos, deve se indagar se a igreja está devidamente informada através das publicações, materiais didáticos, congressos e conferências para sempre orar pelo desempenho missionário.


1.2 O instrumento da missão: a Igreja

Se Deus é o agente e a origem da missão, ele não trabalha sozinho. Seu instrumento é um povo específico. A missão também é a tarefa da igreja que, por sua vez, é derivada então da missão de Deus. Deus escolhe um povo específico como instrumento da sua missão. Elegeu um povo, Israel, no Velho Testamento e com este fez uma aliança peculiar a fim de que este fosse a sua testemunha no meio das nações (Gênesis 12.3; Êxodo 19.5-6; Efésios 3.10; 1 Pedro 2.9-10). A eleição de Israel, antes de denotar qualquer favoritismo exclusivista de Deus, teve um propósito inclusivo de serviço missionário para as nações. Quando não cumpria este propósito, Israel era julgado através das mesmas nações para as quais ele deveria ter dado testemunho e deveria ter sido uma bênção.

Esta perspectiva nos guarda contra todo sentimento de favoritismo exclusivista. Não nos orgulhemos na nossa eleição com atitude de superioridade espiritual para com os que não crêem, separando-nos socialmente deles. A eleição não é para separação social (separação moral, sim!), mas participação e serviço. A igreja não encontra sua identidade verdadeira em contraposição social ao mundo, mas justamente numa relação com ele, uma relação não de identificação com seus valores, mas uma relação evangelística de serviço e testemunho ousados. Então, esta perspectiva também nos guarda contra todo escapismo deste mundo para um plano espiritual além.

Também nos guarda contra toda passividade e comodismo. A missão de Deus não inibe a atividade do seu povo, mas dinamiza-a. Se foi Deus quem escolheu, fica patente que escolheu um povo para, através dele, realizar sua missão. A igreja passiva quanto ao seu envolvimento missionário não poderá invocar a soberania exclusiva de Deus como justificativa pela sua passividade, pois o Deus soberano escolheu o seu povo para testemunhar. Usando um exemplo do Novo Testamento, era necessário que Pedro pregasse para Cornélio, muito embora o anjo que o precedeu bem pudesse ter anunciado o evangelho para este centurião (Atos 10). Para atingir alvos universais, a restauração de toda a criação, Deus escolheu meios particulares, um povo.


Implicações

1.2.1 Baseado neste princípio convém refletir sobre o tipo de estrutura(s) missionária(s) mais apropriada (s) para a igreja. A tarefa missionária pertence à igreja toda e em todas as suas dimensões e níveis. Uma coordenação estrutural, fiscal e administrativa seria uma maneira de refletir isto. Entretanto, não significa necessariamente que as estruturas de envio
não-denominacionais ou mesmo projetos de presbiterianos locais independentes (dos concílios da igreja local, dos presbitérios, dos sínodos, ou do Supremo Concílio) estejam fora da vontade de Deus. Trata-se em parte da definição de “igreja” e trata-se historicamente do mistério da vontade de Deus em situações em que uma estrutura denominacional não atenda às múltiplas dimensões da sua incumbência missionária. Seja como for, creio que a denominação deve assumir sua tarefa missionária estruturalmente, procurando manter em sadia tensão os seus órgãos em nível do Supremo Concílio (as diversas divisões duma estrutura missionária unificada) e expressões estruturais mais localizadas e sob medidas (projetos e organizações de sínodos, presbitérios e igrejas locais). Não seria, de maneira alguma uma tarefa fácil, mas também não impossível. Por exemplo, talvez a igreja (IPB) possa criar uma divisão que: 1) ofereça orientação para sínodos, presbitérios e igrejas locais sobre a organização e administração das suas estruturas locais; 2) ofereça treinamento ou recomende treinamento por organizações competentes; e 3) dê o seu reconhecimento eclesiástico periódico para as estruturas que se enquadram dentro dos padrões e alvos da igreja.
Poder-se-ia aplicar este mesmo princípio às estruturas educacionais da denominação que, dentro dos parâmetros acadêmicos e eclesiásticos estabelecidos por ela, seriam regidos mais pelas suas juntas locais e poderiam ter os seus enfoques mais específicos de preparo.

1.2.2 Se a tarefa missionária tem como o seu instrumento a igreja, é importante que isto se reflita na igreja cristã toda. Celebramos o desejo atual de muitas pessoas nas igrejas que querem ampliar as suas parcerias com outras denominações. Acreditamos que o próprio testemunho missionário diante do mundo depende disto (João 17.20-21). É também uma tarefa difícil e delicada que não poderá ser apressada. Entretanto, sem um ecumenismo bíblico e sadio, o testemunho missionário cai por água abaixo.


1.3 A integralidade da missão: Deus e a Igreja

Como os dois conceitos do Servo de Iahweh e do Filho do Homem no Antigo Testamento oscilam entre uma referência individual e uma coletiva, nossa referência à missão varia entre uma referência à missão de Deus e outra à missão do povo de Deus. Discursando a respeito de missão, referimo-nos, ora à missão de Deus, ora à missão da igreja, considerando o conteúdo do primeiro, e por conseqüência, logo refletindo sobre as implicações disto para o segundo. Tal discurso ilustra a dinâmica e integralidade da missão como sendo a missão de Deus e da igreja.

Deus partilha sua tarefa com seu povo e nela o convida a participar. Este recebe a promessa de que Ele estará sempre presente na realização da missão. Decerto, a missão de Deus jamais poderá ser sinônimo da missão da igreja. Por outro lado, nem tampouco poderá a missão da igreja ser considerada absolutamente divorciada da missão de Deus. A dinâmica entre os dois encontra sua expressão ideal à medida que a igreja discerne a missão de Deus e se conforma à mesma, um ideal que embora nunca se realize perfeitamente, mesmo assim se manifesta em parte.

A vice-regência do homem sobre a criação teve como um propósito refletir a soberania de Deus, mas jamais duplicá-la ou substituí-la. Israel herda este papel de embaixador de Deus no meio das nações, ou melhor, de sacerdote e testemunha. Portanto, Deus e o seu povo não são competidores na missão, e, sim, cooperadores, sendo a igreja serva da missão de Deus. Enquanto o povo de Deus é convidado a participar com Deus na sua missão de restauração, Deus promete sua presença no desempenho da missão do povo de testemunha diante das nações.


Implicações

1.3.1 Tal perspectiva da dinâmica da missão nos guarda, por um lado, contra uma identificação completa dos programas missionários das denominações e agências missionárias com o propósito e missão global e integral de Deus. O povo de Deus reflete, apenas parcial e imperfeitamente, a missão de Deus. Historicamente, nem sempre a missão da igreja refletiu o caráter justo, salvador e libertador de Deus. A íntima associação de missões com a política expansionista e conquistadora do Império Carolíngio do século VIII na Europa e da Ibéria do século XVI na América Latina, ou com o colonialismo do século XIX na África Negra, proíbe qualquer identificação estreita da missão de Deus com o conceito que às vezes se tem de missão da igreja. Até hoje, um certo triunfalismo às vezes se evidencia nas nossas promoções e nos slogans missionários que jamais poderá ser comparável com a adoção humilde do papel de missionário-servo do povo de Deus no meio das nações.

1.3.2 Por outro lado, esta dinâmica da missão estimula e capacita o povo de Deus a uma aproximação e à participação com a missão de Deus e nos dá a confiança, mesmo em meio de dificuldades e desânimo, de que Deus vai levar avante sua missão. Ele é criador do mundo e autor da história, e sua missão de restaurar aquele e completar esta vai se realizar, não apesar, mas através do seu povo.

1.3.3 A cruz é o supremo padrão vivencial e paradigmático do procedimento missionário. Implica em humildade e não orgulho (Filipenses 2:5-11), sofrimento e não glória (Colossenses 1:24), sacrifício e o desafio radical para as nossas congregações. Isto deve temperar todo o nosso planejamento e organização.


2. Segunda Afirmação

A existência de toda a Bíblia é a primeira evidência de que Deus tem uma missão, um propósito salvífico para este mundo (princípio 4). Ele não é um Deus abstrato mas é o Deus que age no nosso meio, que se revela por si mesmo a nós e que tem uma finalidade para sua criação. Se a origem da missão está em Deus - “no princípio criou Deus...” - seu fim está no alcance universal da sua misericórdia e graça (princípio 5) – “a graça do Senhor Jesus seja com todos” (Apocalipse 22.21). E este propósito restaurador da missão tem uma dimensão universal. Se Deus é o principal agente ou sujeito da missão, e a restauração o seu conteúdo, então seu alcance abrange a criação toda. Este é o lugar onde a missão se desdobra, o mundo, e o seu processo se realiza na história deste mundo (princípio 6).


2.1 O propósito da missão: a Salvação

Para usar um termo mais abrangente, podemos descrever o propósito da missão como sendo o de restauração. É a missão da salvação. Aquilo que Deus criou, ele pretende restaurar. Contudo, a restauração é salvação não só no sentido de poupar, mas também no sentido de julgar. Haverá um novo céu e uma nova terra, mas isto através do sofrimento, tribulação e julgamento. A mensagem de restauração no Velho Testamento, consistentemente, inclui estas duas dimensões de salvação e de julgamento. Vemo-nas no relato do dilúvio (julgamento) e da arca (salvação), da torre de Babel (julgamento) e do chamamento de Abraão (salvação), no Êxodo, na aliança com Israel e na conquista de Canaã. Vemo-nas nas críticas dos profetas (julgamento) e nas suas promessas de salvação vindoura. E vemos-nas na resposta humana à provisão do perdão dos pecados pela morte e ressurreição de Jesus.

Ou misericórdia ou julgamento, era a sorte dada a Israel e às nações, de acordo com o seu relacionamento de dependência de Deus e com o seu relacionamento de misericórdia sobre a criação, duas características da imagem de Deus no homem. Por isso, tanto a adoração apropriada e genuína para com Deus (que demonstra a sua dependência) quanto a justiça expressa nos relacionamentos sociais e ecológicos dentro e fora de Israel (que demonstra a sua função de mordomo), eram o critério usado para determinar a ação divina, ou julgamento ou salvação, ambos como alvo da restauração da criação e da humanidade.

Este critério duplo, adoração e justiça, integra as dimensões pessoais e sociais da missão de restauração, fundindo as distinções espirituais e materiais da fé. A verdadeira espiritualidade terá expressão mais aguda nas relações concretas em que o povo de Deus vive.

Esta perspectiva do propósito restaurador da missão nos guarda contra a falsa dicotomia da tarefa missionária e da fé. Restauração é este propósito, portanto a obra redentora de Jesus Cristo e a evangelização permanecem centrais à missão de Deus. Contudo, esta redenção deve ser entendida como resultando tanto em adoração própria e sincera a Deus quanto em relações de justiça para com o próximo e para com toda a criação.


Implicações

2.1.1 Em termos de adoração, isto implica na dinamização nas igrejas cristãs, do culto e especialmente da liturgia. Implica na valorização e implementação de músicas e liturgias contextualizadas, com conteúdo bíblico e expressão afetiva, enfim, um culto que leve o povo à profunda e sincera adoração e não ao mero estímulo intelectual.

2.1.2 O propósito da missão como sendo a restauração, além de implicar em adoração própria, também implica em relações de justiça dentro e fora do povo de Deus. Decerto, pouco o povo de Deus teria de testemunho quanto às questões de justiça se no seu próprio meio estes padrões não encontrassem expressão. Ser povo de Deus implica em refletir algo do caráter de Deus, e isto inclui fundamentalmente a qualidade de justiça. Por isso, a diaconia na igreja primitiva assumiu uma importância essencial para o seu testemunho no mundo. A igreja necessita de uma perspectiva bíblica da sua tarefa para formular seu entendimento sobre estas questões de acordo com os padrões e ensinos bíblicos. Tal formulação só poderá desafiar a igreja a participar no propósito da missão como sendo a remissão dos seres humanos e da criação toda; e esta participação se manifestará através de uma adoração sincera e exclusiva ao Senhor e através de padrões de justiça dentro da igreja que a chame a anunciar o domínio de Deus ao mundo, o que implica, simultaneamente, em padrões de justiça no mundo.


2.2 O alcance da missão: Universal

Deus se propõe a restaurar aquilo que criou. Sua missão é uma missão para a criação. Não é por acaso que a revelação escrita que descreve a missão de Deus começa com a criação dos céus e da terra e termina com a restauração dos mesmos num novo céu e nova terra. O homem não só é guardião do seu próximo, mas mordomo da própria criação. Através do julgamento do dilúvio, não só parte da raça humana é salva, mas também parte representativa da criação toda. As leis da aliança detalham as dimensões religiosas, sociais e ecológicas da fé e da obediência do povo de Deus, provendo instruções para o bem-estar de toda a criação e toda a vida, em todas as suas múltiplas dimensões. Os salmos e hinos no Velho Testamento incluem os louvores não só do povo de Deus, mas também da própria natureza; e a era vindoura de salvação só pode incluir a expectativa de restauração não só de Israel e das nações, mas da criação toda (Isaías 43.18-21; 65.17-25).


Implicações

2.2.1 Esta perspectiva nos guarda contra toda sorte de miopia missionária. Não nos satisfazemos até que todos os povos, línguas, tribos e nações recebam o evangelho do reino (Mateus 24.14) para o louvor do Cordeiro de Deus (Apocalipse 5.9-14; 7.9-12), implica então numa motivação e estratégia evangelística que procure ir não só para os mais distantes lugares, mas aonde quer que Cristo não tenha sido anunciado (Romanos 15.20), quer sejam grupos humanos negligenciados ou “escondidos” por perto, quer sejam povos não-alcançados mais distantes.

2.2.2 Os meios concretos desta missão evangelística incluem primordialmente a proclamação verbal do evangelho, e também a implantação de igrejas locais.

2.2.3 Mas o alcance da missão não pára com toda a raça humana. Também implica na igreja assumir a tarefa de mordomo sobre a criação toda. Problemas ecológicos como a seca no nordeste, enchentes no sul, desflorestamento da Amazônia, poluição do meio-ambiente, o uso apropriado e a redistribuição de terras também devem ser tratados pelo povo de Deus.
Fazem parte da sua missão. Que isto seja dever do governo não há dúvida, contudo a igreja antes, tendo uma restauração substancial da imagem de Deus nela, deve opinar e se envolver num testemunho para toda humanidade e toda a criação.


2.3 O local da missão: o Mundo e a História

Desde o início do testemunho bíblico observamos que Deus age dentro e através de eventos concretos na vida dos seres humanos. Ele não se manifesta num plano contemplativo e fora deste mundo, mas dentro e através da história. Julga através da expulsão do Éden, através do dilúvio e da dispersão de povos. Julga as nações através das pragas no Egito, a conquista de Canaã e a queda de um império por outro. Julga seu povo através dos profetas e através do exílio. Mas também abençoa através da libertação do Egito, do exílio, e de modo supremo e definitivo através da morte e ressurreição de Jesus. São todos estes eventos históricos, acontecimentos neste mundo. Até mesmo a literatura apocalíptica, que enfatiza um contraste com este mundo, ensina que a intervenção futura e catastrófica de Deus será uma irrupção para dentro desta história e deste mundo. Embora enfatize descontinuidade com a progressividade natural da história humana, não transfere o cenário dos atos salvíficos de Deus para um plano extra-histórico ou ultra-mundano. Apenas ressalta a opção sempre presente e futuramente iminente da intervenção divina na história, como sendo abrupta e extraordinária.


Implicações

2.3.1 Creio que a perspectiva bíblica ilumine muito a tarefa ou a missão da igreja no Brasil e em toda a América Latina. Sabendo que Deus atua num projeto histórico, a igreja tem uma boa base para se perguntar: “Onde, nos eventos históricos da realidade latinoamericana, podemos discernir a mão de Deus?” Alguns podem entender isto como sendo uma secularização da fé. Não é nossa intenção. Em vez de reduzir a missão de Deus aos afazeres deste mundo, queremos discernir onde e como Deus poderá estar manifestando seu reino na nossa história. Implica na proclamação do evangelho para arrependimento e conversão. E implica em participar na luta pela justiça. Com os pés no chão, as mãos em oração e os olhos abertos à realidade multidimensional e latinoamericana, a igreja dá testemunho pela proclamação das boas novas e pela promoção de justiça de maneira concreta e visível.

2.3.2 Implica numa desmistificação da fé. A verdadeira espiritualidade não é aquele jejum “sagrado” com orações de belas palavras perfumadas, mas é um estilo de vida cotidiano para com o seu próximo que reflete o caráter justo de Deus (Isaías 58.6-7).

Uma análise, até superficial, da situação socio-econômica na América Latina deixa a igreja sem desculpa quanto à sua missão neste mundo e nesta história: anunciar às nações a chegada do reino de Deus e viver um modelo deste reino através de sincera adoração e de um padrão de justiça que tome expressão no mundo e na história.

2.3.3 Não obstante, este processo jamais poderá ser identificado simplesmente com o processo histórico e humano. A literatura apocalíptica e as intervenções singelas e dramáticas de Deus na história de Israel (ex.: o êxodo) nos distanciam de uma plena confiança nos processos apenas humanos da história. O reino de Deus não poderá ser identificado com o processo histórico, embora possamos e devamos detectar indícios deste reino na história. Conquanto a era escatológica seja apenas divinamente inaugurável, o povo de Deus também participa na sua promoção. E, conquanto sua realização seja apenas futura, já podemos discernir sinais dela na história presente.

2.3.4 Não podemos tolerar uma visão estreita e imediatista que sempre vê apenas os desafios atualmente urgentes. Tal visão curta se alimenta duma escatologia superficial, se sujeita à tirania do urgente e evidencia cegueira histórica. Paulo, que desejava o retorno de Cristo, teria razão de pensar assim, mas não o fez. Sempre pressupôs o longo prazo para o seu desempenho pastoral e missionário. Necessitamos, portanto, duma visão larga, profunda e extensa do presente porque os desafios são eternamente urgentes, uma visão escatológica do agora baseada no passado distante e um futuro que é prerrogativa apenas de Deus (Atos 1.8, repare que o “mas” responde à tentação de identificar datas ou prazos temporais). Entre outras coisas, este princípio implica num preparo prolongado, diante tanto do tamanho quanto da urgência do trabalho

2.3.5 O ensino, a proclamação, a cura e a libertação todos fazem parte da missão da igreja. Isto deve ser refletido nas atividades dos nossos obreiros missionários, sendo eles pregadores da Palavra (evangelistas e pastores/apóstolos), e também professores, gente da área de saúde, agronomia, etc.


3. Terceira Afirmação

O alvo e o fim último da missão é a glória de Deus, não a atividade missionária em si. O desafio missionário existe e persiste porque o culto pleno a Deus ainda não existe. O culto é o alvo último da igreja. O culto a Deus deve ter prioridade na igreja, não a obra missionária, porque Deus é último, e não o ser humano. Quando esta era terminar e representantes de toda raça, tribo e nação se dobrarem diante do Cordeiro de Deus, a obra missionária não mais existirá na igreja. Mas existirá o louvor e a adoração. Permanecerá na igreja o culto. O culto é o fim último da igreja e o desejo máximo de Deus para toda a humanidade. A primeira pergunta do Catecismo de Westminster diz: “Qual é o fim principal do ser humano?” E a resposta acertada é: “O fim principal do ser humano é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre.” Uma reflexão sobre Romanos 15.4-13 ilustrará que a glória de Deus no culto e a razão (princípio 7), o combustível (princípio 8) e o alvo (princípio 9) da obra missionária.


3.1 A razão de missões: a Glória de Deus

Os versos 8 a 9 de Romanos 15 fazem uma afirmação: Jesus Cristo comprova a fidelidade e veracidade de Deus porque, através dele, as promessas de Deus para o povo judeu se cumprem. Afinal, somente um deus falso e infiel não cumpre as suas promessas. Em Romanos 15.12, Paulo cita Isaías 11.10 como apoio das Escrituras para sua afirmação que em Jesus Deus se prova fiel às suas promessas. Os beneficiários das promessas são primeiro os judeus e também as nações. Este, aliás, é o tema principal de toda a carta aos Romanos, como vemos no 1.16: “Na verdade, não me envergonho do evangelho: ele é força de Deus para a salvação de todo aquele que crê, em primeiro lugar do judeu, mas também do grego.”

Em Romanos 15.9 as nações glorificam a Deus “por causa da sua misericórdia”. Isto é, em Jesus Cristo, elas também se beneficiam da salvação que Deus dá, e como Paulo havia falado nos capítulos 9 a 11, as nações estavam, de fato, aceitando em grandes números, o evangelho. Portanto, a misericórdia de Deus em estender a salvação para as nações é a suprema razão da obra missionária. É iniciativa e obra dEle, portanto, nós, os embaixadores de Deus, teremos toda razão de anunciar tão grande oferta. Enraizamos a razão da obra missionária não no ser humano, na sua carência de Deus, ou no seu amor para com aqueles que não tem Deus, mas a razão da obra missionária está firmemente enraizada na iniciativa e na misericórdia de Deus, isto é, na sua soberania.


3.2 O combustível de missões: a Glória de Deus

A paixão por Deus no culto precede a oferta de Deus na pregação. Não se pode recomendar com convicção aquilo que não se estima com paixão. Não poderá clamar, “Alegrem-se e exultem as gentes” (Salmo 67.4a) aquele que não pode afirmar no seu coração, “eu me alegrarei no SENHOR” (Salmo 104.34b; 9.2). “Quando a chama do culto queima com o calor da verdadeira dignidade de Deus, a luz da obra missionária brilhará até os povos mais distantes da terra” (John Piper, p. 12). Quando a paixão por Deus está fraca, o zelo por missões certamente será fraco também. As igrejas que não exaltam a majestade e a beleza de Deus dificilmente poderão acender um desejo efervescente para “anunciar entre as nações a sua glória” (Salmo 96.3). Os nossos cultos fervem com a exaltação da glória de Deus? O zelo pela glória de Deus no culto motiva a obra missionária. John Piper, cita o seguinte pronunciamento de Andrew Murray feito há mais de cem anos: “Enquanto buscamos a Deus sobre por que, com tantos milhões de cristãos, o verdadeiro exército de Deus que está combatendo os exércitos da escuridão é tão pequeno, a única resposta é - falta de coragem e entusiasmo. O entusiasmo pelo reino de Deus está faltando. E isto é porque há tão pouco entusiasmo pelo Rei.”

Ninguém poderá se dispor à magnitude da causa missionária se não experimentar a magnificência de Cristo (Apocalipse 15.3-4; cf. Salmos 9.11; 18.49; 45.17; 57.9; 96.10; 105.1; 108.3; e Isaías: 12.4; 49.6; 55.5)

Nunca esquecerei do jovem rapaz que nos visitou em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Ele falava do seu entusiasmo de evangelizar, no início da sua fé. Naquele momento, entretanto, ele achava que já amadurecera e portanto não possuía mais tanto zelo de evangelizar! Ele precisava mesmo renovar a alegria da sua salvação para que fluísse, em conseqüência disto, o culto a Deus e a evangelização (Salmo 51.10-15). O culto é o verdadeiro combustível para a obra missionária.


3.3 O alvo de missões: a Glória de Deus

O culto é o alvo da obra missionária simplesmente porque nosso propósito é levar as nações a se regozijarem em Deus e glorificá-lo acima de tudo. O alvo da obra missionária é a alegria dos povos na grandeza de Deus (Salmo 97.1; 67.3-4; cf. 47.1; 66.1; 72. 11, 17; 86.9; 102.15; 117.1; e Isaías 25.6-9; 52.15; 56.7; 66.18-19.

Há um aspecto desta verdade que precisamos explorar mais. É o seguinte: O culto a Deus como alvo da obra missionária ajuda a entender a própria definição da obra missionária. Pois a obra missionária enfatiza a prioridade de alcançar povos, ou etnias não alcançadas. Isto se evidencia na repetida descrição bíblica da tarefa missionária em termos de etnias (Mateus 24.14; 28.18-20; Romanos 15.19-21). Na Bíblia, a frase, panta ta ethn, significa “todas as nações” ou “todas as etnias”. A palavra na forma singular, ethnos, de fato, sempre se refere à coletividade dum povo ou duma nação. Nunca se refere a indivíduos gentílicos. O mesmo é geralmente verdade em relação a palavra na forma plural, ethn. A frase, panta ta ethn, quase sempre denota esta referência coletiva na Bíblia, também. Que a estratégia bíblica seja de alcançar especialmente as etnias não alcançadas é claro em Romanos 15.19-21. Para muitos cristãos, talvez até a maioria, esta estratégia não parece muito lógica. Antes alcançar todos os indivíduos ao nosso alcance e semelhantes culturalmente a nós, que procurar alcançar representantes de etnias que podem ser geográfica ou culturalmente distantes. Parece uma questão de mordomia de esforços.

Este raciocínio parece, sem dúvida, bastante lógico e leva muitas igrejas a desconfiar da estratégia missionária de alcançar representantes de diversas etnias. Meu ponto é o seguinte: se fosse pelo amor humano pelo ser humano, nossa ênfase deveria estar na salvação de indivíduos que estão próximos, e isto, de fato, é a prática comum. O amor a Deus, entretanto, leva a outra conclusão, que acredito ser a bíblica: a ênfase na prioridade de etnias, e especificamente etnias não alcançadas porque: 1) há mais beleza e poder de adoração na unidade de culto derivada da diversidade de povos que canta todas as partes dum hino a Deus do que no coro que canta uníssono (Salmo 96.3-4); 2) a fama, a grandeza, e o valor dum objeto de beleza aumenta na proporção da diversidade daqueles que reconhecem tal beleza; 3) a força, a sabedoria e o amor dum líder se magnifica na proporção da diversidade de povos que ele inspira para segui-lo; e 4) ao focalizar todos os grupos humanos do mundo, Deus está subvertendo o orgulho etnocêntrico que se baseia em alguns atributos distintivos que cada povo gosta de destacar. Ao invés disto, o orgulho etnocêntrico natural de cada povo dá lugar à graça imerecida de Deus.


Implicações

3.3.1. A liturgia, a educação cristã, e o evangelismo todos fazem parte da missão e testemunho da igreja. Como expressar isso estruturalmente na igreja?

3.3.2. A estratégia missionária se resume na frase: os não-alcançados. O lema de Paulo era “não onde Cristo já fora anunciado” (Rm 15.20-21) e não “até aos confins da terra” (At 1.8). Ele literalmente "preenchia" os vãos onde o evangelho não fora anunciado (Rm 15.19 cf. Cl 1.25). Esse slogan deve ser o nosso: não onde Cristo já fora anunciado. De certo modo a denominação se preocupará com o estabelecimento de igrejas onde igrejas desta denominação ainda não foram estabelecidas. Tal meta tem uma certa lógica organizacional, mas esta meta deve ser secundária (não descartada) da meta maior de “não onde Cristo já fora anunciado.”


Conclusão

A obra missionária começa e termina com o culto prestado à glória de Deus. Começa, porque somente o culto genuíno e profundo pode motivar adequadamente a igreja para assumir sua vocação missionária. E termina, porque o alvo último e o fim principal de toda humanidade é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre. E na obra missionária, procuramos levar as nações à mesma alegria e exaltação que carateriza o nosso culto a Deus. Portanto, quando afirmamos que a obra missionária é a prioridade penúltima na igreja não estamos diminuindo a sua importância. Estamos meramente fazendo o que devemos, maximizando a tarefa de glorificar a Deus e gozá-lo para sempre. E assim, enxergamos a verdadeira importância da obra missionária, certamente acima de outras atividades na igreja, isto é, estender e diversificar, e assim intensificar o culto que glorifica e se deleita em Deus entre todas as nações da terra (Apocalipse 5.9-10; 7.9-10).

 

 


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