Dons Extraordinários

por

Moisés Bezerril



Falar sobre este tema é de muita responsabilidade. Hoje o que se vê nas Igrejas quanto à doutrina do Espírito Santo, e que é pregado, não é uma doutrina, uma teologia, mas praticamente é uma tradição pentecostal.

Quero inicialmente dizer que os pentecostais não são famosos por teologia; a formulação teológica nunca foi o “forte” do pentecostalismo. Desde os seus primórdios, eles gostam de dizer ao mundo que não gostam muito de teologia. Porém, hoje já se vê pentecostais que estudam, têm seminários, mas o início da história do pentecostalismo não é com raciocínio teológico, ao contrário, é com a “experiência” que vão dar sempre a formulação teológica. Dessa forma, não podemos procurar estudo substancial sobre este assunto na tradição pentecostal, pois não há profundidade. Consultei um comentário de seis autores de várias linhas teológicas sobre a questão do que significa que é “perfeito” em 1 Co.13 e o exame mais fraco do texto, o argumento mais fraco, é o pentecostal, é a análise pentecostal.

A Confissão de Fé de Westminster é decisiva sobre esta questão e é bom mostrá-la para que percebamos que não estou sozinho neste tema e nem é fruto de minhas “elucubrações” teológicas. Eu estou com a grande maioria dos teólogos reformados e puritanos do passado e de todas as épocas, como John Owen, Turrentine, Jonathan Edwards, Sinclair Ferguson e outros. Teólogos que na verdade tiveram uma compreensão bíblica e totalmente diferente do pensamento pentecostal. Isso pode ser intrigante porque há um autor (Caio Fábio), que no seu livro sobre o Espírito Santo diz que na época dos reformadores os dons não existiam na Igreja porque eles estavam preocupados com as grandes doutrinas que motivavam a luta entre a Igreja Católica e os reformados. Segundo ele, por estarem preocupados e envolvidos nesta luta, esqueceram-se dos dons. Isso leva-nos a concluir que os dons do Espírito seriam algo manipulável. Ou seja, seria afirmar que nós só recebemos dons quando a eles é dada a ênfase necessária. Mas a palavra “dom”, teologicamente, não encerra em si mesmo essa manipulação. Não vemos no Novo Testamento os dons serem algo da manipulação do homem. Ou seja, “se eu crer receberei, se eu der ênfase receberei”; não é assim! A própria palavra charismata, vem da palavra grega que significa dom imerecido. Não é algo que está na dependência de qualquer condição humana, como a salvação também não está. A palavra charismata vem da mesma raiz grega charis, que significa graça (“dom imerecido”).

Vejamos a Confissão de Fé de Westminster (também a Confissão de Londres —Batista de 1689) no seu primeiro capítulo Da Escritura Sagrada, parágrafo 1:

“...e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isto torna a Escritura Sagrada indispensável, tendo cessado aqueles antigos modos de Deus revelar a sua vontade ao seu povo.”

A Confissão de Fé de Westminster é clara e definida quando diz que a Palavra de Deus é suficiente e indispensável. Deus hoje comunica a Sua vontade além de Sua Palavra? A Assembléia de Westminster diz: NÃO! Porque os antigos modos de Deus revelar a Sua vontade cessaram. E o que a Confissão de Fé tem a ver com esta questão toda? É que existe uma séria polêmica entre dois temas que são muito conflitantes. Eu pergunto: Como posso crer na suficiência das Escrituras para a vida da Igreja e crer ao mesmo tempo na necessidade dos dons espetaculares de 1Coríntios 12:1-11? Qual é o lugar da Palavra de Deus e qual é o lugar desses dons? Devemos entender que a Igreja de Corinto não é uma igreja da nossa época. Muitas pessoas olham para a igreja de Corinto como se estivesse vendo sua própria igreja, como se estivesse vendo a Igreja do século XXI. Mas não há igualdade. A igreja de Corinto era uma igreja de tradição apostólica, uma igreja que ainda não tinha a doutrina da nova aliança revelada, como nós a temos. Mas era uma igreja formada por pessoas que estavam “engatinhando” e que precisavam de edificação e alimento espiritual para suas vidas.

Aqui está a grande pergunta: Como os crentes de Corinto eram edificados se não tinham a doutrina da Nova Aliança? Alguém poderia dizer que eles tinham o V.T. É verdade, mas com a revelação de Cristo, toda a doutrina do VT agora toma uma tonalidade diferente, não em sua substância, mas na sua forma. E tem de haver uma aplicação desta verdade na vida prática dos crentes. Como isso é feito? O pastor chega no domingo, abre a Bíblia e vai falar sobre casamento lendo 1Co. 7 e percorre uma série de outros textos correlatos sobre o tema. Por exemplo: A mulher que se converteu ao cristianismo e o marido não, querendo, por isso, deixa-la. Há alguma orientação no V.T. para este tipo de problema? Não. A doutrina do V.T. é a mesma do N.T, só que lá ela é restrita à revelação dada ao povo de Israel. Mas agora novos problemas surgem com a entrada dos gentios na aliança e por isso é necessário que uma interpretação do V.T. seja trazida à luz da Nova Aliança para a nova Igreja depois de Pentecostes. Surgem problemas diversos. Como eles resolveriam problemas de dois povos diferentes que se juntam? Como se deve tratar os irmãos mais pobres no culto? Diante da revelação do V.T., como o povo seria doutrinado à luz da Nova Aliança sem Novo Testamento?

É muito fácil doutrinar a igreja hoje considerando toda revelação escrita. Mas naquela época os crentes necessitavam de uma edificação totalmente distinta do método de edificação de hoje. Na era apostólica a igreja dependia exclusivamente dos dons espetaculares do Espírito. Em 1 Co. 1:7 lemos: “...de maneira que não vos falte nenhum dom, aguardando vós a revelação de nosso Senhor Jesus Cristo”. Muitas pessoas usam este texto para dizer que os dons podem ser manipulados. Como se Paulo dissesse: “Vocês dêem um jeito para que eles não faltem”. A tradução da língua grega é problemática, pois, na verdade algumas traduções dizem “não vos falta”. Aqui o verbo grego está no infinitivo, O problema é que existe uma partícula grega, um advérbio de negação () que é sempre usado no subjuntivo e por isso fizeram esta tradução que comumente usamos:

“de maneira que não vos falte”. Mas o contexto imediatamente e o verbo estando no infinitivo dá a entender que Paulo está dizendo que o testemunho de Cristo está sendo confirmado em vós de “maneira a não faltar”. Qual é a prova que o testemunho de Cristo tem sido confirmado em vós? Que os dons estão presentes entre vós. Então, a Igreja tem estes dons espirituais. Corinto tinha estes dons espirituais. Poderíamos até perguntar: Será que as igrejas da Galácia, de Éfeso, Tessalônica não tinham estes dons? Só estavam presentes em Corinto? Todas as igrejas apostólicas tinham os dons espirituais porque era a única maneira da igreja do primeiro século ser edificada. Mas, porque Corinto se sobressai em relação aos dons espirituais? Porque este era exatamente o problema daquela igreja e quanto a ela Paulo diz que não deseja que seja ignorante acerca dos dons espirituais.

No capítulo 12 percebemos que Paulo diz que “A respeito dos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes. Sabeis que, outrora, quando éreis gentios, deixáveis conduzir-vos aos ídolos mudos, segundo éreis guiados. Por isso vos faço compreender que ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma: Anátema Jesus! por outro lado, ninguém pode dizer: Senhor Jesus! senão pelo Espírito Santo”. Paulo começa a dizer que “os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo. E também há diversidade nos serviços, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade nas realizações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos. A manifestação do espírito é concedida a cada um, visando um fim proveitoso” (vs.1-7). O problema aqui era que os crentes exageraram na questão do dom de línguas e por isso há um capítulo inteiro sobre este ponto. Por quê? Porque o dom de línguas é um dom misterioso que trás revelação. E também um dom extraordinário, espetacular, que você vê. É um dom sensível e logo percebido. Em Corinto havia o mesmo problema de hoje nas igrejas carismáticas. Quem tivesse este dom era considerado o mais espiritual. É bom lembrar que o dom de língua é um dom-sinal, pois marca exatamente a transição dos oráculos de Deus que eram concedidos numa única língua ao povo escolhido e quando surgem os gentios falando das grandezas de Deus, Paulo lembra que língua é um sinal (sinal para os incrédulos —judeus — e não para os crentes).

Havia em Corinto esta questão de se pensar que o mais espiritual era aquele que falava em línguas. Paulo, então, afirma que os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo. Era como se Paulo perguntasse: “Vocês pensam que a quem falta o dom de profetizar ou de fazer milagres, não tem o Espírito? É o mesmo Espírito que opera como quer”. A diversidade de dons não diverge na medida do Espírito.

Vamos ver alguns dons de 1 Co12, para edificação da Igreja, dons espetaculares e que trazem revelação.

A característica de um dom espiritual é trazer um fim proveitoso (v.7). Nenhum dom pode ser dado sem que haja um fim proveitoso. Muitos dizem ter vários dons mas, mesmo assim, não há proveito para a igreja. “Porque a um é dado, mediante o Espírito”:

1. A palavra de sabedoria. O que era esta palavra de sabedoria? Era exatamente aquela questão relativa a uma igreja que precisava de uma palavra de orientação. Como o pastor hoje orienta as suas ovelhas? Com a Bíblia, citando princípios bíblicos. Mas, se eles não tinham Bíblia completa, como o povo era orientado nas mais variadas situações? Como a igreja era dirigida com uma palavra de sabedoria. Esse conhecimento era apenas em parte, porque naquela época os irmãos saíam da igreja apostólica e chegavam em casa para ler algo incompleto. Sob a Nova Aliança eles liam o que? Não tinham ainda a palavra final para ler, mas necessitavam de orientação para a vida, necessitavam de sabedoria. Neste caso, era necessário que os crentes fossem para a igreja e esperassem que Deus trouxesse uma pessoa com dom de sabedoria para orientar a igreja em todas as áreas. Hoje nós temos a Bíblia completa, mas eles não. Eles tinham uma palavra que lhes era revelada porque não havia ainda princípios neo-testamentários para dirigir a igreja sob todos os problemas. Era necessário algo revelado por Deus, uma palavra de revelação.

2. Palavra de conhecimento. Como os crentes sabiam a respeito da ressurreição dos mortos; sobre a messianidade de Jesus; como eram doutrinados de tal maneira que Cristo fosse formado neles; como saberiam dos mistérios de Deus que nos edificam? Como isso era trazido para a Igreja? Resposta: Através de um irmão, dotado por Deus com esta palavra de conhecimento. Esta expressão grega é dom da ciência. Muita gente quando cita o texto, “havendo profecias, desaparecerão; havendo línguas cessarão; havendo ciência passará” se refere equivocadamente à ciência como ciência tecnologia e quando esta “ciência” passar os dons passarão. Mas Paulo está falando de dom espiritual. Este é o dom do conhecimento. Esta pessoa se levantava para trazer doutrina revelada ao povo.

3. Fé. Esse dom de fé tem uma similaridade com o dom de milagres. Deus levantava pessoas na igreja e lhes dotava de um poder, de uma fé tão grande que eles criam contra a própria esperança, de tal maneira que estes crentes eram operadores de milagres. E o mesmo sentido daquele que tinha o dom de operar milagres. Alguns comentaristas dizem que esta fé aqui é a fé salvadora, mas não pode ser, pois é um dom que é dado a uns e não a todos os crentes. Paulo diz que é dado individualmente segundo a vontade do Espírito. Por isso Paulo pergunta: ‘‘por acaso todos têm estes dons?’’. Então o dom da fé era exatamente um dom miraculoso, uma fé que os autores não sabem bem definir.

4. Dom de curar. Este dom está tremendamente “amarrado” à questão da revelação. Todos estes dons são revelacionais. Nenhum dom aqui foi dado para a edificação da própria pessoa. Cada dom tem a função de ministrar para a Igreja e realizar uma grande obra em que Cristo deveria ser formado nas pessoas. Não pense que o dom de cura é dado só para curar. Infelizmente hoje há uma divulgação de um dom de cura que foi dado somente com o propósito, em si mesmo, de curar. Mas qualquer movimento em torno do dom de cura sem que haja uma grande revelação de Cristo na vida do povo de Deus, não é o dom de 1 Coríntios 12. Mesmo porque estes sinais de cura que se vê hoje não são unicamente vistos em 1 Co. 12, mas entre os pagãos também se vê muitos fenômenos. Porém, este dom é especial porque revela Cristo; este dom está “amarrado” a uma grande obra que Deus estava para fazer na igreja. O dom de cura era um dom revelacional. Era distinto do dom de cura propagado hoje, em que o pregador afirma numa reunião que alguém está com dor de cabeça ou com um problema sério e muitos (curadores) quando vão colocar o dom de curar em prática, o fazem diferentemente da época apostólica. Fazem uma “força” terrível: gritam, batem com o pé no chão, esmurram o púlpito, aumentam o volume do som, gritam no microfone, fazendo um barulho tremendo. O dom de cura não era assim. Aos que tinham este dom, eram-lhes revelados o momento e a quem deveriam curar. Nunca pensemos que a igreja era um hospital e que o dom de cura fora dado para que nela não houvesse doentes. Muitos servos fiéis morreram doentes e de todo tipo de doença, inclusive as chamadas incuráveis; ainda hoje é assim. Este dom de cura fora dado para que através de uma cura revelada, pessoas fossem curadas sem dificuldade alguma, sem ritual algum, sem necessidade de orações “especiais” como são feitas hoje pelos curandeiros. Por que o dom de cura era revelacional? Porque quando a igreja se reunia, Cristo tinha de ser destacado, Sua messianidade estava em jogo e devia ser provada. Mas se alguém pergunta: E se um missionário for a uma tribo distante e, para provar a messianidade de Cristo ele tivesse de realizar uma cura milagrosa? Eu responderia que hoje a Palavra afirma que Deus já cessou os antigos modos de revelar. E isto que nos diz a epístola aos Hebreus, capítulo primeiro.

Hoje nós temos a Bíblia completa, mas eles não. Eles tinham uma palavra que lhes era revelada porque não havia ainda princípios neo-testamentários para dirigir a igreja sob todos os problemas.

Não pensemos que vamos a qualquer tribo querendo as mesmas credenciais apostólicas. Não! Pode ser que Deus possa realizar ali um grande milagre e opere grandes curas, mas isso não quer dizer que Deus deu a alguém o dom de curar. O contexto de Corinto e da época apostólica é totalmente distinto da nossa época. Então, esse dom de cura era uma revelação que Deus dava a alguém de discernir se aquela pessoa iria ser curada, ao “estilo” dos apóstolos. Nunca se viu Pedro gritando e “batendo na cabeça do demônio”, batendo com a Bíblia na cabeça dos enfermos etc. Pelo esforço que muitos fazem vemos claramente que eles não têm dom de cura. Mas um apóstolo dizia: “Levanta-te”. Esse era o dom de cura que trazia no momento uma grande revelação do poder de Cristo e o Senhor era anunciado através disso. Então, todo e qualquer movimento de cura que seja um fim em si mesmo e destituído de Cristo, de anunciar Jesus, não tem nada a ver com o dom da igreja de Corinto.

Quando Paulo fala que o dom tem um fim proveitoso, ele não está dizendo que é um fim proveitoso para mim, mas para Igreja e para revelar Cristo. Por isso nenhum dom é considerado dom do Espírito se ele não revela Cristo. Vemos isso no v.3 de 1 Co.12 - “Por isso vos faço compreender que ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma: Anátema, Jesus! Por outro lado, ninguém pode dizer: Senhor Jesus!, senão pelo Espírito Santo”. Qual é a maior evidência da presença do Espírito? É a presença de Cristo e sendo Ele formado em vós. Onde se dá a maior presença do Espírito? Onde as pessoas têm praticamente os mesmos princípios de Jesus, a mesma vida de Cristo, a mesma santidade. Quanto mais esta pessoa se torna parecida com Cristo mais evidência há de que o Espírito habita nessa pessoa.

Paulo diz que os dons espirituais não garantem isso porque a Igreja de Corinto estava cheia de problemas, cheia de pecados; uma igreja tremendamente problemática, carnal, cheia de criancice, mas tinha os dons espirituais. Posteriormente, Paulo irá dizer que o princípio regulador da presença do Espírito é o amor (Cap. 13).

5. Operações de milagres. Será que existem pessoas com este dom nas igrejas hoje? Já se ouviu de alguém que tem poder de multiplicar pães, de andar sobre as águas? Alguém que levante as mãos para o céu, enquanto a seca no sertão está forte, a lavoura está sendo dizimada, e a água caia inundando tudo? O dom de milagre é um agir contra a própria natureza. A que se chama de milagre hoje? As curas. Mas estes milagres são dádivas que Deus dá e que são um dom-sinal. Na verdade, a idéia de sinal está presente na era apostólica porque ele tendia a focalizar a Cristo para que o fundamento doutrinário dos apóstolos fosse estabelecido. Por isso havia necessidade destes sinais. Mas quando falei que o dom de língua é um dom-sinal é porque Paulo distingue todos os outros dizendo que “línguas” era um sinal para o judeu incrédulo. Observe que em Atos cap. 2,10 e 19, os encontros são sempre entre gentios e judeus. Não se vê “línguas” num contexto puramente judaico. E em Corinto está um exemplo disso, pois ali está uma igreja mista. Para eles o dom de línguas se constituía um sinal porque marcava esta passagem do povo que é rejeitado e do povo que é enxertado na oliveira. Esse povo, agora, na sua própria língua, fala das grandezas de Deus que era tão somente falada na língua do povo judeu. Este é o sinal, sinal de que Israel agora não é mais aquele povo que Deus tratava no V.T., mas agora trata Israel como uma nação incrédula porque rejeitou a Cristo. Qual a prova disso? Quando um judeu visse e ouvisse o gentio falando do evangelho na sua própria língua. Para isso ele teria que compreender a própria língua do gentio. Quando percebesse isso certamente abriria os olhos e diria: Mas a revelação não era só nossa, e como agora os gentios compartilham da mesma revelação?

Certo autor americano (Dr. Palmer Robertson) escreveu um livro com este título: “Línguas: Sinal de Bênção ou Maldição?”. Tudo porque “línguas” no primeiro século, para o judeu era sinal de maldição. E isto que Paulo está tentando trazer. Porque a igreja de Corinto está tão interessada em falar em línguas? Paulo diz: “irmãos, porque vocês estão tão interessados num dom que é um sinal, que serviu à nação judaica como sinal de juízo” (1 Co.14:21-22; Is.28:11,12).

Mas Paulo não está desestimulando a igreja para com o dom de línguas, pois naquela época este dom era necessário. Paulo não diz para os coríntios abandonarem o dom de línguas. Quando lemos esta expressão “procurai com zelo os melhores dons”, não entendamos que estes dons devem ser buscados e procurados. Esta tradução é uma má tradução do grego, pois no grego a palavra é “zelai ardentemente”. Paulo está dizendo: “irmãos, zelai ardentemente os melhores dons”. Mas porque Paulo usa a palavra “melhores”. Será que há dom melhor que outro? Não é isso. A idéia de “melhores”, aqui, é que em Corinto o melhor dom seria profecia porque até o momento o dom de línguas, que era conhecido do povo, era um dom que ninguém entendia (1 Co.14:2) e precisava de interpretação (v.5); um dom que estava sendo usado para edificação própria (v.4), que não falava a homens para edificação(v.2). Mas este dom não era para os homens? Se este dom não fosse para falar a homens não precisava de dom de interpretação. Se não fosse para homens, deveria ser

deixado de forma ininteligível. Mas dom de línguas foi para os crentes da época de Corinto, pois de outra forma o judeu não entenderia. Como seria um sinal para o judeu incrédulo? O dom de línguas tinha de comunicar alguma coisa.

Então, a palavra no grego “zelar ardentemente” significava manter alguma coisa funcionando bem. E como um carro que precisa de manutenção para manter a qualidade e funcionando bem. Este é o contexto de 1Co. Ali os dons espirituais não estavam funcionando bem. Por isso é necessário Paulo escrever 1 Co. 12,13,14, pois os dons em Corinto eram um problema. Paulo, então, diz: Vocês têm de zelar por estes dons e têm de ser os melhores (profecia) porque vocês estão precisando urgentemente de doutrina, precisam de revelação, a “coisa está frouxa”.

Paulo diz (1 Co.1): “Segui o amor e procurai, com zelo, os dons espirituais (zelai ardentemente) ...“. A palavra “segui”, no grego é “persegui”. Paulo está dizendo que eles deveriam perseguir o amor que estava faltando e zelar pelo que já tinham (os outros dons). Uma coisa tem de ser perseguida e a outra tem de ser zelada porque já está presente. Este é o sentido do texto.

Analise todo o texto no grego e não encontrará esta idéia de se procurar dom. Paulo diz que o dom é soberano, é algo que é dado, que vem da graça.

6. Profecia. “A outro profecia”. Esta profecia era a pregação da Palavra de Deus sem nenhum estudo; sempre era o pregador que doutrinava a Igreja. Um tinha a palavra de sabedoria que orientava a igreja que precisava conhecer várias coisas; o outro era o dom de conhecimento que trazia grandes revelações sobre grandes doutrinas, sobre Cristo, Sua encarnação, etc. E o profeta era o “pregador” que pregava de tal maneira que Cristo fosse formado no povo, mas um “pregador” sem qualquer esboço neotestamentário, ou seja, a sua pregação era praticamente uma nova revelação que Deus dava ao povo. Então o povo tinha sabedoria para saber como ser orientado na vida. Mas naquela época não era como hoje se vê, uma espécie de cartomante. O profeta de hoje geralmente (o que diz ter dom de profeta) fala para as pessoas na igreja: “Meu servo, minha serva, você vai casar com fulano ou com beltrano...”. O interessante é que os dois dons mais problemáticos hoje são exatamente o de profecia e línguas e as pessoas procuram o profeta como um pagão procura uma cartomante para resolver seus problemas. Mas era assim em Corinto. O profeta naquela época era um pregador; um grande doutrinador que trazia à igreja uma palavra de revelação no contexto da nova aliança— isso o povo não conhecia. A diferença entre este dom de profeta e o dom da sabedoria era que o dom da sabedoria em certo aspecto era como o livro de Provérbios sendo aplicada no N.T. em que Cristo deve ser formado na vida das pessoas. E todo princípio que regula a vida espiritual do povo de Deus em relação a estas questões de vida espiritual tem de ser orientado em cima desta palavra “sabedoria” que era revelada. E diferente do dom da ciência, ou seja, os grandes mistérios, as grandes doutrinas da Nova Aliança que são trazidos e o profeta é aquele que prega para o povo. O profeta pregava sem nenhum esboço neotestamentário que é usado pelo ministro de hoje que pega um texto e usa-o para a pregação e edificação do povo. Mas naquela época o pregador usava o que? Podia usar o VT? Sim, mas as palavras que ele ia falar eram palavras reveladas porque aquelas verdades do VT teriam de ser enquadradas, ou até mesmo usadas pelo Espírito de Deus para que falassem sobre Cristo e isso sem um esboço neotestamentário.

7. Discernimento de Espírito. Não é discernir se uma pessoa está possessa ou não; se a pessoa está com espírito bom ou mau, não! E exatamente aquele dom que Deus deu para que o irmão julgasse a doutrina e a edificação da igreja. Nós vemos profetas sendo julgados. Não só os profetas eram julgados, mas também qualquer revelação trazida no contexto místico de Corinto. Sem o Novo Testamento a igreja não poderia caminhar com discernimento de espírito; sem ele a igreja estaria com as portas abertas para qualquer heresia. A cidade de Corinto um centro da filosofia clássica, semelhante à Alexandria de onde saíram os pensamentos de Clemente, Orígenes, que eram coisas estranhas à sã doutrina. Em Corinto encontramos um pensamento doutrinário que em muitos casos era praticamente um “casamento” da teologia com a filosofia. E neste contexto que se fazia necessário Deus levantar pessoas com dons espirituais para julgar e edificar a igreja. Os ministros e presbíteros hoje julgam, mas julgam a partir do que há na Bíblia completa. Mas naquela época como poderiam julgar os problemas doutrinários da igreja sem o Novo Testamento? Em 1 Co.12:10 vemos esta expressão “discernimento de espírito” que parece sem sentido, mas no grego é “julgar”, “julgamento de espírito”. E um juízo que é trazido (v.10). É um julgamento entre duas coisas — distinção. E, na verdade, julgara espírito. Esse irmão que tinha este dom era na verdade um juiz na igreja com respeito à doutrina na igreja.

8. Variedade de línguas. Mas que línguas são essas? O texto é muito claro que estas línguas não são línguas ininteligíveis. Por quê? Veja o nome do dom: “variedade de línguas”. Não é dom de língua e sim variedade de línguas. O que é uma variedade? Se você coloca no cesto vários tipos de laranjas estes tipos são diferentes e logo identificados: há uma variedade de laranjas. Só posso dizer que há uma variedade se eu consigo distinguir. Paulo está dizendo que há irmãos que têm o dom de variedades de línguas. Mas como Paulo poderia dizer isso se elas fossem ininteligíveis? Não poderia. Se for ininteligível como posso saber se é alemão, russo, inglês, francês... Não dá para saber. Se eu falasse cinco dialetos e os irmãos não entendessem esses dialetos, poderíamos dizer que há variedade? Variedade implica em que o dom de línguas não fossem línguas ininteligíveis, mas fossem várias línguas que uma pessoa tinha a capacidade de falar. Se fosse uma língua estática, sem sentido, Paulo certamente não diria “variedade de línguas”, porque fugiria até o propósito. Portanto são idiomas e podemos também concluir isso pelo que Paulo diz: “capacidade de interpretá-las”. A palavra grega para “interpretá-las” é a mesma para “traduzir”.

Em 1 Co. 14:26 lemos: “Que fazer, pois, irmãos? Quando vos reunis, um tem salmo, outro, doutrina, este traz revelação, aquele, outra língua, e ainda outro interpretação. Seja tudo feito para edificação”. Estes dons estão no contexto de revelação, são revelacionais, comunicam doutrina. As línguas também trazem revelação e doutrina. Observem que onde há língua, há interpretação. Não pode haver língua sem interpretação pois é contrário ao que Paulo ensina. Para que serve língua sem interpretação? Paulo diz que não tem fim proveitoso (v.6). Por isso a igreja não devia proceder assim. A igreja precisava disso para ser edificada.

O problema do povo de Corinto era que eles não davam importância ao dom de profetizar e por isso Paulo recomenda que eles “zelem com ardor” (“procurai com zelo”) o dom de profetizar (1 Co.14:39). Por que eles agiam assim? É bom lembrar que possivelmente a língua que eles falavam era um idioma pagão. Corinto estava inserida num mundo pagão, sua geografia era propícia a isso, e ali passava uma grande quantidade de pessoas de várias nacionalidades, era uma cidade portuária. Vejam que a Igreja mais problemática era a de Corinto.

A igreja era edificada dessa forma no primeiro século. A pergunta que temos de fazer é: Agora, na nossa época, os dons espirituais têm a mesma finalidade que tinham no primeiro século? A resposta é, não! Por quê? Porque o que a igreja conhece hoje é tudo através da Palavra. Nunca ouvimos que um profeta tenha trazido uma nova revelação necessária à igreja hoje. Os que têm surgido são para profetizar sobre a segunda vinda de Cristo e todos caíram no mesmo erro. Mas nenhuma doutrina foi trazida aos dias atuais, nenhuma grande revelação foi trazida por profetas nos dias de hoje. Os que ousaram fazer isso foram taxados de falsos profetas ou de mentirosos. Por quê? Porque, hoje, todo conhecimento que a igreja tem de doutrina e revelação está na Palavra escrita. Já ouviram de alguém na igreja que tenha o dom de sabedoria semelhante ao de 1 Coríntios? Não há, porque a sabedoria que for anunciada é toda retirada das Escrituras. E se os dons espirituais, hoje, trouxerem revelação como traziam em Corinto, Paulo diz: “Seja anátema”. Ele mesmo disse que se ele próprio pregasse outro evangelho, outra revelação, que fosse considerada anátema.

Se hoje alguém traz revelação nova, a igreja não pode aceitar; se ele traz a mesma revelação da Palavra, eu prefiro o que já está na Palavra. Cheguei à conclusão que “profeta” para os dias de hoje (como eram os profetas do passado) é uma necessidade para os irmãos que são preguiçosos, que não querem ler e estudar a Bíblia. Porque as profecias que os “profetas” trazem, ou são para revelar um problema das suas próprias vidas (e que não era este o contexto de Corinto) ou revelar problemas dos outros. Isso não quer dizer que esta pessoa tenha este dom profético, porque a igreja hoje não necessita destes dons para focalizar Cristo. Estes antigos modos de revelação de Cristo cessaram. A prova disso está em 1 Co. 13.


Moisés Bezerril é professor no Seminário Presbiteriano do Norte em Recife; Mestre em Teologia Sistemática pelo Centro de Pós Graduação A. Jumper (SP) e Ministro Presbiteriano.



Fonte: Revista Os Puritanos – ANO IX – No 04 – Outubro/Novembro/Dezembro 2001. Editora Os Puritanos – Páginas 26-31.

 



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