Línguas, Sinal de Maldição e Bênção do Pacto

por

Dr. O. Palmer Robertson

 

Prefácio

 

Como poderá perceber o leitor, o Doutor O. Palmer Robertson é erudito dedicado, verdadeira autoridade no campo da exegese bíblica. Além disso é Catedrático do Seminário Teológico de Westminster de Filadélfia. Em seu estudo sobre as línguas, o doutor Robertsom faz um apanhado completo do fenômeno, inserindo-o dentro da perspectiva da história da redenção, a qual remonta às diferentes profecias veterotestamentarias * , começando pela profecia de Moisés em Deuteronômio 28:49.

O presente trabalho não é uma série de arrazoados sem base bíblica. Tampouco é a posição apaixonada de alguém que queira defender um ponto de vista particular. Trata-se de trabalho sereno, responsável, de quem detém vasta erudição no conhecimento da Bíblia em seus idiomas originais, e presta uma contribuição positiva e valiosa à restauração do dialogo redentivo com o mundo necessitado de Cristo, o qual, mediante o uso não bíblico das línguas, tem sido flagrantemente fragmentado a ponto de converter-se num monólogo ininteligível.

Deus, em sua soberana graça, opera por meio deste e de muitos outros estudos similares, para abrir o caminho para o entendimento correto e a sã aplicação de sua verdade revelada; pois evidentemente, a prática pentecostal carismática do momento contradiz a verdade da Palavra de Deus. Os cultos em que se predominam a desordem, os gritos e a irreverência, abertamente afrontam a norma bíblica para a adoração, “pois Deus não é Deus de confusão, mas de paz. Como em todas as igrejas dos santos ... tudo, porém, seja feito com decência e ordem" (1 Co. 14:33, 40). O salmista, ao dar louvores a Deus, como “refugio e fortaleza", e ao transportar o povo até ao “santuário do Altíssimo”, canta dizendo, "aquietai-vos e sabeis que eu sou Deus" (Sal. 46:10).

Há uma enorme diferença entre a obediência à Palavra e a justificação de certas práticas com a Bíblia, sem que nela apareçam os respaldos suficientes. Os métodos carismáticos atuais não podem ter base bíblica; são métodos humanos; é psicologia de massas aplicada, que oferece a muitos a oportunidade de desinibir-se na participação dos cultos, ao gritar, chorar, cair em êxtase e até à fuga ou alienação da realidade. Mas, "Deus não é Deus de confusi6n, mas de paz".

Semelhantes práticas, certamente, estão conseguindo desprestigiar a experiência cristã, rompendo o diálogo redentivo com o mundo, frustrando a fé esperançosa de muitos crentes sinceros, e mergulhando na pobreza de conhecimento bíblico a quem a elas se submetem.

"Sola Scriptura, sola fide". Eis aqui o que hoje, unicamente, pode proporcionar uma vida verdadeiramente cristã e profunda. Somente a Bíblia e somente a fé. Convém, pois, recordar tão somente admoestação do próprio Mestre, "examinais as Escrituras; porque julgais ter nelas a vida eterna; e são elas que de mim testificam” (Jo. 5:39).

 

Pr. Jorge Zamora
Pastor da Igreja Batista de Bogotá – Colômbia.
Professor de Física da Universidade Nacional da Colômbia.

 

 

LÍNGUAS. SINAL DE MALDIÇÃO E BENÇÃO DO PACTO

Dr. O. Palmer Robertson

Deus não tem por costume surpreender seu povo com o inusitado e inesperado. A extensa história de preparação através do. Antigo Testamento tinha por propósito suavizar o trauma potencial da escamação do Filho de Deus. Dificilmente encontraremos uma doutrina ou experiência cristã no Novo Testamento que não tenha sua contraparte no Antigo Testamento. A tênue formação das sombras precede a esplendorosa irrupção da realidade. Com o propósito de assegurar a compreensão adequada do contexto, Deus cuidadosamente envolve com cuidados a entrada de sua verdade no mundo.


A história da salvação

Este "princípio de preparação", de forma clara, teve proeminente papel no exercício do dom carismático das línguas. No dia de Pentecostes, Pedro apontou imediatamente para o profeta Joel como uma figura do Antigo Testamento que antecipara muito especificamente o derramamento do Espírito Santo sobre toda a carne. A conexão estabelecida por Pedro entre o Pentecostes e o Antigo Testamento é fartamente conhecida.

Não ocorre da mesma maneira com a conexão feita por Paulo. De forma interessante, Paulo relaciona o Antigo Testamento explicitamente com o dom de línguas, por sua vez, Pedro aplica ao fenômeno das línguas do Pentecostes uma profecia geral do Antigo Testamento que relacionada diretamente com as línguas.

A passagem de Paulo, freqüentemente passada por alto, está incrustada no âmago de sua exposição sobre as línguas em Corinto. De forma sui generis * , Paulo estabelece ponto de apoio para a solução do problema do povo neotestamentário nas Escrituras inspiradas do Antigo Testamento. Por que caso sejam necessárias respostas precisas para os problemas que surgem dentro do povo de Deus, no Novo Testamento, estas devem ser buscadas nos documentos autoritativos do povo de Deus no velho pacto.

Em 1 Coríntios 14:20-22 encontra-se o comentário pertinente de Paulo, a saber:

20. Irmãos, não sejais meninos no juízo, na malicia, sim, sede crianças; quanto ao juízo, sede homens amadurecidos.

21. Na lei está escrito: Falarei a este povo em outras línguas e por lábios de outros povos, e nem assim me ouvirão, diz o Senhor.

22. De sorte que as línguas constituem um sinal, não para os crentes, mas para os incrédulos; mas a profecia não é para os incrédulos, mas para os que crêem.”

Observa-se que no primeiro termo Paulo identifica as línguas como sinal de cumprimento do pacto. A citação que o apóstolo aplica ao fenômeno corrente das línguas origina-se de Isaías 28: 11. No entanto, o processo de antecipação veterotestamentária das línguas não pode ficar restrito a Isaías. Quando o profeta anuncia que uma nação estrangeira vai transpor as fronteiras de Israel, balbuciando uma língua estranha, está aplicando simplesmente ao seu dia a maldição do pacto em Deuteronômio 28:49: "O Senhor levantará contra ti uma nação de longe, da extremidade da terra virá, como o vôo impetuoso da águia, nação cuja língua não entenderás".


Línguas: sinal do juízo divino

O juízo de Deus sobre o povo desobediente viria por meio de uma nação estrangeira. O sinal do juízo do pacto de Deus sobre Israel será o som de língua estranha.

O contexto da alusão de Isaías à maldição do pacto de Deuteronômio é evidência plena de que o próprio profeta entendia que estava anunciando o cumprimento do juízo do pacto divino sobre seu povo. Examine-se de novo Isaías 28:9 e os versículos seguintes. O profeta pergunta: "A quem pois se ensinaria o conhecimento? E a quem se daria entender o que se ouviu?" (v. 9a). Isaías responde sua própria pergunta chamando atenção para o fracasso que se experimentou ao tentar a comunicação da mensagem de Deus para o povo rebelde.

A resposta infantil do povo ofende a Deus seu Criador. Age como se fossem crianças, lactantes, recém desmamados (v. 9b). Como "eles não quiseram ouvir" (v. 12), Deus devia falar-lhes como se estivessem ainda aprendendo a falar por meio de rimas infantis:

"preceito sobre preceito

regre sobre regra

regra e mais regra

um pouco aqui, um pouco ali..


Em hebraico:

sav lasav

sav lasav

kav lakav

kav lakav" (vv. 10, 13)


Qual seria o resultado desta de­liberada regressão à infância por parte de Israel? Qual foi Ia conseqüência desse infantilismo? Isaías adverte aos seus ouvintes. Caso persistam em suas atitudes infantis e imaturas pretendendo não escutar nem entender, Deus lhes falaria com juízo apesar de sua condição infantil. Sua voz soaria co­mo as palavras de um adulto imitando uma criança. Em lugar de comunicar-se com eles claramente, em sua língua nativa, falaria "por língua estranha a este povo" (v. 11). O que seria na realidade a maldição do pacto proferida por Moisés. Uma nação cuja língua não era sua língua viria sobre eles para executar a ira e a maldição de Deus. Sua relação favorável para com eles terminaria através de um povo cuja língua não poderiam entender. Deus falaria em acentos desconhecidos, "para que vão, e caiam para trás, e se quebrantem, se enlacem, e sejam presos" (v. 13).

A ameaça de Isaías no sentido de que Deus realizaria as maldições do pacto proferidas Deuteronômio sobre Israel, falando a eles por "lábios gaguejantes e língua estranha" (v. 11), alcança um desdobramento posterior e mais amplo nos versículos imediatamente seguintes do capítulo. Ou seja, Isaías 28:16, que diz:

"Portanto, assim diz o SENHOR Deus: Eis que eu assentei em Sião uma pedra, pedra já provada, pedra preciosa, angular, solidamente assentada, aquele que crê não foge."

Reconhece-se imediatamente este versículo como uma passagem de particular importância para os escritores do Novo Testamento. Paulo, em Romanos 9:31-33, explica o tropeço de Israel à luz desta passagem de Isaías. Mesmo a parábola de Cristo que dramatiza o arrebatamento do reino de Israel baseia-se no contexto veterotestamentario da pedra angular que também opera como pedra de escândalo para Israel (Mt. 21:42-46) .

Este uso amplo da mensagem de Isaías 28 no Novo Testamento, aplicando-a ao caso da relação distintiva de Deus com Israel, corrobora o sentido da citação paulina das maldições do pacto na medida em que estas estão relacionadas com o fenômeno das línguas. As línguas não chegaram a ser uma surpresa para o povo de Deus. Ao contrário, tem o objetivo definido de ser sinais do pacto. Quando as línguas ocorreram, o Juízo de Deus sobre Israel fez parte da historia da redenção. As línguas servem como um sinal da maldição do pacto.


O problema de Corinto no contexto histórico redentivo

Sendo que esta perspectiva sobre o papel das línguas é bastante nova, o ponto de partida desta discussão deve ressaltado de novo. É Paulo, quem, ao tratar o problema das línguas em Corinto, cita a sentença de Isaías para explicar o significado das línguas. Um exame mais cuida­doso do contexto da citação de Paulo, pode servir para reforçar a conexão do argumento de Paulo com o de Isaias. Paulo começa em 1 Coríntios 14:20 interrompendo sua discussão sobre as línguas para exortar seus leitores a não ser "meninos" no juízo. Os coríntios estavam agindo flagrantemente como meninos ao ostentarem o dom de línguas. Estavam praticando o dom de forma imatura, sem restrições, e sem fazer considerações adequadas sobre o seu papel intrínseco no propósito de Deus.

Com especial interesse notamos a semelhança de contextos em Isaías e Paulo. O problema de Isaías era o infantilismo da nação israelita; o problema de Paulo, o infantilismo da igreja de Corinto. Ao estabelecer sua ênfase num contexto comparável com o de Isaías, Paulo reforça o peso de suas palavras. Os coríntios indiretamente recebiam a exortação de não cair no mesmo erro em que caíra o velho Israel.

Ao mesmo tempo, a semelhança de contextos entre Isaías 28 e 1 Coríntios 14 sugere claramente que Paulo sabia o que estava fazendo quando citava Isaías 28:11, acerca do juízo de Deus para com Israel "em lábios gaguejantes e língua estranha". Não se trata de que Paulo cite um aforismo isolado para aplicá-lo tendenciosamente a essa circunstância. Ele sabia muito bem que as línguas em Isaías apareceram como um sinal de maldição do pacto. Entendia que o juízo de Israel era o tema que se estava tratando. Em síntese, Paulo citava a Isaias 28:11 precisamente porque entendia o fenômeno das línguas do Novo Testamento como o clímax do cumprimento da profecia do Antigo Testamento.

Israel recebeu nos dias do Antigo Testamento o juízo ao qual Moisés e Isaías se referiram. Ambos profetizaram que, como resultado da desobediência do pacto, o sinal de balbuciar línguas se escutaria em sua terra. Suas profecias se unificaram por uma confirmação posterior feita através de um terceiro profeta, contemporâneo ao fato histórico do cumprimento. Moisés falou no Século XV a.C. a respeito de um povo com língua estranha que viria para o juízo sob Israel (Dt. 28:49). Isaías no Século VIII a.C. profetizou com a mesma perspectiva. No tempo do cativeiro de Israel, Jeremias reiterou a mesma mensagem:

“Eis que trago sobre ti uma nação de longe, ó casa de Israel, diz o SENHOR; nação robusta, nação antiga, nação cuja língua ignoras; e não entendes o que ela fala" (Jr. 5:15).

Esta tríplice profecia dos Séculos XV, VIII e V, antes de Cristo, encontrou seu cumpri­mento inicial quando os "balbuciantes" babilônios avançaram sobre Israel. Mas, Paulo diz que este sinal de maldição do pacto sobre Israel chega ao clímax de seu cumprimento na manifestação do dom de línguas da era do Novo Testamento. O juízo de Deus sobre Israel no ano 586 a.C. foi somente a antecipação de juízos ainda mais severos pronunciados por Cristo mesmo: " Eis aqui a vossa casa vos ficará deserta " (Lc. 13:35).

Agora pois, de que forma as línguas serviram como um sinal do juízo do pacto para com Israel?


As línguas em Pentecostes; clímax do cumprimento profético

Num sentido bem literal, as "línguas" de Pentecostes representaram o arrebatamento do reino das mãos de Israel para destiná-lo aos povos de todas as nações. Com efeito, todos os que presenciarem o fenômeno de Pentecostes eram de ascendência israelita. O caráter superabundante da graça divina em nenhuma parte é mais claro do que na salvação dos israelitas. Da mesma maneira o significado das línguas é bem claro. Deus não queria continuar confinando-se a um povo apenas, e comunicando-se a uma só língua. Não era da vontade de Deus continuar enclausurando sua obra de graça salvadora através de uma nação em particular. Ao invés disso, agora, Deus falará em todas as línguas a todos os povos da terra. Do mesmo modo, dirige-se a todas as nações do mundo. As línguas, assim, servem como um sinal do pacto. As línguas indicam a concretização da maldição de Deus sobre Israel, devido a sua infidelidade perante o pacto.

Evidentemente, a magnitude da graça de Deus claramente se vê no cumprimento amplo da salvação representado pelo dom de línguas. Sem dúvida alguma, as línguas servem simultaneamente como sinal de maldição e de benção do pacto. Deus se volve de Israel para todas as nações. O sermão de Pedro em Pentecostes analisa o dom de línguas como evidência do derramamento do Espírito sobre toda a carne. Mas o significado completo todavia estava por vir. Por outro lado, Paulo estabeleceu pó meio da sua citação do Antigo Testamento que as línguas são sinal de maldição e de benção do pacto. Esta é uma perspectiva equilibrada que se deve levar em conta.


O caráter de sinal presente no fenômeno das línguas.

Vale notar o papel que as línguas desempenham no pacto que resulta igualmente significativo constatar o seu caráter de sinal. Depois de citar Isaías 28:11, Paulo oferece sua própria versão interpretativa. "As línguas", diz Paulo, "constituem em sinal". Tanto a natureza essencial das línguas, co­mo o contexto da citação paulina do Antigo Testamento, que já se discutiu antes, corroboram a precisa definição do "caráter de sinal" das línguas. As línguas servem, pois, de sinal para indicar que o plano redentor de Deus deslocou da atividade centrada nos judeus, para uma atividade que açambarca todas as nações do mundo.

Os profetas do Novo Testamento apropriam disso de forma repentina e espontânea declarando a obra magnífica de Deus nas línguas de toda a humanidade. O sinal é inequívoco. Ocorreu a transição, Deus deixará de falar na língua exclusiva de um só povo para faze-lo depois nas muitas línguas dos mais variados povos da terra. O sinal das línguas é um sinal de transição. Um novo dia despontou para o povo de Deus.

Indicou-se anteriormente que o contexto da citação de Paulo em Isaías 28 tem a ver com o juízo de Deus pa­ra com Israel, pela dureza de seu coração. A referência à "preciosa pedra angular" de Isaías 28:16, tal como é empregada no Novo Testa­mento, corrobora a idéia resultante do contexto da citação de Paulo a respeito da remoção do reino das mãos de Israel. As "línguas" têm neste contexto a função de um "sinal". Sinal do cumprimento do juízo de Deus sobre Israel. Sinal da maldição do pacto realizada sobre Israel. Sinal da mudança de tratamento exclusivo de Deus com uma nação em sua linguagem especial para a manifestação aberta de Deus aos homens de todas as nações, comunicando-se com eles em sus próprias línguas.

É possível que esta perspectiva ilumine os comentários subseqüentes do apóstolo. Paulo diz que as línguas são sinal "não para os crentes, mas para os incrédulos" (1 Co. 14:22). Pois bem, o que pode significar estas palavras? É essencial notar que Paulo liga imediatamente esta asseveração com sua citação de Isaías. "De sorte que", posto que, o caráter de juízo das línguas se manifesta no contexto do pacto do Antigo Testamento, “as línguas constituem um sinal... para os incrédulos". Em virtude de seu papel particular, como selo do juízo de Deus sobre Israel, o povo incrédulo, as línguas comunicam uma mensagem especial aos incrédulos em geral, sejam judeus ou gentios. As línguas devem ser levadas em conta, especialmente pelos incrédulos. As línguas dão testemunho da fidelidade de Deus às suas palavras de maldição no pacto.

Israel persistiu em sua incredulidade e Deus cumpriu o juízo anunciado. As línguas dão testemunho do juízo de Deus sobre Israel. Era claro que Deus não haveria de continuar a tratar de forma exclusiva com uma só nação. Por meio das línguas ele anuncia sua comunicação aos homens de todas as nações. Por sua vez, as línguas anunciam ao incrédulo as dimensões universais da graça de Deus. Uma transição teve lugar. A intenção da graça de Deus foi exposta. Deus explicitou sua determinação de falar na linguagem dos homens que se encontram em todo o orbe.

De modo que as línguas são para os incrédulos. Serve inicialmente co­mo uma clarinada evangélica. Quando se trata propriamente com o pano de fundo da perspectiva veterotestamentaria, as línguas dão seu testemunho e sinal ao incrédulo. No entanto, este sinal de transição tem um papel de menor importância para quem entra na comunidade dos crentes. "As línguas constituem sinal ... para os incrédulos" (1 Co. 14:22). Deus não apresentou o dom de línguas para a edificação sólida do crente. Por sua própria natureza, as línguas têm um papel concreto a ocupar na história da redenção. Como a maio­ria dos sinais, as línguas orientam ao longo do caminho. Uma vez, porém, tendo sido ultrapassada a placa sinalizadora, cessa sua função.


Profecia e línguas; comparação de dons

Neste ponto, é necessário estabelecer a comparação entre o dom de profecia e o dom de línguas no campo de sua funcionalidade na era do Novo Testamento.

Os dons representavam pontos significativos de semelhança e ao mesmo tempo apresentavam pontos distintivos que lhes davam o caráter de unicidade. Tanto as profecias como as línguas eram dons de natureza verbal. Dons como "contribuir" e "exercer misericórdia" (Ro. 12:8) não eram dons precisamente verbais. Mas a profecia e as línguas tinham em comum a qualidade verbal.

Por outro lado, tanto a profecia co­mo as línguas aparecem como dons de mensagem inspirada. No caso das línguas, a veracidade desta avaliação é clara. Posto que Deus fazia mover a boca, a mensagem em uma língua tinha relação direta com a inspiração de Deus frase a frase, portando conseqüentemente elementos infalíveis e inequívocos. Que as mensagens de línguas fossem interpretáveis (1 Co. 14:5) parecia eliminar a possibilidade de que as línguas fossem articulações verbais sem sentido. Elas comunicavam a verdade divinamente inspirada.

O dom de profecia também parece ter uma mensagem derivada diretamente da inspiração de Deus. Em 1 Coríntios 14:29-31 fala-se deste dom em termos de "revelação". Apesar de que o caso não é tão claro como nas línguas, a profecia manifesta, ao que parece, seu caráter de revelação.

Mas estes dons apresentam marca­das diferenças. Ainda que se intersecionam na mesma categoria básica tem suas diferenças significativas. A mais importante para esta discussão é o caráter peculiar que Paulo menciona a cada um destes dons na vida da igreja. A profecia é para edificação, exortação e consolação dos homens. As línguas teriam o efeito de edificar unicamente a quem fala, a menos que fossem interpretadas (1 Co. 14:3-5). Este valor relativo dos dois dons encontra confirmação permanente no fato de que as palavras escolhidas da "profecia" (2 Pe. 1: 19) são adequadas para fazer o homem de Deus "perfeito, perfeitamente habilitado para toda boa obra" (II Tm. 3:17). Precisamente por seu contínuo valor de edificação para a igreja, as palavras de inspiração profética têm sido preservadas na Escritura. O dom de línguas não obstante possui este valor intrínseco para a edificação do povo de Deus. Por isso, as mensagens em línguas não deveriam ter um valor permanente a preservar. As línguas servem como um "sinal" comunicado aos incrédulos (1 Co. 14:22); enquanto a profecia cumpria o propósito de edificar os crentes.

Uma "diferença de espécies" por conseguinte separava os dons de línguas e de profecia a despeito de suas semelhanças. Um é objeto de limitações drásticas na forma e função. O outro não apresenta estas limitações. Esta é a "diferença de espécies" radical que serve para resolver o problema de interpretação associado com o seguinte tratamento de Paulo (vv. 23-25).

Paulo acaba de prescrever as línguas aos incrédulos e a profecia aos cr­entes. Agora, nos versículos 23-25, parece retroceder completamente, tanto que o comentário a seguir encontra-se em uma nota ao final da página na tradução do Novo Testamento de J. B. Phillips em inglês:

Esta é a única instância que serve de base ao tradutor a partir do texto aceito. Ele se sente impulsionado a concluir, do sentido dos seguintes três versículos, que temos aqui é um deslize da pluma de Paulo, ou, mais provavelmente, um erro do copista.

No versículo 23, Paulo diz que o efeito das línguas sobre os incrédulos será levá-los a concluir que os que estejam congregados na assembléia cristã estão "loucos". Evidentemente, não seriam capazes de compreender o fenômeno. Mas, continua o após­tolo, nos versículos 24 e 25, se todos se ocupam de profetizar na congregação e um incrédulo os visita convencer-se-á e converter-se-á. De modo que, enquanto as línguas conduzem o incrédulo à conclusão de que os cristãos estão loucos, a profecia o guiará à salvação.

Agora como resolver este paradoxo do apóstolo? No versículo 22, prescreve as línguas para o incrédulo e nos versículos 24-25 prescreve a profecia. A solução deste problema consiste na distinção feita anterior­mente a respeito da natureza básica das línguas e da profecia. As línguas são "sinais"; a profecia não. As línguas têm tal caráter que, inerentemente, limita sua função a uma perspectiva mais verbal do que o ministério característico da profecia. As línguas servem de indicador; a profecia cumpre funções de comunicador. As línguas fixam a atenção nos portentosos feitos de Deus; a profecia chama ao arrependimento e à fé como resposta aos feitos poderosos de Deus.


A verdadeira função das línguas.

Caso se examina a linha de pensamento paulino em 1 Coríntios 14:20-25, à luz de Atos 2, resultará claro que Paulo recomenda, com respeito aos incrédulos de Corinto, nada mais do que o procedimento seguido no Pentecostes. Em primeiro lugar, as línguas servem como sinal para o incrédulo. Em seguida a profecia insta ao arrependimento e à fé ao mesmo incrédulo. Os apóstolos primeiro manifestaram o dom de línguas, que a ninguém converteu. Com efeito, só serviu para que a multidão atribuísse embriaguez aos apóstolos (Atos 2:13). Paulo afirma que de forma semelhante os coríntios podem esperar que os não convertidos concluam como conseqüência do dom de línguas que eles estão loucos (1 Co. 14:23) . O fenômeno das línguas pode ser explicado através do dom de profecia. A declaração da Palavra deve seguir a continuação e o que se havia perdi­do poderá então ser resgatado.

A história da redenção faz clara a verdade. Ainda que as línguas resultaram ser importantes como sinal, teriam utilidade muito limitada para aprofundar o entendimento da igreja. De acordo com Paulo, as línguas sinalizam inequivocamente o ponto do juízo sobre Israel e a ocasião da transição para o resto das nações. Desta maneira, ser­vem como sinal de maldição e bênção do pacto. É neste contexto que o caráter temporal adstrito ao dom de línguas se mostra mais claro. As línguas são um sinal atado vital­mente, e em forma intransferível, a uma conjuntura particular da história da redenção. Por isso, não se pode esperar que o dom de línguas cumpra de forma ativa e indefinida sua função assinalada.

Pela verdadeira natureza do caso, o dom de línguas poderia cumprir plenamente sua função, divinamente assinalada, somente no contexto histórico demarcado por Deus para um sinal semelhante.

Num ponto crucial da história, necessariamente, requerer-se-ia que o juízo de Deus sobre Israel fosse selado por um sinal. O propósito de Deus era ministrar seu Evangelho por igual aos homens de todas as nações e isto devia manifestar-se através de um sinal.

As línguas serviram bem para mostrar que o cristianismo, ainda que tenha começado em berço judaico, não seria distintivamente judaico. As línguas ajudaram significativamente a mostrar a transição de um evangelho contextualmente judaico para um Evangelho universal. As línguas proporcionaram base de sinal à estrutura fundamental do cristianismo. Agora que o cimento já foi colocado, a continuação do sinal das línguas não teria uma função significativa. Ago­ra, a transição havia ocorrido; o sinal de transição não teria mais valor unificante na vida da igreja.

Hoje não há necessidade de um sinal para mostrar que Deus está-se movendo da nação singular de Israel para todas as nações. Esse movimento já ocorreu. Como no caso do. estabelecimento do oficio de apóstolo, assim o dom particular de transição das línguas cumpriu sua função como sinal do pacto, tanto para o povo de Deus do Antigo Testamento como do Novo. Uma vez desempenhado seu papel, não tem mais o que fazer dentro do povo de Deus.

* Veterotestamentário: relativo ao Antigo Testamento. *

* * sui géneris: de um gênero ou espécie muito singular e excepcional.

O texto adotado é o da Edição Revista e Atualizada – ARA – 2ª Edição, da Sociedade Bíblica do Brasil

Quero crédito total ao Reverendo John Garrisi, quem primeiramente sugeriu-me esta linha de interpretação das pa­lavras de Paulo. O Sr. Garrisi empenha-se especialmente em estimular aos pastores a "fazer teologia", que dentre todos os múltiplos afazeres que se relacionam ao ministério é o "primeiro em utilidade".

Uma interpretação um pouco diferente de Isaías 28:9-10 é sustentada por vários notáveis eruditos do Antigo Testamento, incluindo E. J. Young. No entanto, esta interpretação alternativa dos versículos 9 e 10 não altera o fato de que Isajas 28:11 aplica-se à maldição do pacto de Deuteronômio 28:49, com respeito a Israel.

A unidade contextual da Escritura especificamente citada por Paulo (Is. 28:11) com referencia à pedra assentada em Sião (Is. 28:16) reforça a alusão do estabelecimento da justiça como “regra” (v. 17). Deus fará MISHPAT LANA. A palavra. hebraica para "linha padrão" ou “cordel de medida" é a mesma palavra rara do versículo 11 (kav lakav). O efeito de esta unidade contextual em Isaías 28 é o de corroborar com a perspectiva das línguas como um sinal relacionado especificamente com o juízo de Deus sobre o Israel endurecido.

O fato de Paulo aplicar as profecias que têm a ver com as línguas estrangeiras ao problema de Corinto resulta em argumento forte (para o autor, conclusivo) em favor do ponto de vista que apresenta as línguas em Corinto, como da mesma natureza das línguas do Pentecostes. Sem sombra de duvida, as "línguas", referidas pelos profetas do Antigo Testa­mento, eram línguas estrangeiras. Posto que Paulo aplica a profecia à situação de Corinto, pode-se entender que essas eram também línguas estrangeiras. Ainda ­que haja problemas para admitir este ponto de vista, não há argumento conclusivo contra ele.

O Novo Testamento em inglês moderno. T radução de J. B. Phillips, Lon­dres. William Collins Sons & Co., Ltd., 1958, p. 346, nota.

Este ênfase, quando comparada com Atos 2:13, é uma corroboração à teoria de que as línguas de I Coríntios não eram de natureza diferente às de Atos. O efeito inicial do fenômeno é o mesmo em ambos os casos.


Pelo Dr. O. Palmer Robertson
Catedrático do Seminário Teológico de Westminster
Filadélfia, Pensilvânia, EUA.