A Nossa Fé e os Maremotos da Vida

por

Marcelo Sales Saraiva



A ONU calcula que 150 mil pessoas (!!!) morreram por causa do maremoto – chamado de Tsumani – que atingiu a Ásia e até a África. Para piorar o quadro, a OMS (Organização Mundial da Saúde) alerta para o risco de doenças pós-maremoto como cólera, malária, diarréias e insuficiências respiratórias. É de fato uma tragédia que será lembrada pelas futuras gerações do planeta [i].

Diante desses dados, como pensam e como se expressam os cristãos?

Não vou tentar analisar as inúmeras posições pessoais e eclesiásticas da comunidade cristã mundial, mas tentarei usar a Palavra de Deus como fonte iluminadora dessa questão que nos chocou e arrancou-nos lágrimas diante de tanto sofrimento, especialmente daqueles que ficaram sem seus parentes e amigos.

A fé cristã não é dualista, ela não acredita em dois poderes que concorrem e se combatem em pé de igualdade. Não existe um combate entre dois soberanos, um bom e outro mal, ainda que vivamos a moda dos livros sobre “batalha espiritual”, além das “correntes de descarrego” em algumas igrejas neopentecostais. A Bíblia - regra de fé para todos os cristãos - nos ensina que somente Deus, o Único, o Criador, somente Ele é Soberano, Senhor do Universo. O mal é apenas um “acidente” criado pelos homens, insuflado por forças malignas – que chamamos de satanás – que jamais terão a primazia e nem o controle da Criação e da Vida.

Pedro assim nos adverte:

“Estejam alertas e fiquem vigiando porque o inimigo de vocês, o Diabo, anda por aí como um leão que ruge, procurando alguém para devorar. Fiquem firmes na fé e enfrentem o Diabo porque vocês sabem que no mundo inteiro os seus irmãos na fé estão passando pelos mesmos sofrimentos. Mas, depois de sofrerem por um pouco de tempo, o Deus que tem por nós um amor sem limites e que chamou vocês para tomarem parte na sua eterna glória, por estarem unidos com Cristo, ele mesmo os aperfeiçoará e dará firmeza, força e verdadeira segurança. A ele [Cristo] seja o poder para sempre! Amém!” [ii] (1Pd 5,8-11)

Devemos ter cuidado com as artimanhas malignas, com as ciladas e tentações satânicas – eu sou dos que crêem nisso, pois muitos cristãos já nem acreditam mais nessas coisas sobrenaturais -, mas o domínio é de Cristo, o poder para sempre é d’Ele, nisso está a nossa firmeza, nossa força, nossa segurança, é isso que nos dá sentido em meio às dores e sofrimentos que assistimos por todo o mundo. A vitória pertence ao Senhor, para citar uma frase muito usada entre os evangélicos, mas pouco assimilada nos corações/mentes dos cristãos.

Mas voltemos ao maremoto. Alguns apressados começaram a dizer que o tal Tsumani seria uma ação poderosa de Satanás e que Deus nada poderia fazer por aquelas pessoas. Que Satanás “está solto pelo mundo”. Ora, como pode Satanás ter esse poder todo sem ser Deus? Como pode ter essa liberdade toda? Não questiono a existência de forças malignas ou satanás, mas podemos biblicamente questionar se ele tem essa “mordomia” toda.

O Reverendo Augustus Nicodemus Lopes assim se expressa:

“O ensino bíblico é claro. Satanás, mesmo sendo um ser moral responsável e retendo ainda poderes inerentes aos anjos, nada mais é que uma das criaturas de Deus, e, portanto, infinitamente inferior a Ele em glória, poder e domínio. [A Bíblia] jamais lhe atribui um poder independente de Deus, ou liberdade plena para cumprir planos próprios, ou capacidade para frustrar os desígnios do Senhor”.(p.139 de “Fé cristã e misticismo”)

Essas questões básicas de teologia cristã podem ser óbvias para alguns leitores, mas é necessário lembrarmos delas, especialmente no meio cristão, onde crenças estranhas e ocultistas estão se alastrando, especialmente no chamado neopentecostalismo [iii], tanto entre os protestantes como entre os católicos (vide RCC, Renovação Carismática Católica). Nesse campo encontramos um “super-diabão”, tão poderoso quanto o Senhor da Vida. É comum hoje encontrarmos cristãos sinceros com pavor do diabo, buscando neuroticamente fugir dos seus “domínios territoriais” ou exorcizá-los de suas vidas através de “correntes”, “amuletos santos” e outras esquisitices.

“Criou Deus o céu e a terra” (Gn 1,1) e é nesse Senhor que acreditamos. Ele ordenou todas as coisas com um propósito. Nem eu e nem a Palavra de Deus crê no acaso, posto que o acaso não é criativo, nada pode surgir do acaso. Como diz R. C. Sproul, o acaso é apenas nossa nomeação da ignorância. Tudo que não sabemos e não entendemos chamamos de “acaso”. Afirmamos, como cristãos que somos, que Deus é Soberano e tudo ordena com um propósito bom, mesmo que para nós – seres situados na dimensão finita, frágil, humana – haja mistério e incognoscibilidade [iv]. Essa é nossa fé teísta contra todos os relativismos religiosos e ateísmos (do tipo light ou hard). Essa é a segurança bíblica contra a idéia hoje comum de um “caos cósmico” onde todos tentam sobreviver como pode. Meditemos nas palavras de Jó ao Senhor: “Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42,2).

O sofrimento de milhares de pessoas é algo que verdadeiramente nos toca as fibras mais íntimas do coração. Ao ver aquelas terríveis cenas pela TV, quem não se emociona? E aqueles que lá estavam, passando por toda essa terrível realidade? Mas ainda assim, mesmo chorando, nós afirmamos aquilo que cremos. Diante de toda a tragédia, pessoal ou coletiva, olhamos para a história de Jó:

“De repente, veio do deserto um vento muito forte que soprou contra a casa, e ela caiu em cima dos seus filhos. Todos eles morreram; só eu consegui escapar para trazer a notícia. Então Jó se levantou e, em sinal de tristeza, rasgou as suas roupas e rapou a cabeça. Depois ajoelhou-se, encostou o rosto no chão e adorou a Deus. Aí disse assim: Nasci nu, sem nada, e sem nada vou morrer. O SENHOR deu, o SENHOR tirou; louvado seja o seu nome! Assim, apesar de tudo o que havia acontecido, Jó não pecou, nem pôs a culpa em Deus”.(Jó 1,19-22)

Jó não é insensível. Esta não é uma afirmação de fanatismo religioso, nem meu texto é reflexo de uma pessoa carrancuda ou inflexível. As palavras que aqui nascem são frutos do respeito pelo Deus Soberano, elas nascem de uma reverência pelo mistério divino. Cremos como cristãos que Deus poderá sempre “fazer limonada suave de cada limão amargo” que a vida nos proporciona. Até mesmo os desastres naturais, tais como os maremotos, são frutos da desordem cósmica gerada pela queda adâmica. Deus usa esses “elementos de desordem” para nos chamar para a verdadeira vida, mas Ele não os cria!

“Vós, na verdade, intentaste fazer o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem” (Gn 50,20). Esse é o poder gracioso e transformador de Deus, pegando nossas tragédias pessoais e coletivas e nos ensinando alguma coisa, nos impulsionando a crescer espiritualmente, a sermos mais solidários, a sermos fiéis a Ele em tudo. Quantos não crescem e amadurecem, tem um maravilhoso encontro com Deus e consigo mesmo depois de uma tragédia, de algo ruim? Quais os desdobramentos positivos que esse Tsumani poderá nos trazer como humanidade? Qual o impacto espiritual desse maremoto na vida das pessoas daqueles países? Pelo amor ou pela dor, a Vida – O Espírito Santo, Deus Pai, Jesus Cristo - sempre nos chama, alguns entendem e aceitam o convite irresistível e outros dizem “não”.

O interessantíssimo teólogo John Piper segue a mesmíssima linha de raciocínio bíblico-espiritual que aqui defendo e que considero como Palavra de Deus sobre dores e calamidades humanas. Diz ele em “O Sorriso escondido de Deus” que...

“Esta é a mensagem uniforme da Bíblia, quer estejamos falando sobre sofrimento proveniente de doenças ou calamidade, quer proveniente de perseguição: ‘[Deus] faz todas as coisas segundo o propósito da sua vontade’ (Ef 1,11). Deus tem um propósito bom e sábio em tudo que acontece. De manhã até a noite, sobre todas as idas e vindas de nossa vida, deveríamos dizer, ‘Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo’ (Tg 4,15)”.

Disto surge uma pergunta sincera e angustiante: Até quando Senhor, tu permitirás tudo isso? Até quando a desordem terá vez?

O Cristo nos promete, através da visão joanina em Apocalipse 21,1-5:

“Então vi um novo céu e uma nova terra. O primeiro céu e a primeira terra desapareceram, e o mar sumiu. E vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia do céu. Ela vinha de Deus, enfeitada e preparada, vestida como uma noiva que vai se encontrar com o noivo. Ouvi uma voz forte que vinha do trono, a qual disse: - Agora a morada de Deus está entre os seres humanos! Deus vai morar com eles, e eles serão os povos dele. O próprio Deus estará com eles e será o Deus deles. Ele enxugará dos olhos deles todas as lágrimas. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor. As coisas velhas já passaram. Aquele que estava sentado no trono disse: - Agora faço novas todas as coisas! E também me disse: - Escreva isto, pois estas palavras são verdadeiras e merecem confiança”.

Antes de chegarmos a essa abençoada Nova Jerusalém, a Plenitude do nosso viver n’Ele, haveremos de passar por todos esses “Tsumanis” – e basta olharmos para os noticiários ou mesmo para nossas vidas pessoais que concluiremos que não são poucos! -, mas não podemos perder o sentido das coisas, o nosso fim venturoso com o “Deus de vivos” e então começarmos, aqui e agora, a gozarmos um pouco de sua doce e suave presença em nosso coração, através de nossa fé. É essa Presença d’Ele em nós, esse Deus-Emanuel [v], que nos dá vida, sentido, fé, coragem, segurança, em meio a todos os maremotos físicos, psíquicos e espirituais. Oremos e busquemos essa comunhão com Ele que graciosamente nos propõe: “Peça... vos será dado”.

Concluindo, deixo as sábias e inspiradas palavras de Tiago:

“Meus irmãos, sintam-se felizes quando passarem por todo tipo de aflições. Pois vocês sabem que, quando a sua fé vence essas provações, ela produz perseverança. Que essa perseverança seja perfeita a fim de que vocês sejam maduros e corretos, não falhando em nada! (Tg 1,2-4)”.

Que Deus, Nosso Senhor, sustente-nos nessa perseverança eterna. Amém!

NOTAS:

[i] Os maremotos também chegaram às costas orientais da África. No total foram 176 mortos na Somália, 10 na Tanzânia e um no Quênia. Temos até agora (03-01-2005) a mórbida tabela abaixo:

Indonésia: 94.081 ;Sri Lanka: 29.957; Índia: 14.962; Tailândia: 5.046; Mianmar: 90; Maldivas: 75; Malásia: 68; Bangladesh: 2; Somália: 176; Tanzânia: 10; Quênia:1.

[ii] Todos os grifos são meus, bem como tudo que está escrito entre colchetes.

[iii] O novo pentecostalismo ou neopentecostalismo brasileiro surgiu da “terceira onda” evangélica no final dos anos 70, fundando igrejas como a Universal (IURD), Graça de Deus (IIGD), Renascer em Cristo, Sara Nossa Terra, Nova Vida, Cristo Vive, etc. Eles têm como eixos centrais às manifestações espirituais extraordinárias (curas, profecias, exorcismos, dons de línguas, etc.), a teologia da prosperidade e a “batalha espiritual” contra os demônios, encostos, etc., aliados a uma forte presença na mídia, [ab]usando das técnicas de marketing.

[iv] Dificuldades para conhecer e compreender.

[v] Podemos pensar na descida da Nova Jerusalém em nossos corações.


Marcio Sales Saraiva é membro da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Diocese Anglicana do Rio de Janeiro.



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