A Santíssima Trindade

por

Santo Tomás de Aquino

 

NOTA: O que está disponibilizado aqui é apenas uma pequena parte da extensa obra de Tomás de Aquino.

Questões Disputadas De Potentia
que tratam sobre a Santíssima Trindade

- tradução integral dos corpos das questões e das respostas às principais objeções -

 

A SANTÍSSIMA TRINDADE NO SÍMBOLO 'QUICUMQUE'

“A fé católica consiste em venerar um só Deus na trindade, e a trindade na unidade, sem confundir as pessoas, nem separar a substância; pois uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; mas uma é a divindade, igual a glória, coeterna a majestade do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.

Qual o Pai, tal o Filho, tal o Espírito Santo; incriado é o Pai, incriado o Filho, incriado o Espírito Santo; eterno é o Pai, eterno o Filho, eterno o Espírito Santo;

e, no entanto, não há três eternos, mas um só eterno; como não há três incriados, nem três imensos, mas um só incriado e um só imenso; assim também o Pai é onipotente, o Filho é onipotente, o Espírito Santo é onipotente; e, no entanto, não há três onipotentes, mas um só onipotente.

Como o Pai é Deus, assim o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; e, no entanto, não há três deuses, mas um só Deus.

Como o Pai é Senhor, assim o Filho é Senhor, e o Espírito Santo é Senhor; e, no entanto, não há três três Senhores, mas um só Senhor.

Porquanto, assim como a verdade cristã nos manda confessar que cada pessoa, tomada separadamente, é Deus e Senhor; assim também nos proíbe a religião católica dizer que são três deuses ou três senhores.

O Pai não foi feito por ninguém, nem criado, nem gerado.

O Filho é só do Pai; não feito, não criado, mas gerado.

O Espírito Santo é do Pai e do Filho; não feito, não criado, mas procedente.

Há, pois, um só Pai, não três pais; um só Filho, não três filhos; um só Espírito Santo, não três espíritos santos.

E nesta trindade nada existe de anterior ou posterior, nada de maior ou menor; mas todas as três pessoas são coeternas e iguais umas às outras; de sorte que em tudo, como acima ficou dito, deve ser venerada a unidade na Trindade, e a Trindade na unidade.

Quem quer, portanto, salvar-se, assim deve crer a respeito da Santíssima Trindade".


(Princípio do Símbolo 'Quicumque', ou de Santo Atanásio)




QUESTÃO PRIMEIRA

A POTÊNCIA DIVINA CONSIDERADA DE MODO ABSOLUTO

Esta primeira questão, traduzida da primeira questão do De Potentia, é acerca da potência divina considerada absolutamente, e nela questionamos se em Deus existe potência.


ARTIGO PRIMEIRO

- Artigo 1 da Questão I do De potentia -

ONDE SE QUESTIONA SE EM DEUS EXISTE
POTÊNCIA E

 

PARECE QUE NÃO EXISTE, POIS,

Em primeiro, a potência é princípio de operação. Mas a operação de Deus, que é a sua essência, não possui princípio, porque nem é gerada, nem procedente. Portanto, em Deus não há potência.

Ademais, em quinto, nada deve ser significado em Deus pelo qual seu primado ou sua simplicidade sejam derrogados. Mas Deus, na medida em que é simples e primeiro agente, age pela sua essência. Portanto, não se deve colocar que age pela potência a qual, pelo menos, acrescenta à essência um segundo modo de significação.

Ademais, em sétimo, assim como a matéria primeira é pura potência, assim Deus é ato puro. Mas a matéria primeira, considerada segundo a sua essência, é despojada de todo ato. Portanto Deus, considerado em sua essência, é inteiramente sem potência.

Ademais, em nono, quando algo é suficiente para que algo aja, é supérfluo que outro se lhe sobre acrescente. Mas a essência de Deus é suficiente para que Deus por meio dela aja algo. Portanto, é supérfluo que se coloque nela uma potência pela qual agiria.


PORÉM, AO CONTRÁRIO,

Em terceiro, toda operação procede de alguma potência. Ora, a Deus procede de alguma potência. Ora, a Deus maximamente convém operar. Portanto, a potência convém maximamente a Deus.


RESPONDO, DIZENDO QUE,

para que se faça evidência nesta questão, deve-se saber que a potência é dita a partir do ato. O ato, porém, o é de duas maneiras, isto é, o primeiro, que é a forma, e o segundo, que é a operação. O nome ato, conforme aparece à comum compreensão dos homens, foi primeiro atribuído à operação. é assim que, de fato, quase todos inteligem ato, sendo daqui depois transposto para que significasse a forma, na medida em que a forma é princípio de operação e fim.

De onde que, de modo semelhante, a potência o é de duas maneiras. Uma, a potência ativa, à qual corresponde o ato que é operação, e a esta é que parece ter sido primeiramente atribuída nome de potência. A outra é a potência passiva, à qual corresponde o ato primeiro, que é forma, à qual, de modo semelhante, secundariamente foi-lhe dada o nome de potência, pois assim como nada padece a não ser em razão da potência passiva, assim também nada age a não ser em razão do ato primeiro, que é forma. Diz-se, de fato, que ao nome de ato se chegou por primeiro a partir do nome de ação.

A Deus, porém, convém ser ato puro e primeiro, de onde que ao mesmo tempo convém maximamente agir e difundir sua semelhança em outros, e por isso a ele maximamente convém a potência ativa, já que a potência ativa é dita na medida em que é princípio de ação.

Entretanto, o nosso intelecto se esforça por exprimir a Deus como algo perfeitíssimo. E porque em Deus o tornar-se não pode se dar a não ser por semelhança, e nem nas criaturas encontra-se algo sumamente perfeito que careça inteiramente de imperfeições, por isso nosso intelecto tenta atribuir a Deus as diversas perfeições encontradas nas criaturas, ainda que qualquer uma destas perfeições careça de algo, mas de tal modo que qualquer imperfeição que se acrescente a alguma destas perfeições seja totalmente removida de Deus.

Por exemplo, o ser significa algo completo e simples, mas não subsistente. A substância, porém, significa algo subsistente mas sujeito de outros. Colocamos, portanto, em Deus a substância e o ser, mas a substância em razão da subsistência e não em razão de ser sujeito de outros, enquanto que o ser em razão da simplicidade e plenitude, e não em razão de sua inerência, pela qual é inerente a outro.

E de modo semelhante atribuímos a Deus a operação em razão [do término último], e não em razão [de que a operação nele transita]. Atribuimos-lhe a potência, porém, em razão [de sua permanência e de ser princípio], e não em razão [dele alcançar um término pela operação].


À primeira, portanto, deve-se dizer que
a potência não somente é princípio da operação, mas também de efeito. De onde que se colocamos em Deus uma potência que seja princípio de efeito, daí não se seguirá que haja algum princípio da essência divina que é operação.

Ou pode-se dizer, e melhor, que em Deus encontramos dois modos de relação. O primeiro é o das relações reais pelas quais as pessoas se distinguem entre si, como a paternidade e a filiação, [que devem ser reais] porque senão as demais pessoas divinas não se distinguiriam de modo real, mas pela razão, como afirmou Sabélio. O segundo é o das relações somente de razão, que são aquelas das quais nos referimos quando dizemos que a operação divina provém da essência divina, ou que Deus opera pela sua essência. De fato, as proposições designam certas relações. E isto acontece porque ao atribuirmos a Deus uma operação, que segundo a sua razão requer algum princípio, atribui-se também a ele a relação de existente a partir de um princípio, de onde que esta relação não é somente de razão.

De fato, é da razão de operação possuir princípio, mas não da razão de essência. De onde ainda que a essência divina não tenha princípio nem segundo a coisa nem segundo a razão, todavia a operação divina possui algum princípio segundo a razão.

À quinta deve-se dizer que é impossível colocar que Deus aja pela sua essência, e que não haja potência em Deus. De fato, aquilo que é princípio de ação é potência, de onde que pelo próprio fato que colocamos Deus agir pela essência divina, colocamo-la ser potência. E assim a razão de potência em Deus não derroga nem sua simplicidade, nem seu primado, porque não é colocada como algo acrescentado à essência.

À sétima deve-se dizer que esta razão prova que em Deus não existe potência passiva, e isto nós o concedemos.

À nona deve-se dizer que embora a essência divina seja suficiente para que por ela Deus aja, nem por isto, todavia, a potência se torna supérflua, porque a potência é entendida como alguma coisa acrescentada à essência, mas que lhe acrescenta segundo o intelecto somente uma relação de princípio; é a própria essência, na medida em que é princípio do agir, que possui razão de potência.


QUESTÃO SEGUNDA

A CRIAÇÃO, QUE É O PRIMEIRO EFEITO DA POTÊNCIA DIVINA, E A CONSERVAÇÃO DAS COISAS NO SER POR DEUS.



A segunda questão, traduzida das questões III e V do De Potentia, é acerca criação, que é o primeiro efeito da divina potência, e da conservação das coisas no ser por Deus.


E PRIMEIRO questionamos se Deus pode criar algo do nada.

SEGUNDO, se as coisas se conservam no ser por Deus ou se, cessada toda ação de Deus, podem permanecer por si mesmas no ser.

TERCEIRO, se Deus pode comunicar a alguma criatura que possa se conservar no ser por si mesma sem Deus.


ARTIGO PRIMEIRO

- Artigo 1 da Questão III do De Potentia -

E PRIMEIRO QUESTIONAMOS SE DEUS POSSA CRIAR ALGO DO NADA.

 

E PARECE QUE NÃO PODE, POIS,

Em primeiro, de fato, Deus não pode fazer algo contrário à comum concepção do espírito, assim como que o todo não seja maior do que a sua parte. Ora, conforme diz o Filósofo no primeiro livro da Física, foi comum concepção das sentenças filósofos que do nada nada se faz. Portanto, Deus não pode criar algo do nada.

Ademais, em segundo, tudo o que se faz, antes que fosse, era possível que fosse. De fato, se era impossível que fosse, não seria possível que se tornasse, pois nada se muda para aquilo que é impossível. Ora, a potência pela qual algo pode ser, não pode ser senão em algum sujeito, porque o acidente não pode existir sem o sujeito. Portanto, tudo o que se faz é feito a partir da matéria ou do sujeito, de onde que é impossível fazer- se algo a partir do nada.

Ademais, em terceiro, não sucede que se atravesse uma distância infinita. Ora, do não ente de modo simples ao ente há uma distância infinita, o que é patente pelo fato de que quanto a potência está menos disposta ao ato, tanto mais dista do ato, de onde que se este for inteiramente subtraído da potência, haverá uma distância infinita. Portanto, é impossível que algo transite de modo simples do não ente ao ente.

Ademais, em décimo, aquilo que é feito a partir do nada, possui ser depois de não ser. Portanto, deve-se considerar algum instante no qual não é por último, a partir do qual o não ser cessa, e algum outro instante no qual é por primeiro, a partir do qual o ser principia. Estes dois instantes ou serão um e o mesmo instante, ou serão diversos. Se forem o mesmo, daí se seguirá que dois contraditórios existem no mesmo instante. Se forem diversos, como entre dois instantes existe um tempo intermediário, seguir-se-á algo ser intermediário entre a afirmação e a negação, porque não pode ser dito após o último instante no qual não foi, nem ser antes do primeiro instante no qual foi. Ambas estas coisas, porém, são impossíveis, isto é, a contradição existir simultaneamente e ela possuir um intermediário. De onde que é impossível algo fazer-se a partir do nada.

Ademais, em décimo segundo, todo agente age algo semelhante a si. Todo agente, porém, age na medida em que é em ato. Nada é feito, portanto, senão aquilo que está em ato. Mas a matéria primeira não está em ato. Portanto, não pode ser feita, principalmente por Deus, que é ato puro, de modo que tudo o que se faz, é feito a partir da matéria pressuposta, e não a partir do nada.

Ademais, em décimo sétimo, quem faz dá o ser ao que é feito. Se, portanto, Deus faz algo a partir do nada, Deus dá o ser a algo. Este ou será algo que receba o ser, ou nada. Se for nada, então o nada será constituído no ser por esta ação, e desta maneira não se fará alguma coisa. Se for algo que receba o ser, este será outra coisa que não Deus, porque não é o mesmo o que recebe e o recebido. Deus, portanto, faz a partir de algo preexistente, e não a partir do nada.


PORÉM, AO CONTRÁRIO,

Em primeiro , diz o Gênesis que “No princípio criou Deus o céu e a terra”. [Gen. 1, 1] Ora, diz a Glosa, citando Beda, que criar é fazer algo a partir do nada. Deus, portanto, pode fazer algo a partir do nada.


RESPONDO, DIZENDO QUE,

devemos sustentar firmemente que Deus pode fazer algo a partir do nada e o faz. Para cuja evidência deve-se saber que todo agente age segundo que seja em ato, de onde que importa que a ação seja atribuída àquele agente por aquele modo pelo qual lhe convém ser em ato.

As coisas particulares estão em ato de modo particular, e isto de dois modos. Primeiro, por comparação consigo mesmo, porque não é toda a sua substância que é ato, já que estas coisas são compostas de matéria e forma. Daqui vem que as coisas naturais não agem segundo o seu todo, mas agem pela sua forma, pela qual estão em ato. Segundo, por comparação às coisas que estão em ato, porque em nenhuma coisa natural se incluem os atos e as perfeições de todas as que estão em ato, mas qualquer uma delas possui ato determinado a um gênero e a uma espécie. Daqui vem que nenhuma delas é ativa do ser na medida em que é ser, mas de seu ser na medida em que é este ser, determinado nesta ou naquela espécie, porque o agente age o semelhante a si.

Por isso o agente natural não produz o ser de modo simples, mas o ser preexistente e determinado a isto ou a aquilo como, por exemplo, à espécie do fogo ou à brancura. Por este motivo o agente natural age movendo, pelo que requer a matéria, que seja sujeito de mutação ou movimento, de onde que não pode fazer algo a partir do nada.

Deus, ao contrário, é totalmente ato, tanto em comparação consigo mesmo, por ser ato puro, não possuindo composição com potência, como em comparação com as outras coisas que estão em ato, porque nele está a origem de todos os entes. De onde que, por sua ação, produz todo o ente subsistente, nada sendo pressuposto, na medida em que é princípio dr todo o ser e segundo a totalidade de si. Pode, por isto, fazer algo a partir do nada, e esta sua ação é chamada criação.

Daqui vem que no livro `Das Causas' diz-se que o ser das coisas o é por criação, enquanto que o viver e outros tais o são por informação. De fato, as causalidades do ente de modo absoluto são reduzidas à primeira causa universal, enquanto que a causalidade das outras coisas que ao ser se acrescentam ou pelas quais o ser se especifica pertence às causas segundas, as quais agem por informação, como que suposto o efeito da causa universal.

À primeira, portanto, deve-se dizer que o Filósofo diz ser comum concepção do intelecto ou opinião dos filósofos naturais que do nada nada se pode fazer porque o agente natural, que por eles é considerado, não age a não ser pelo movimento, sendo daí necessário algum sujeito do movimento ou da mutação. Este, porém, não é necessário no agente sobrenatural, conforme foi dito.

À terceira deve-se dizer que antes que o mundo fosse era possível que o mundo fosse, todavia não era necessário que alguma matéria, sobre a qual se fundamentasse uma potência, preexistisse. De fato, diz-se no quinto livro da Metafísica que às vezes algo é dito possível não segundo alguma potência, mas porque nos termos enunciáveis do mesmo não há nenhuma contradição, segundo a qual o possível se opõe ao impossível. Assim é que, portanto, dizemos que antes que o mundo fosse era possível que o mundo se fizesse, porque não havia contradição entre o predicado e o sujeito do enunciado.

Pode-se dizer também que era possível por causa da potência ativa do agente, e não por causa de alguma potência passiva da matéria.

À terceira deve-se dizer que entre o ente e o não ente de modo simples existe sempre de algum modo uma distância infinita, não, todavia, do mesmo modo. Trata-se, às vezes, de uma distância infinita de ambas as partes, como quando se compara o não ser ao ser divino que é infinito, ou se compara a brancura infinita ao negrume infinito. Trata-se, outras vezes, de uma distância que é finita somente de uma parte, como quando comparamos o não ser de modo simples ao ser criado que é finito, ou comparamos o negrume infinito à brancura infinita.

Não pode, portanto, haver trânsito do não ser para o ser que é infinito, mas tal transito pode realizar-se para o ser que é finito, na medida em que a distância do não ser a este ser possui término de uma parte, embora não se trate de um trânsito de modo próprio. De fato, o trânsito propriamente se realiza nos movimentos contínuos, através dos quais transitam uma parte após a outra.

Deste modo, por conseguinte, de nenhum modo ocorre que o infinito possa ser transitado.

À décima deve-se dizer que ao fazer-se algo do nada o ser do que é feito o é por primeiro em algum instante. O não ser, porém, não é naquele instante nem em algum instante real, mas somente em algum instante imaginário. Assim como além do universo não existe nenhuma dimensão real, mas somente imaginária, segundo a qual dizemos que Deus pode fazer algo além do universo, ou distante de tanto do universo, assim também antes do princípio do mundo não havia algum tempo real, mas imaginário, e nele é possível imaginar-se algum instante no qual por último o não ente foi.

Isto, porém, não significa que entre estes dois instantes existe um tempo intermediário, porque não há continuidade entre o tempo verdadeiro e o tempo imaginário.

À décima segunda deve-se dizer que nem a matéria, nem a forma e nem o acidente são propriamente ditos serem feitos, mas o que é feito é a coisa subsistente.

Como o fazer-se termina no ser, o fazer-se convém de modo próprio àquilo a quem convém ser per se, isto é, à coisa subsistente. De onde que nem a matéria, nem a forma, nem o acidente são propriamente ditos ser criados, mas ser concriados. É propriamente criada a coisa subsistente, qualquer que seja.

Pode-se também dizer que a matéria primeira possui semelhança com Deus na medida em que esta participa do ente. De fato, assim como a pedra é semelhante a Deus na medida em que é ente, ainda que não seja intelectual assim como Deus, assim a matéria primeira possui semelhança com Deus na medida em que é ente, mas não na medida em que é em ato, pois o ente é de uma certa forma comum à potência e ao ato.

À décima sétima deve-se dizer que Deus, dando o ser, simultaneamente produz aquilo que recebe o ser, de onde que não se segue que aja a partir de algo preexistente.

 

ARTIGO SEGUNDO

- Artigo 1 da Questão V do De potentia -

SEGUNDO, QUESTIONA-SE SE AS COISAS SÃO CONSERVADAS NO SER POR DEUS OU SE, CESSADA TODA A AÇÃO DIVINA, PERMANECEM POR SI NO SER.

 

E PARECE QUE SIM, POIS,

Em primeiro, de fato, diz o Deuteronômio: “As obras de Deus são perfeitas”. [Deut. 32, 4]

Daqui argumentamos como segue. Perfeito é aquilo ao qual nada falta, conforme diz o Filósofo no terceiro livro da Física. Ora, àquilo que não pode ser a não ser mediante algum agente exterior, falta-lhe algo ao seu ser. Tais coisas, portanto, não são perfeitas, de onde que não podem ser obra de Deus.

Ademais, em quarto, Deus é causa das coisas como causa eficiente. Cessando, porém, a ação da causa eficiente, permanece o efeito, como quando ao cessar a ação do edificador permanece a causa, e cessando a ação do fogo gerador ainda permanece o fogo gerado. Cessando, portanto, toda a ação divina, ainda poderão as criaturas permanecer no ser.

Ademais, em quinto, objeta-se ao argumento precedente que as causas inferiores são causas do tornar-se e não do ser, de onde que o ser dos efeitos permanece, removida a ação das causas do tornar- se. Deus, porém, é causa para as coisas não somente do tornar-se, mas também do ser. De onde que não pode o ser das coisas permanecer, cessando a ação divina.

Mas, contra isso, pode-se dizer que toda coisa gerada possui ser pela sua forma. Se, portanto, as causas gerantes inferiores não são causas do ser, não serão causas das formas, e assim as formas que estão na matéria não serão causadas pelas formas que estão na matéria, contrariando a sentença do Filósofo que diz, no sétimo livro da Metafísica, que a forma que está nestas carnes e nestes ossos é causada pela forma que está nestas carnes e nestes ossos. Contrariamente a isto, seguir-se-ia então que as formas na matéria seriam causadas pelas formas sem matéria, segundo a sentença de Platão, ou por um dador de formas, segundo a sentença de Avicenna.

Ademais, em décimo, a forma substancial também é causa do ser. Se, portanto, as causas do ser são aquelas que conservam as coisas no ser, a própria forma da coisa será suficiente para que a coisas se conserve no ser.

Ademais, em décimo primeiro, as coisas são conservadas no ser pela matéria, na medida em que esta sustenta a forma. Mas a matéria, segundo o Filósofo, é ingênita e incorruptível, e assim não é causada por alguma causa, de onde que permanece, removida toda ação da causa eficiente. As coisas, portanto, ainda poderiam conservar-se no ser, cessando a ação da primeira causa eficiente, que é Deus.


PORÉM, AO CONTRÁRIO,

Em terceiro, diz São Gregório no VIº Livro dos Morais que “Todas as coisas se reduziriam a nada, se a mão do Onipotente não as sustentasse”.


RESPONDO, DIZENDO QUE,

devemos conceder sem dúvida alguma que as coisas são conservadas no ser por Deus, e que seriam reduzidas a nada em um momento se fossem por Deus abandonadas, a razão do que podendo ser tomada do que se segue.

É necessário que o efeito dependa de sua causa. Isto, de fato, pertence à razão do efeito e da causa, o que nas causas formais e materiais aparece como manifesto, pois, retirado de qualquer coisa o seu princípio material ou formal, a coisa imediatamente cessa de ser, já que tais princípios entram na essência da coisa.

Porém é necessário que o mesmo julgamento valha quanto às causas eficientes e quanto às causas formais e materiais, porque a causa eficiente é causa da coisa na medida e, que induz a forma ou dispõe a matéria. De onde que é a mesma a dependência da coisas à causa eficiente e à matéria e à forma, já que por uma delas depende da outra.

Quanto às causas finais, também é necessário aplicar-se o mesmo julgamento que à causa eficiente, porque o fim não é causa a não ser na medida em que move a causa eficiente à ação, não sendo a primeira no ser, mas na intenção. De onde que, onde não há ação, não há causa final, como é patente no terceiro livro da Metafísica.

O ser da coisa feita, portanto, depende da causa eficiente na medida em que depende da própria forma da coisa feita.

Há, porém, alguma causa eficiente da qual a forma da coisa feita não depende per se e segundo a razão de forma, mas somente por acidente, assim como a forma do fogo gerado não depende do fogo gerante per se e segundo a razão de sua espécie, pois na ordem das coisas possuem o mesmo grau, e nem a forma do fogo é outra no gerado do que no gerante, distinguindo-se entre si somente por divisão material, na medida em que uma está em outra matéria. De onde que, sendo o fogo gerado dependente de alguma causa pela sua forma, é necessário que esta própria forma dependa de um princípio mais alto, que seja causa da forma per se e segundo a razão própria da espécie.

Como, porém, o ser da forma na matéria, considerado per se, não envolve nenhum movimento ou mutação, a não ser talvez por acidente, e todo corpo não age a não ser movido, como o prova o Filósofo, é necessário que o princípio pelo qual a forma depende per se seja algum princípio incorpóreo. De fato, o efeito depende da causa agente pela ação de algum princípio. E se algum princípio incorpóreo é de algum modo causa da forma, ele o será na medida em que age pela virtude do princípio incorpóreo, e como que sendo seu instrumento. Este princípio corpóreo será necessário para que a forma principie a ser, na medida em que a forma não principia a ser senão na matéria, já que a matéria não pode substar à forma achando-se de qualquer modo, pois é necessário que o ato próprio esteja na matéria própria.

Estando, portanto, a matéria em uma disposição que não compete a alguma forma, esta não poderá seguir-se de modo imediato do princípio incorpóreo, do qual a forma depende per se. De onde que é necessário que haja algo que transmute a matéria, e este é algum agente corpóreo, ao qual pertence o agir movendo. E o agente corpóreo age em virtude do princípio incorpóreo, sua ação sendo determinada a esta forma na medida em que tal forma esteja nela, em ato, como nos agentes unívocos, ou por virtude, como nos agentes equívocos.

Assim, portanto, tais agentes corporais inferiores não são princípios das formas nas coisas feitas, exceto na medida em que possa estender-se a causalidade da transmutação, já que não agem senão transmutando, e isto o fazem na medida em que dispõem a matéria e fazem sair a forma da potência da matéria. Quanto a isto, portanto, as formas das coisas geradas dependem das gerantes naturais que as fazem sair da potência da matéria, mas não quanto ao ser absoluto.

De onde que, removida a ação do gerante, cessa a condução da potência ao ato, que é o fazer-se das coisas geradas. Não cessam, porém, as próprias formas, segundo as quais as coisas geradas possuem ser. Daqui vem que, cessando a ação do gerante, o ser das coisas geradas permanece, mas não o seu fazer-se. Se, porém existirem formas que não estão na matéria, como são as substâncias intelectuais, ou em matéria de nenhum modo indisposta à forma, como é o caso dos corpos celestes, nos quais não há disposições contrárias, o princípio destas coisas não poderá ser senão um agente incorpóreo, que não age através do movimento, e nem estas coisas dependerão de algo segundo o fazer-se do qual não dependem segundo o ser.

Assim como, portanto, cessando a ação da causa eficiente, que age pelo movimento, no mesmo instante cessa o fazer-se das coisas geradas, assim também cessando a ação do agente incorpóreo, cessa o próprio ser das coisas por ele criadas. Ora, este agente incorpóreo, pelo qual todas as coisas são criadas, é Deus, conforme foi mostrado em outras questões, pelo qual não são somente a forma das coisas, mas também as matérias. E quanto a este propósito não difere se isto se dá de modo imediato, ou por uma certa ordem, como alguns filósofos colocaram. De onde que se segue que, se cessasse a operação divina, todas as coisas no mesmo momento se reduziriam ao nada, assim como foi demonstrado pelas autoridades e pelos argumentos dos `porém, ao contrário'.


À primeira, portanto, deve-se dizer que as criaturas de Deus são perfeitas na sua natureza e na sua ordem. Dentre outras coisas que se requerem para a perfeição das mesmas, porém, inclui-se também esta, que sejam sustentadas no ser por Deus.

À quarta deve-se dizer que tais agentes inferiores são causas das coisas quanto ao seu fazer-se, mas não quanto ao seu ser considerado per se. Deus, porém, é causa per se do ser, de onde que não há semelhança.

À quinta deve-se dizer que como os agentes corporais não agem senão transmutando, e nada é transmutado senão em razão da matéria, a causalidade dos agentes corporais não pode estender-se senão às coisas que estão, de algum modo, na matéria. E porque os filósofos platônicos e Avicenna não sustentaram que as formas fossem tiradas da matéria, eram por isso obrigados a afirmar que os agentes naturais somente dispunham a matéria, enquanto que a indução da forma seria realizada por um princípio separado.

Se, porém, sustentarmos que as formas substanciais são tiradas da potência da matéria, segundo a sentença de Aristóteles, os agentes naturais não somente serão causas das disposições da matéria, mas também das formas substanciais, isto, porém, somente na medida em que tais formas são trazidas da potência ao ato. Eles serão, conseqüentemente, princípios do ser quanto a iniciação ao ser, e não quanto ao próprio ser de modo absoluto.

À décima deve-se dizer que, cessando a ação divina, também a forma cessaria, de onde que não pode ser princípio do ser.

À décima primeira deve-se dizer que a matéria primeira é dita ingênita porque não procede ao ser por geração. Daqui, porém, não se segue que não provenha de Deus, já que é necessário que todo ser imperfeito tenha origem no perfeito.


ARTIGO TERCEIRO

- Artigo 2 da Questão V do De potentia -

TERCEIRO, QUESTIONA-SE SE DEUS PODE COMUNICAR A ALGUMA CRIATURA QUE SE CONSERVE NO SER POR SI MESMA, SEM DEUS.


E PARECE QUE SIM, POIS,

Em segundo, de fato, há mais no poder das coisas e de Deus do que no poder de nosso intelecto. Mas nosso intelecto pode inteligir a criatura sem Deus. Com muito mais razão, portanto, poderá Deus dar à criatura com que se conserve no ser por si mesma.


PORÉM, AO CONTRÁRIO,

Deus não pode fazer algo em diminuição de sua autoridade. Prejudicaria ao seu domínio, porém, se algo pudesse ser sem a sua conservação. Deus, portanto, não pode fazer isto.


RESPONDO, DIZENDO QUE,

não pertence à onipotência divina que Deus possa fazer que Deus possa fazer com que dois contraditórios sejam simultaneamente.

Ora, afirmar que Deus faça algo que não necessite de sua conservação implica em uma contradição. Já foi mostrado, de fato, que todo efeito depende de sua causa, na medida em que é sua causa. Ao dizermos, portanto, que este algo não necessita da conservação de Deus, colocamos que não é criado por Deus. Ao dizermos que Deus o fêz, colocamos ser criado.

Daí vem que, assim como implicaria em uma contradição afirmar que Deus fizesse algo que não fosse criado por ele, assim também o implicaria se alguém afirmasse que Deus fizesse algo que não necessitasse de sua conservação.

De onde concluímos que ambas estas coisas, pela mesma razão, não podem ser feitas por Deus.

À segunda, portanto, deve-se dizer que embora o intelecto possa inteligir a criatura não inteligindo Deus, não pode, todavia, inteligir a criatura não ser conservada no ser por Deus. Isto, de fato, implicaria em uma contradição.


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