A Trindade e a Pessoa

por

Ricardo Barbosa de Souza



“Entre a Trindade e o inferno não existe nenhuma escolha”. – Wladimir Losky

O sentimento que percebemos na Igreja contemporânea é o de que a doutrina da Trindade pertence ao passado religioso e tem muito pouco a dizer ou contribuir com as questões que a Igreja enfrenta. A impressão que dá é a de que se trata de uma doutrina que faz parte de um universo abstrato da teologia, e de que só interessa àqueles teólogos e filósofos especuladores de assuntos absolutamente irrelevantes à realidade concreta da vida. Karl Rahner, teólogo católico, afirma que “se a doutrina da Trindade for considerada falsa, a maior parte da literatura religiosa permanecerá inalterada”. Eu mesmo devo confessar que o meu interesse por este tema é relativamente novo. Sou filho de uma geração pragmática e, conseqüentemente, rejeitei tudo aquilo que não considerava prático, objetivo, conclusivo.

Por outro lado, sabemos que é uma doutrina aceita e reconhecida em todos os credos adotados pelas igrejas cristãs. Porém, infelizmente, a grande maioria dos cristãos hoje, são, na prática, monoteístas unitários. Crêem na afirmação dogmática da Trindade, mas na vivência do dia-a-dia a ignoram. É um assunto que, embora considerado irrelevante quanto à sua prática para a vida diária do cristão, está presente na linguagem, nos sacramentos e nas orações. A questão que nos ocupa aqui é o resgate da relevância deste assunto para a vida, o culto, a espiritualidade e a unidade da igreja. Pois sem uma compreensão adequada da relevância da Trindade nestes assuntos que ocupam a nossa fé, corremos o risco de nos perder na tentativa de encontrar respostas para os grandes dilemas da Igreja.

O individualismo moderno gerou na consciência humana um processo de fragmentação, de ruptura, não apenas das relações humanas, com também na natureza divina. Nossa percepção de Deus é profundamente afetada pela incapacidade de percebê-lo sem uma ruptura na Sua natureza, da mesma forma como fragmentamos nossas relações pessoais. Um aspecto desse processo de fragmentação pode ser percebido na forma como os cristãos demonstram sua preferência pelas pessoas da Trindade. Nossas divisões podem ser compreendidas pela divisão que criamos no próprio Deus. A pluralidade de pessoas que encontramos na revelação bíblica de Deus, infelizmente, para muitos cristãos, não pode ser compreendida, na prática, como uma unidade. Cremos que é, que se trata de um único Deus, indivisível, mas nossa prática demonstra outra coisa.

A ênfase espiritual ou ética que damos a cada uma das pessoas da Trindade formam um conjunto de princípios, história e experiência, respectivamente, que precisam ser observados conjuntamente a fim de dar à Igreja uma consciência mais clara do que devemos ser e fazer, e de como expressar nossa obediência a um Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, e que está, de alguma forma, empenhado em nos conduzir à submissão e obediência da Sua vontade.

Por outro lado, mais do que buscar compreender funcionalmente cada uma das pessoas da Trindade, é preciso compreender a forma como elas se relacionam. Olhar apenas para a funcionalidade pode nos ajudar a ampliar nosso conceito e percepção de Deus, mas não resolve o problema da fragmentação. Nossa compreensão de Deus torna-se profundamente afetada pela nossa mente secularizada, que vê e interpreta as realidades bíblicas e espirituais a partir dos conceitos seculares que nos são impostos pela cultura dominante.

Como afirmamos no início, a doutrina da Trindade, ao invés de ser algo completamente abstrato, sem nenhuma contribuição prática e concreta para a vida cristã, que interessa apenas aos filósofos e teólogos que se deliciam com os debates intermináveis de assuntos absolutamente irrelevantes para a realidade da vida, constitui-se numa das doutrinas fundamentais para a fé cristã. Em especial para a formação da vida espiritual, com desdobramentos práticos para o dia-a-dia da vida cristã, sobretudo na sua contribuição para o conceito de pessoa.

A partir dessa doutrina, o homem vê a si mesmo como um ser em relação, e é exatamente nesta relação com o outro que ele encontra sua pessoalidade. Nós somos quem somos na relação de amor que nutrimos com as outras pessoas. A doutrina da Trindade questiona o individualismo, bom como o desaparecimento do individuo em meio a uma sociedade impessoal. Para Leonardo Boff, “a concepção trinitária de Deus nos propicia uma experiência global do mistério divino. Cada ser humano se move dentro de uma tríplice dimensão: na da transcendência, da imanência e da transparência”.

Na transcendência, o homem olha para cima em busca da razão primeira da sua existência. Nesta experiência, o Pai surge como o Deus criador que dá sentido e significado ao homem. Na transcendência, o homem se descobre verdadeiramente humano no encontro com o Pai. É neste encontro de amor e aceitação com o Pai que desobrigamos não apenas nossa origem, mas também a fonte da qual nossa vida emerge. O Pai resgata o sentido da nossa existência a partir do mistério da criação e da aliança que ele mesmo estabeleceu com o seu povo – aliança de amor e graça, na qual o significado da vida brota da certeza e segurança do seu amor.

Na imanência dá-se o encontro do homem consigo, enquanto ser criado. Aqui, o Filho surge como a revelação do Pai que, na encarnação, aponta o caminho e determina a forma e o conteúdo do relacionamento com toda a criação. É o Filho que, em sua encarnação, define que toda a lei e todos os profetas se resumem num só mandamento: “Amarás pois o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a alma e com todo o entendimento, e ao próximo como a ti mesmo”. Ele propõe que a relação transcendente com o Pai se transforme numa relação imanente com o próximo e toda a criação. O Filho cria a possibilidade da vida no reino de Deus, junta-se a nós na tarefa da construção de um mundo onde o amor incondicional do Pai determina as fronteiras das relações humanas. O ser pessoa, na encarnação, não é só determinado pelo sentar-se à direita ou esquerda do Senhor em sua glória, mas em ser servo, em participar da vida do próximo, em criar os laços de amor e afeto com Cristo e com o mundo.

Por fim, temos a transparência, que nos faz perceber quem somos como também quem o outro é. É o Espírito que, segundo o apóstolo Paulo, tira os véus e a máscara do nosso rosto para que possamos contemplar, como por um espelho, a glória do Senhor (II Coríntios 3.16-18). O ministério do Espírito é unir o transcendente com o imanente, é estabelecer a comunhão do homem com Deus. A Bíblia afirma que todos nós fomos “batizados num só Espírito”, e que é ele o Espírito que clama: “Aba, Pai”. Este poder do Espírito de nos irmanar pela transparência, respeitando nossas diferenças e individualidades, estabelece a comunhão do “corpo” e dá visibilidade à Igreja de Jesus Cristo.

É na relação de transcendência, imanência e transparência que nos descobrimos como pessoas. É neste universo que envolve nossas relações com Deus, com o próximo e conosco mesmos que encontramos nossa verdadeira identidade humana e cristã; é no encontro com Deus e o próximo que experimentamos o poder transformador e reconciliador do amor.

Para os pais da Igreja, a compreensão do ser trinitário de Deus leva-nos inexoravelmente a uma nova percepção da pessoa humana. Para eles, “não existe ser verdadeiro fora da comunhão. Nada existe individualmente, concebido em si mesmo. Comunhão é uma categoria ontológica. A pessoa não pode existir fora da comunhão, mas toda a comunhão que nega ou suprime a pessoa torna-se inadmissível”. Para os pais da Igreja, que foram os pioneiros em desenvolver a teologia da pessoa a partir do próprio ser de Deus, não há nenhuma possibilidade de se desenvolver uma experiência realmente humana e pessoal fora do mistério da Igreja. Como espaço de comunhão, ela é absolutamente indispensável para o desenvolvimento do significado da pessoa. É na Igreja que a relação com Deus, com o próximo e conosco mesmos torna-se possível.

À medida que nos abandonamos nas mãos de Deus, nossa identidade passa a ser uma responsabilidade dele e não mais nossa. Eu sou quem sou, não pelo fato de não ser você, nem mesmo pela comparação que desde cedo faço em relação aos outros, mas porque sou único diante de Deus e é somente na presença dele que me descubro verdadeiramente. A partir daí, a identidade pessoal do homem não é afirmada pelo que faz ou tem, mas pelo que é na relação com o outro. É assim que a Trindade vive, é assim que as pessoas na Trindade definem sua identidade.

Deus como Trindade transcende o conceito individualístico de pessoa numa forma radical. C. S. Lewis escreveu que “aprendemos da doutrina da Santíssima Trindade que alguma coisa análoga à sociedade existe dentro do Ser divino desde toda a eternidade – que Deus é amor, não no sentido da concepção platônica de amor, mas porque nele a reciprocidade concreta de amor existe antes dos mundos, e é, por isso, compartilhada com as criaturas”.

 


Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília.

VINDE, Ano 3 – No. 31 – Junho/1998


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