A Leitura Devocional

por

Rev. Ricardo Barbosa de Souza

“Se a leitura devocional é algo que precisa ser feito como mais um item em nossa apertada agenda diária, perdemos o significado da devoção que nos leva à meditação”

Uma das grandes preocupações que envolve a experiência espiritual hoje é o analfabetismo bíblico cada vez mais crescente nas novas gerações de cristãos. O desinteresse pela Bíblia é alarmante. Vivemos hoje aquilo que o profeta Jeremias profetizou dizendo: “ Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas”(Jr. 2:13). A espiritualidade moderna é nutrida por fontes cujas águas não são perenes. Daí a inquietação, o frenesi, a busca louca e insana por experiências que nunca satisfazem a alma. Precisamos voltar ao manancial perene de águas que satisfazem a sede do coração, uma fonte que jorra para sempre e nos liberta das cisternas rotas que secam e não satisfazem. Gostaria de propor um velho caminho para a leitura bíblica chamada “lectio divina”, ou leitura devocional.

Leitura devocional é uma forma diciplinada de devoção e não mais um método de estudo bíblico. Não me refiro aqui à leitura indutiva que fazemos quando procuramos investigar o texto bíblico, ou àquela na qual buscamos respostas mais imediatas para conflitos diários, nem mesmo a leitura de onde saem os sermões e estudos bíblicos. Pelo contrário, a leitura devocional nunca deve ser usada para algum outro propósito utilitário ou pragmático. É feita pura e simplesmente para conhecer a Deus, colocar-se diante da Sua Palavra e ouvi-lo. Esta atitude de silêncio, reverência, meditação e contemplação define a postura de quem deseja aproximar-se da Palavra de Deus. O exemplo bíblico desta postura encontramos em Maria, irmã de Marta, que “quedava-se assentada aos pés do Senhor a ouvir-lhe os ensinamentos” (Lucas 10:39), “enquanto sua irmã agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos serviços” (Lucas 10:40). Há muitos outros exemplos de devoção que encontramos na Bíblia, de pessoas que simplesmente se punham diante do Senhor, sem esboçar uma única palavra, sem apresentar um único pedido, apenas ouvindo, meditando e contemplando.

O Reverendo Eugene Peterson clamava esta leitura de “exegese contemplativa”. Para ele, trata-se de uma leitura bíblica usada pela igreja em sua história. A exegese contemplativa não diminui o lugar da exegese técnica e teológica, porém nenhuma técnica produz alimento ou cura, bem como nenhuma informação produz conhecimento. Segundo ele, existe algo vivo em um livro, algo mais do que palavras ordenadas, existe uma alma. A descoberta da exegese contemplativa começa com a percepção de que toda a palavra é basicamente e originalmente um fenômeno sonoro e não impresso. Palavras são faladas antes de ser escrita, são ouvidas antes de ser lidas. As palavras de Jesus que ficaram e que são necessárias para a nossa salvação, são aquelas que foram ouvidas, saboreadas, digeridas, repetidas e pregadas, num processo dinâmico, envolvendo a comunidade dos crentes. “Lectio divina” é uma leitura para transformação.

São quatro os estágios pelas quais passamos ao nos dedicarmos à leitura devocional: leitura, meditação, oração e contemplação. Cada um nos conduz inevitavelmente ao outro. A leitura, quando feita repetidamente e com reverência, conduz à reflexão que muitas vezes vem acompanhada de uma visualização da cena bíblica. Por exemplo, podemos tomar o conhecido Salmo 23 e deixar que por algum momento nossa mente crie uma imagem do pasto verdejante e tranqüilo para onde o pastor leva suas ovelhas. Essa atitude de permitir que o texto nos conduza imaginativamente é que os antigos chamavam de meditação. Se nos encontramos tensos, apressados, buscando alguma resposta urgente; se a leitura devocional é algo que precisa ser feito como mais um item em nossa apertada agenda diária, perdemos o significado da devoção que nos leva à meditação.

Quando Maria, mãe de Jesus, ouviu as palavras dos pastores sobre o que viram e ouviram acerca do Messias, diz o texto que ela “guardava todas estas palavras, meditando-as no coração” (Lucas 2:19). Penso que Maria ficou ali, quieta, em silêncio, procurando discernir e imaginar os caminhos do seu filho e a profundidade dos mistérios divino.


A meditação no Salmo 23 (ou qualquer outro texto) produzirá um desejo de falar com o Pastor, de falar com Deus. Nosso coração e mente se moverão em direção ao Senhor que é o Bom Pastor, e este movimento do coração em direção a Deus é o começo da oração. Contemplação é o ponto alto da experiência da oração, é a profunda comunhão com Deus que nos envolve completamente e transformando nossa vida.

Para começar, separe trinta minutos cada dia. Encontre um lugar calmo e recolha-se para a leitura. Deixe de lado sua percepção crítica, acadêmica, analítica e coloque-se numa atitude de expectativa. Esta é uma postura que, normalmente, as pessoas pragmáticas chamariam de “perder tempo”, porque não traz consigo nenhuma proposta objetiva. A leitura devocional é uma forma de absoluta submissão, de deixar acontecer. Deus nos conduzirá e definirá sua própria agenda. Nunca teremos certeza aonde a prática da leitura nos conduzirá. De certa forma, nós entregamos toda a necessidade de controle sobre o texto, e permitindo que Deus livremente nos conduza para o encontro com Ele.

Todo relacionamento pessoal requer tempo, esforço e atenção. A prática diária da leitura devocional estabelece um padrão que se transforma na base para um relacionamento sério e profundo com Deus. Talvez, por exigir tempo e uma abordagem não direcionada, objetiva, com resultados concretos, a leitura devocional não tem grande aceitação no mundo moderno caracterizado pela sua praticidade, racionalidade, superficialidade, impessoalidade e urgência.

A leitura devocional pode também ser praticada publicamente. Na verdade, as pessoas aprendem melhor quando podem ver do quando apenas ouvem ou lêem. O grupo pode ser o da Escola Dominical, ou grupo familiar, ou mesmo o culto público numa igreja não muito grande. Convide as pessoas para que fechem seus olhos e, por alguns instantes, silenciosamente, invoque a presença e auxílio do Espírito Santo. Porém, é nescessário que antes mesmo da invocação da presença do Espírito Santo, devam invocar sua própria presença. É muito comum chegar aos nossos encontros e reuniões com nosso espírito ainda muito agitado, inquieto e distante. Após um breve momento de silêncio e quietude, alguém começa a ler e repetir o texto bíblico calmamente e pausadamente, num tom sereno e tranqüilo, dando sempre uma pausa entre uma sentença e outra, levando o grupo a meditar e orar. Um texto que tenho usado com freqüência é aquele do cego Bartimeu que ouve a pergunta surpreendente de Jesus: “Que queres que Eu te faça?” (Lucas 18:35-43). Normalmente, o grupo termina com uma oração respondendo pessoalmente a essa pergunta de Jesus.

É importante lembrar que tanto na prática pessoal como no grupo, cada pessoa deve penetrar na narração como se fosse um personagem daquele relato. No caso do cego Bartimeu, como se fosse o próprio cego ou um dos discípulos de Jesus, ou mesmo um transeunte qualquer. É um exercício espiritual que requer um pouco mais de imaginação. Por isso, devemos deixar de lado nosso academicismo racional para uma abordagem mais efetiva e pessoal.

A prática desse exercício espiritual trará também grande influência nas nossas relações interpessoais, pois nos ajudará a ouvir melhor os outros, deixando que eles mesmos se revelem a nós evitando a precipitação dos nossos juízos preconceituosos.

Ler a Bíblia não é sempre a mesma coisa que ouvir a Deus. Uma ação nem sempre implica outra. Ouvir a Deus exige uma postura, uma atitude diante de Sua Palavra. A leitura devocional é uma forma de nos colocarmos diante de Deus e Sua Palavra como de fato deseja ouvir, meditar, orar e contemplar. É dessa postura que nasce, não apenas o prazer pela Palavra de Deus, mas também a experiência transformadora do poder da Graça Divina.

Este artigo foi publicado na Revista Vinde de Janeiro de 1998


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