O Limite do Contentamento

por

Rev. Ricardo Barbosa de Souza



No filme Terra das Sombras, que retrata o romance e casamento do grande escritor inglês C. S. Lewis, há uma cena que, para a maioria dos espectadores, passa desapercebida, mas que me chama muito a atenção. Trata-se da visita que ele e sua mulher fizeram logo após o casamento a um vale cuja gravura o havia acompanhado desde sua infância num quadro na sala de sua casa e que, para ele, representava o paraíso.

Depois de percorrer alguns quilômetros pelas estradas estreitas do interior da Inglaterra, chegaram enfim ao vale do quadro. Depois de caminhar e admirar a beleza do lugar, ele diz para sua esposa que, para ele, aquilo bastava, não precisava ver mais nada, virar nenhuma curva, que aquilo era tudo quanto gostaria de ver e contemplar.

Fiquei pensando o quanto é difícil para o homem dizer estas simples palavras: Basta, está bom. A medida do contentamento nunca encontra o seu limite. Parece que é algo que sempre está por acontecer, mas nunca acontece. Normalmente, dizemos que no dia em que tivermos este ou aquele bem, ou alcançamos esta ou aquela virtude ou graça, aí então encontramos a medida de nosso contentamento. O fato é que sempre haverá algo por atingir, um bem que ainda não alcançamos, uma conquista que nos falta. O contentamento está sempre na próxima curva.

A indústria do marketing tem como missão manter a alma e o coração humano satisfeitos. Há sempre algo que você ainda não fez e que precisa fazer ou adquirir para ser realmente feliz: uma viagem, um objeto, um romance, uma experiência, uma bênção. Enquanto você não experimentar aquilo você não é uma pessoa feliz, completa. Muitos vivem num estado de completa ansiedade e inquietação, numa sensação de que não podem perder nada, nenhuma oportunidade, porque disto depende o seu contentamento. O apóstolo Paulo, em sua carta aos Filipenses, afirma que aprendeu a viver contente em toda e qualquer situação. Para ele, tanto a humilhação quanto a honra, tanto a riqueza quanto a pobreza, tanto a fartura quanto a fome, não eram impedimento para o seu estado de contentamento. Para ele a satisfação era um estado de alma que não dependia das coisas que possuía ou experimentava. Que estado é este? Como é possível experimenta-lo em nossos dias?

Jeremiah Burroughs, um puritano que nasceu no último ano de século 16 e viveu até 1646, escreveu um tratado intitulado A rara jóia do contentamento cristão, publicado pela primeira vez dois anos após a sua morte, em 1648. Para ele, o contentamento é um mistério difícil para o homem compreender, e somente a graça de Deus é que pode nos ensinar a combinar tristeza e alegria numa experiência comum de paz e contentamento.

Para Jeremiah, contentamento é o fruto de um coração grato. Numa de suas afirmações, ele diz que um coração gracioso encontra o contentamento na aliança que Deus fez com ele. De fato, há um grande mistério nesta afirmação. Jesus mesmo ensinou aos seus discípulos que não deveriam andar ansiosos pela vida quanto ao dia de amanhã, porque a ansiedade por mais intensa que seja, não pode jamais acrescentar qualquer coisa ao curso da vida de um homem. Ele diz que as indagações sobre o dia de amanhã pertencem aos gentios, aqueles que não conhecem a Deus, nem experimentaram o seu amor. Porque aqueles que conhecem a natureza do amor divino sabem que o Pai celeste conhece todas as nossas necessidades antes mesmo que informemos a Ele.

É então que o nosso Senhor sugere que devemos buscar em primeiro lugar seu Reino e sua justiça, e as demais coisas nos serão acrescentadas. A pauta de oração daquele que experimentou a serenidade de contentamento passa a ser o Reino e a justiça, e não as outras coisas. Se formos sinceros, iremos constatar que a pauta de nossas orações são determinadas pela nossa ansiedade e inquietação, e não pela certeza serena e real do cuidado paterno de Deus sobre a vida daqueles com quem ele celebrou uma eterna aliança. Jesus conclui este discurso convidando seus discípulos a não temer, a não viver ansiosos, buscando antecipar as aflições do dia de amanhã, resistir as inquietações de ter e possuir, mas compreender o fato de que o Pai se agradou em lhes dar o seu Reino. Eis aqui outro grande mistério. Possuir o Reino de Deus em nós se traduz numa manifestação de Deus mesmo na alma humana que, por si só, é suficiente para promover o contentamento, diz Jeremiah. O contentamento cristão reside no fato de que o Reino já nos foi dado.

O contentamento para Paulo não significava uma acomodação em relação aos desafios da vida e da missão, nem tampouco um desinteresse por melhorar o crescer. Como já disse, trata-se de um estado de alma que descobriu que possui em Cristo tudo quanto lhe é necessário para sua alegria, paz e comunhão com Deus e os homens. Que o contentamento não será encontrado na próxima curva, na visita ao shopping center, no novo emprego ou nas coisas simples e rotineiras, nas experiências que a graça de Deus nos concede dia a dia, nos encontros com amigos, nas tristezas e dores que vivemos. Tudo isso faz parte da existência humana, negá-las é negar a própria vida.

Para Paulo, o contentamento que experimentava a riqueza e pobreza, na fartura ou miséria, eram reflexos de uma mesma realidade vivida na presença de Deus. A certeza de que Deus estava nele, que havia concedido a ele o seu Reino, transcendia suas experiências pessoais e as colocava num universo eterno. Penso que foi isso que Jesus experimentou. Sua vida não foi sempre um arranjo de fatos agradáveis. Experimentou o abandono, angústia, tristeza, traição, alegria e exultação, e todas essas experiências fizeram parte do Reino que havia sido entregue. Contentamento não significa não passar pelos vales sombrios da morte, mas gozar a plenitude do Reino, do amor, da justiça e da paz.

Para terminar, quero mais uma vez citar C. S. Lewis, que no mesmo filme mencionado no início deste artigo diz que Deus não nos criou para a felicidade, mas para amar e sermos amados. A felicidade como um fim em si mesma pode parecer que só será encontrada na próxima curva, mas quando buscamos amar e ser amados, a encontramos onde estamos. Não precisamos virar nenhuma outra curva. Aqui está bom. Basta.

VINDE, Ano 2 – No. 22 – Setembro/1997


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