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Doutrina de Demônios

O Espírito diz claramente que nos últimos tempos alguns abandonarão a fé e seguirão espíritos enganadores e doutrinas de demônios. (1 Timóteo 4.1)

O Espírito Santo prediz apostasia. Muitos que alegam seguir a Jesus Cristo cessarão de se identificar com eles, ou mesmo que continuem a afirmar que são discípulos, mostrar-se-ão mentirosos. A Bíblia nos diz em outro lugar que se uma pessoa se afasta verdadeiramente do Cristianismo apostólico, então ela nunca foi um discípulo real em primeiro lugar. Isso porque, na verdadeira conversão, a natureza interior da pessoa é transformada de forma que ele naturalmente – isto é, como um efeito natural de sua nova natureza – crê e segue a Jesus Cristo com um coração sincero. Essa mudança de natureza é inteiramente um ato de Deus, que ele realiza na alma de alguém à parte do desejo ou decisão da pessoa, e que ele subsequentemente sustenta e faz crescer em força e santidade. A pessoa não convertida tem uma natureza má, e uma pessoa com uma natureza má não decidirá mudar sua natureza em uma boa, visto que não existe nenhum bem nele para fazer tal decisão. Existe uma auto-contradição na ideia que uma pessoa má pode decidir ser boa. E mesmo que estivesse disposto a fazer essa decisão, ele não tem nenhuma capacidade de transformar sua natureza de má para boa. A conversão é uma obra de Deus, e a obra de Deus permanece. Segue-se que as pessoas que se afastam do Senhor Jesus nunca foram seus seguidores verdadeiros. Elas nunca foram cristãs, e nunca foram salvas do pecado.

O foco aqui está na manifestação da apostasia, ou num sinal de que ela ocorreu. Apostasia é um afastamento da “fé”. Tanto o contexto como o termo sugerem que Paulo refere-se a uma repudiação das doutrinas cristãs, e esse afastamento da verdade corresponde a ir em direção a “coisas ensinadas por demônios” (NIV). Estamos diante de duas ideias que tanto cristãos como não cristãos com frequência relutam em aceitar. Primeiro, a religião é doutrinária, e dessa forma intelectual. Segundo, a religião é espiritual, no fato de lidar com espíritos ou entidades espirituais.

A religião é doutrinária e intelectual, e a verdadeira religião é uma questão de afirmar com a mente uma série de ensinos revelados por inspiração divina. É comum objetar que as doutrinas de muitas pessoas são totalmente ortodoxas, mas seus estilos de vida competem com os dos demônios. Sem dúvida eles não podem ser cristãos. Certamente não podem. Msa a denúncia erra pois nem de longe as doutrinas de muitas pessoas são ortodoxas, e mesmo quando são ortodoxas, seu assentimento a essas doutrinas é com frequência hipócrita, ou somente uma questão de aparência. As doutrinas cristãs demandam comportamento santo, de forma que o verdadeiro assentimento a uma doutrina obriga o comportamento que a doutrina demanda, e o comportamento demandado é produzido desde que o poder para executá-lo esteja presente. Esse poder é fornecido por Deus mediante o Espírito Santo naqueles que creem verdadeiramente. Dessa forma, a religião é doutrinária, o que significa que ela é intelectual, e isso por sua vez significa que há um aspecto objetivo que pode ser examinado, definido e proclamado.

A religião é espiritual, e nesse contexto queremos dizer que ela tem a com ver espíritos, ou entidades espirituais. Paulo diz que “o Espírito”, ou o Espírito Santo de Deus, prediz apostasia da fé em termos expressos. O Espírito Santo é uma pessoa inteligente que poderia falar aos homens em palavras. Paulo também refere-se às doutrinas de demônios. Os demônios são espíritos maus que seduzem as pessoas, de forma que se afastam da verdade e seguem falsas doutrinas. Se os cristãos são ávidos em afirmar que a verdade nos foi revelada pelo Espírito Santo, embora muitos deles minimizem sua obra contínua no mundo, eles todavia raramente associam a disseminação de falsas doutrinas com o propósito e ação dos demônios. Existe a alegação que os demônios estão restritos em suas atividades devido ao triunfo de Jesus Cristo, quem, como Paulo escreve aos Colossenses, “despo[jou] os poderes e as autoridades” (Cl 2.15). Contudo, isso já tinha ocorrido quando os apóstolos encontraram franca oposição demoníaca como registrado nos Atos dos Apóstolos, e aqui ele diz a Timóteo que os demônios ainda estão ensinando falsas doutrinas a pessoas. Que Cristo desarmou todos os poderes das trevas significa que o seu povo escolhido foi livre do engano e da escravidão espiritual, da forma como proclamamos a sua vitória. Não significa que todos os traços de sua existência desapareceram. De fato, a Bíblia nos diz que o diabo ainda age como um leão rugindo, e algumas pessoas estão escravizadas por ele para fazer a sua vontade. Um ministro que é alérgico à realidade presente dos demônios é como um exterminador de pragas nauseento. Os demônios não se aposentaram, mas talvez ele devesse.

Paulo lista duas coisas específicas que envolvem as doutrinas demoníacas: “Proíbem o casamento e o consumo de alimentos”. Como alguns escritores têm apontado, seria um anacronismo dizer que Paulo tinha o Gnosticismo em mente, o qual não chegou à maturidade até o segundo século. Contudo, é possível que ele esteja se referindo a algo semelhante, ou um precursor da heresia. Em todo caso, não é necessário averiguar o pano de fundo preciso, visto que a exposição de Paulo é suficiente para derivarmos a doutrina, mesmo sem o contexto histórico. Os falsos mestres ordenam que as pessoas se abstenham de certos alimentos, e o apóstolo ataca isso dizendo que “tudo o que Deus criou é bom” (1Tm 4.4), e é portanto apropriado para consumo se recebido com ação de graças.

Ora, sou francamente contra a noção insana que tudo o que Paulo afirma é uma reação a uma falsa doutrina, prática ou tendência contrária em ou em torno dos seus leitores. Quando Paulo insta que os seus leitores amem uns aos outros, isso não significa necessariamente que os crentes têm um problema especial com a discórdia ou o ódio. É apenas um ensino geral que pode ser afirmado em todos os momentos. Assim, simplesmente porque Paulo ataca as falsas doutrinas com o lembrete que tudo o que Deus criou é bom não significa necessariamente que essas falsas doutrinas ensinavam que Deus não criou tudo, ou que algumas das coisas que ele criou não eram boas, ou que o corpo ou matéria física é inerentemente mau. É possível que as falsas doutrinas ensinem isso, mas o texto não diz isso, nem é uma implicação necessária do texto. Todavia, essas falsas doutrinas parecem surgir da ideia que a abstinência de coisas como casamento e certos alimentos ou é necessário para salvação, ou pelo menos requerido para uma elevação da espiritualidade.

Poderia surpreender algumas pessoas que Paulo condene essas doutrinas com termos tão ásperos. Talvez eles suporiam que para uma doutrina ser chamada demoníaca, ela deve ser algo no nível de um chamado para assassinar os próprios pais para obter a vida eterna, ou queimar os filhos para obter o favor com Deus. Certamente, essas seriam doutrinas de demônios. Mas quando uma doutrina nos diz que há certa cerimônia ou alguma restrição que é alheia ao ensino apostólico, e que se for observada, nos aproximará de Deus, ou que se não for observada impedirá a nossa salvação, ela está colocando diante de nós alguém ou alguma coisa que não Jesus Cristo para governar a nossa consciência, quando esse é o direito exclusivo do nosso Senhor. Somente Deus tem a autoridade para definir para nós o que é fundamentalmente correto ou errado.

Quando Satanás disse a Eva que, embora Deus tenha dito para não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, que ela deveria comer de qualquer forma, e que nenhum mal viria sobre ela como resultado, podemos chamar isso de uma doutrina demoníaca, visto que o próprio diabo estava falando com ela. Nessa ocasião, a doutrina persuadiu Eva a buscar liberdade contra uma restrição divina. Foi libertar sua consciência para agir contra um mandamento divino explícito. A rebelião generalizada contra proibições bíblicas explícitas, tanto na igreja como no mundo, testifica a eficácia dessa doutrina demoníaca. Mas o diabo pode seduzir os sentimentos religiosos de pessoas não convertidas de outras formas. Se nossa suposição estiver correta, aqui a doutrina demoníaca sugere que a fé simples em Cristo e o grato desfrute da criação de Deus não é suficiente. Antes, para alcançar certas alturas espirituais, uma pessoa deve observar certas cerimônias, considerar certos dias como especiais e santos, ou recusar apetites corporais naturais. Então ele será salvo. Então ele se tornará um crente de elite. Isso é uma doutrina demoníaca. Embora pareça advogar disciplina e uma atitude religiosa, ela é na verdade um desafio radical à autoridade de Deus e um ataque sobre o ensino do evangelho de Jesus Cristo. As táticas diferem da tentação de Satanás contra Eva, mas sua essência e resultado são os mesmos.

As doutrinas de demônios permeiam algumas comunidades supostamente cristãs. Mesmo essa manifestação particular dela é difusa, isto é, doutrinas que subvertem a autoridade exclusiva do Senhor sobre a consciência, e as definições de certo e errado. Quando aparecem nas igrejas, essas doutrinas quase sempre afirmam a superioridade moral, e se apresentam como caminhos espiritualmente superiores para seguir a Deus. Para oferecer apenas um dos muitos exemplos possíveis, e um que esteja intimamente relacionado ao contexto da nossa passagem, há aqueles que advogam um vegetarianismo “cristão” sobre a base que isso é espiritual e moralmente superior. É impossível estabelecer isso sobre um fundamento bíblico.

A questão não é se a doutrina tem ou não qualquer mérito, mas sim quão fortemente os crentes estão prontos para condená-las. De acordo com o apóstolo, não devemos considerá-la como excesso de piedade ou mero fanatismo, mas devemos declará-la como uma doutrina demoníaca. Quando um escritor produz um livro que promove essa posição, deveríamos reconhecer que um demônio o inspirou a escrevê-lo, ou pelo menos admitir que a doutrina é de origem demoníaca, ao invés de atribuí-la unicamente aos erros humanos mundanos. Quantos ministros diriam isso? Paulo escreve: “Se você transmitir essas instruções aos irmãos, será um bom ministro de Cristo Jesus” (v. 6). Muitos cristãos fariam pouco ou nada para combater tal doutrina, ou para denunciá-la em termos duros, porque não são bons ministros. Se um cristão deseja abater uma ovelha, ou dez, faça-o com confiança. Se um cristão quer comer uma vaca e toda a família da vaca, faça-o com ação de graças. E se isso te ofende, o problema não está na doutrina ou em mim, mas em você. Para os impuros, todas as coisas são impuras, não porque as coisas que Deus criou sejam em si mesmas impuras, mas porque a pessoa é impura, e não possui liberdade em Jesus Cristo. Mas para a pessoa cujo coração foi limpo pela fé, eu digo: “Mate e coma!”.

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Fonte: Reflections on First Timothy

Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto

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