Sugestão de um Plano para a Leitura da Bíblia

por

Douglas Kelly



Uma vez que nossas orações são tão diretamente alimentadas pelas promessas e moldadas pela palavra escrita de Deus, a antiga prática de ler um trecho da Escritura a cada dia é certamente muito sábia. Nós analisamos o poder da oração; agora vamos refletir sobre o poder da Palavra.

 

Solte o leão

O grande pregador inglês do século XIX, Charles Spurgeon, costumava comparar a pregação da Bíblia a “soltar o leão”. Embora a palavra pregada seja algo especial (principalmente, como dissemos, quando respaldada nas reuniões da congregação em oração), a leitura pessoal pode ter um efeito profundo sobre nós enquanto indivíduos. Compreender a mensagem da Palavra de Deus, é, na verdade, liberar em nossa vida forças tão devastadoras quanto um leão. Veja o que ela tem realizado no decorrer da História.

Quando o Parlamento escocês, em 1543, aprovou uma lei tornando legal ao povo comum a leitura da Palavra de Deus em sua própria língua, foi como se um leão tivesse sido solto... e nunca mais recapturado. Em A História da Reforma John Knox comenta que a publicação da Bíblia em inglês tornou o reavivamento religioso, a que chamamos Reforma, possível e inevitável. Ele fala acerca do ano de 1543:

Nesse tempo podia-se ver a Bíblia sobre a mesa de praticamente todos os cavalheiros. O Novo Testamento renascia nas mãos de muitos homens... e da mesma forma o conhecimento de Deus aumentou extraordinariamente, e Deus enviou seu Espírito Santo aos homens simples, com grande abundância (Vol. I, p. 45).

A Bíblia – com a bênção do Espírito Santo – trouxe o reavivamento e a reforma à Escócia do século dezesseis e a todo o Norte da Europa, e desde esse tempo continua a trazer a salvação e nova vida a indivíduos e nações. Imagine o que o conhecimento completo da Bíblia poderia fazer pela sua vida e da sua igreja! Pense como ela poderia constituir o combustível de uma vida de oração moldada e fundamentada na revelação da vontade de Deus.

Aqui está outro exemplo, mais recente, do poder da Palavra. Depois que o Marxismo tomou conta da Rússia na revolução de 1917, eles começaram a imprimir milhões de panfletos anti-cristãos. Esses panfletos destacavam trechos das Escrituras com o intuito de ridicularizá-los e apontar [presumíveis] erros.

Contudo, a impressão dessas publicações foi imediatamente interrompida quando o governo percebeu que milhares de pessoas estavam se convertendo a Cristo apenas pela leitura desses trechos “pinçados” da Palavra de Deus com o intuito de destruir a religião. Inconscientemente, as autoridades comunistas tinham soltado o leão.

Mas o que devemos ler e em que ordem? A resposta mais fundamental é esta: devemos ler a Bíblia toda de forma sistemática e regular. Precisamos nos familiarizar com toda a Palavra para conhecer a totalidade da mensagem que Deus tem para o seu povo.

Uma vez que Deus, em sua providência, inspirou de maneira infalível todos os sessenta e seis livros da Bíblia, ele deve ter algo muito importante a nos dizer em cada parte desse livro, cuja escritura ele tão cuidadosamente supervisionou. Se não lermos todas as partes da Escritura de maneira contínua, certamente perderemos coisas que devemos saber.

Ou, colocando de outra forma, Cristo nos fala em todas as partes da sua Palavra. Para ter a totalidade e a completitude de Cristo em nós, precisamos da totalidade de sua Palavra. O que o Rev. William Still de Aberdeen, Escócia, declara sobre a pregação, podemos aplicar à leitura da Bíblia: “Se você não ensinar a totalidade da Palavra à sua congregação, tanto ela quanto você se desviarão na mesma medida da extensão e importância de suas omissões: por exemplo, um cristão precisa conhecer o Livro dos Provérbios e a Carta a Filemon tanto quanto o Gênesis, os Salmos, e Isaías, os Evangelhos...” [1].

Não há razão para que os cristãos não possam ler toda a Bíblia uma vez por ano, se eles lerem pequenos trechos diários. Mas como podemos ler toda a Bíblia uma vez por ano sem sermos massacrados por genealogias, batalhas ou instruções de tabernáculo?

 

Um trecho por dia

O planejamento simples que se segue me foi transmitido por um proeminente e consagrado pregador, Venus Brooks, de Pembroke, Carolina do Norte. Foi útil para diversas pessoas, desde dos tempos dos Puritanos e foi concebido para abarcar as Escrituras em exatamente 365 dias.

Seu principal valor está em oferecer uma leitura variada, colocando-nos em contato com diferentes partes da Escritura a cada dia e oferecendo uma continuidade por fazer-nos retornar à mesma seção no mesmo dia da semana durante todo o ano. Outra vantagem desse planejamento é ajudar-nos a compreender a maravilhosa unidade e notável interconecção entre as várias partes da Escritura.

Por exemplo, o texto que você lê no Domingo em Salmos pode ser citado no sábado em Hebreus.

•  Domingo: leia 5 capítulos de Salmos (e então passe para os livros seguintes: Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos).

•  Segunda-feira: leia 3 capítulos de Gênesis (e dos livros que seguem: Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio).

•  Terça-feira: leia 3 capítulos de Josué (e então passe para Juízes, Rute, 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis, 2 Reis).

•  Quarta-feira: leia 3 capítulos do Livro de Jó, depois de terminar o Livro de Jó inicie 1 Crônicas, 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Ester).

•  Quinta-feira: leia 3 capítulos de Isaías (e os livros seguintes: Jeremias, Lamentações, Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias).

•  Sexta-feira: leia 3 capítulos de Mateus (e os livros seguintes: Marcos, Lucas, João, Atos).

•  Sábado: leia 3 capítulos de Romanos (e os livros seguintes: 1 Coríntios, 2 Coríntios, Gálatas, 1 Tessalonicenses, 2 Tessalonicenses, 1 Timóteo, 2 Timóteo, Tito, Filemon, Hebreus, Tiago, 1 Pedro, 2 Pedro, 1 João, 2 João, 3 João, Judas, Apocalipse).

 

Para controlar onde você parou a cada semana, você precisará de um marcador de páginas em cada parte. Marque o local em cada uma das sete partes. Então, a cada dia, quando você chegar ao final da seção que leu, você fará algum tipo de marcação em sua Bíblia, para saber exatamente onde retomar a leitura quando voltar a essa parte na semana seguinte.

Até o final do ano, você perceberá que terminará algumas partes antes das demais, porque elas não têm exatamente a mesma extensão. Nesse caso, transfira o seu marcador de páginas para uma das três partes mais extensas e leia dessa parte duas ou três dias mais até terminá-la.

 

Água da vida

Mas então como liberar o poder de Deus, semelhante ao do leão, em minha vida? Assim como acontece com a oração, para que a devoção se torne parte integrante de nossa vida precisamos manter sempre presente em nosso pensamento a visão de quem é Deus.

O último capítulo da Bíblia fala de um rio da água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro (Ap 22.1). Nós vimos no início de nosso estudo sobre oração que os livros do Apocalipse e de João freqüentemente falam de Deus em termos de vida e luz e amor. Assim o capítulo 22 do Apocalipse pinta-nos um quadro da vida, da luz e do amor de Deus fluindo até nós como um rio.

Como podemos ser tocados por este rio? A resposta está em que ele flui através da Escritura e inunda o local de oração para aqueles que fazem da devoção diária uma prioridade em suas vidas. Se você não estiver convencido da verdade desta afirmação, pelo menos tente, e perceberá que uma atmosfera sobrenatural penetrará sua vida e começarão a ocorrer coisas com que você jamais sonhou.

Por exemplo, você perceberá que sua mente estará cada vez mais povoada de pensamentos sobre Deus, e que sua perspectiva de vida começa a mudar. Os dias já não passam sem que se tenha um pensamento para Jesus. Você começa a orar quando surgem as dificuldades, ao invés de reclamar delas, e passa a reconhecer a mão de Deus agindo quando as coisas começam a mudar. O louvor brotará de seu coração à medida que você estiver cada vez mais atento às suas bênçãos.


A atitude certa

Um dos mais admiráveis e tranformadores guias de leitura da Bíblia pode ser encontrado na Pergunta 90 do Breve Catecismo de Westminster:

P: Como se deve ler e ouvir a Palavra a fim de que ela se torne eficaz para a salvação?

R: Para que a Palavra se torne eficaz para a salvação devemos ouvi-la com diligência, preparação e oração; recebê-la com fé e amor, guardá-la em nossos corações, e praticá-la em nossa vida.

Para que as bênçãos da Palavra de Deus possam fluir em nossas vidas, a primeira coisa a fazer é “ouvi-la com diligência”. A atitude de quem buscar a Palavra é semelhante à de um garçom em um restaurante, servindo as pessoas à mesa. Ele presta muita atenção para anotar corretamente o pedido e então enviá-lo à cozinha. Se devemos anotar os pedidos da Escritura, precisamos estudá-la profundamente e abrir os ouvidos para o entendimento e humildemente seguir seus ensinamentos.

Dr. Alexandre Whyte, de Edimburgo, exemplifica graficamente o que significa ser diligente. Ele costumava dizer à sua congregação para imaginar alguém inclinando sua cabeça o mais possível para o lado de quem falava, para não perder uma só palavra do que se dizia! Se nos aproximarmos das Escrituras com a idéia de que algo muito importante nos será revelado e do qual nós não queremos perder uma letra sequer, então se criará um clima de reverência e expectativa, que abre espaço para as ricas mensagens que emanam de Deus.

Que diferença de uma leitura superficial e sem interesse da Escritura diante da televisão barulhenta ou das crianças que falam todas ao mesmo tempo, e meu pensamento está a milhares de quilômetros de distância fazendo planos para a viagem da semana seguinte!

Quando lemos a Palavra de Deus devemos nos colocar em atitude de silêncio, reverência e expectativa, que atrairá a presença do Espirito Santo, ao invés de entristecê-lo e afastá-lo de nós. Em última análise, ele é quem deve transmitir a mensagem; assim, estar atento à Palavra de Deus é uma forma de glorificar e amar àquele que originalmente inspirou o texto.

 

Uma preparação adequada

Preparar-se para receber a mensagem significa simplesmente preparar-nos para estudar a Palavra de Deus. Obviamente, um novo nascimento é uma preparação essencial para o entendimento das Escrituras, pois o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não podem entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente (1Co 2.14).

Quando o Espírito Santo nos leva ao nascimento em Cristo, ele derrama luz sobre o nosso entendimento, para que possamos ver e compreender as verdades de Deus; ele abre os nossos ouvidos para que ouçamos a voz do Bom Pastor falando nas Escrituras. Conquanto seja maravilhoso e essencial, contudo o novo nascimento não nos garante que a cada vez que abrimos a Bíblia estejamos suficientemente preparados para estudar as Escrituras.

Uma vez que as Escrituras foram escritas em outra época e cultura, e uma vez que as suas diferentes partes estão relacionadas e dependem umas das outras, é preciso um estudo contínuo de nossa parte para que estejamos cada vez melhor preparados para entender exatamente (nas palavras do Catecismo Maior, Pergunta 157) qual o “conteúdo e propósito” dos textos. Manuais bíblicos, bons comentários, a Confissão de Fé de Westminster e, acima de tudo, a pregação de pastores fiéis , podem ajudar-nos a estar preparados para interpretar corretamente a Palavra de Deus.


Aproxime-se da Palavra de Deus com a oração

Mas há algo ainda mais primordial do que o estudo para abrir nossas vidas para receber a Palavra de Deus: toda a nossa leitura da Bíblia deve ser temperada com a oração. João Calvino regularmente fazia esta oração antes de iniciar suas conferências sobre a Bíblia:

Que o Senhor nos conceda contemplar os mistérios de sua sabedoria celestial com devoção sempre crescente, para sua glória e para a nossa edificação. Amém.

Seria bom fazermos esta oração antes de nossa leitura pessoal da Bíblia. Mas para fertilizar a nossa leitura da Bíblia com vida, precisamos fazer mais do que dizer uma oração inicial. Precisamos orar durante toda a sua leitura: precisamos transformar determinados trechos da leitura em oração. Se você quiser aprofundar seus conhecimentos sobre como transformar as promessas de Deus em oração, leia A Vida de Elias, de A.W.Pink. De maneira prática e inspirada, Pink nos mostra através das experiências de Elias, como orar de acordo com as promessas.


Ansiosa expectativa

Depois de pecar no Jardim do Éden, Adão e Eva se esconderam de Deus e ouviram aterrados a sua voz. Mas graças à morte de Jesus por nós, e porque fomos trazidos à sua vida de ressurreição nós também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, por intermédio de quem recebemos agora, a reconciliação (Rm 5.11). Ao invés de fugir de um Deus irado, nós ansiamos pelo encontro de um Pai que ama e nos reconcilia consigo com mensagens de ternura pessoal e de graça nas páginas de sua Palavra Sagrada.

É assim que eu costumo encarar a antecipação. Depois que ficamos noivos, eu e minha futura esposa ficamos separados pelo Oceano Atlântico por diversos meses até que ela terminasse os seus estudos na Inglaterra. Como eu esperava ansioso pelas suas cartas! E como as recebia com amor! Se recebermos a Palavra de Deus com a mesma disposição, quão numerosas bênçãos não estarão reservadas a nós e àqueles que convivem conosco.


O valor da memorização

Não é novidade que o Catecismo ensina o valor da memorização das Escrituras. E isso não é válido apenas para as crianças: deveríamos continuar a memorizar trechos da Escritura por toda a nossa vida. Podemos selecionar versículos de nossa leitura diária que tiveram especial significado para nós. Outra opção são os esquemas que podem ser seguidos, como os estabelecidos pelos Navegadores ou pela Associação de Memorização Bíblica .

O pastor de minha igreja fez recentemente uma pregação baseada em 1 Coríntios 13. Ele recomendou à congregação que memorizasse esse belo capítulo. Nossa família passou a fazer isso todas as noites antes do jantar. Certo dia eu fui tentado mais de uma vez a agir de forma pouco amável. De repente estas palavras saltaram diante dos meus olhos: O amor é paciente... não se ensoberbece . Como eu dei graças a Deus por ter me encorajado a tomar o caminho do alto através de sua Palavra que foi semeada em meu coração!

Em última análise, devemos memorizar as Escrituras para que elas se tornem parte de nossos pensamentos, pois Como imagina em sua mente, assim ele o é (Pv 23.7). Que melhor forma de suas orações se tornarem conforme a vontade de Deus! E que rico manancial de bênçãos não teríamos junto de seu Doador como fundamento para a nossa oração!


Esforço recompensado

A leitura da Bíblia nem sempre é linear. Como a oração, ela exige algum esforço para que tomemos posse de tudo o que Deus nos reserva. Mas lembre-se: Deus nos predestinou e nos chamou para Cristo, para que déssemos frutos (Jo 15.16). O Espírito Santo qualifica os crentes a tornarem-se praticantes da palavra e não somente ouvintes (Tg 1.22).

Uma das leis básicas do reino é que aquele que é fiel nas pequenas coisas será feito senhor de muitas coisas (Mt 25.23). Depois que fielmente tivermos cumprido as coisas simples que Deus nos convida a realizar através de sua Palavra ele, a seu tempo, nos mostrará desafios maiores. É o mesmo princípio de maturidade que já estudamos: devemos ser fiéis no Jardim de Infância antes que Deus nos envie para a Universidade! Que Deus nos conceda a fidelidade à leitura da Bíblia da mesma forma que à oração.



NOTAS:

[1] - William Still, The Work of the Pastor , 3 a edição (Aberdeen, Escócia: Igreja de Gilcomston [do Sul], 1984) Ver também “A Charge to Students” em A Symposium from Past Issues of the TSF Bulletin (Londres: Sociedade dos Estudantes de Teologia, 1964).

 

 


Fonte: Douglas Kelly, Se Deus já sabe, por que orar? (São Paulo: Cultura Cristã, 1996), pp. 189-198.


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