A Morte e a Morte da Modernidade:
Quão Pós-moderno é o Pós-modernismo?
por
Ricardo Quadros Gouvêa
Em A morte e a morte de Quincas Berro D’água, Jorge Amado nos oferece a estória das duas mortes de Quincas, obra típica do realismo mágico latino-americano. Esta obra faz-nos perguntar: Quincas de fato morreu duas vezes? Quando ele morreu? No seu quarto, como dizia a família, ou no mar, atirando-se de um saveiro? Os amigos de Quincas não hesitariam em garantir que ele estava vivo até aquele momento em que a tempestade o lançou às águas. E o leitor, embevecido pela linguagem e pelas imagens do apto escritor, admite que isso possa ser verdade.1 Afinal de contas, "que é a verdade?" (João 18.38) Existem verdades absolutas e/ou universais? Ou são todas as verdades subjetivas, e relativas em termos culturais e históricos? O posmodernismo prega a morte da modernidade e da verdade objetiva.2 Mas Jorge Amado é um autor moderno ou pós-moderno? O subjetivismo que esta sua estória inspira não é novidade. Será possível que, como os amigos de Quincas, estamos carregando um cadáver sem o saber? Morreu a modernidade ou continua viva? Quando e como se deu o passamento? O que há por trás de toda esta comoção funérea? É isto que cabe-nos investigar. Neste artigo eu me proponho a analisar este misterioso óbito, e a validade dos argumentos daqueles que o proclamam.
Para o estudioso familiarizado com a história da teologia moderna e contemporânea, tais novas obituárias soam fantásticas. São como as palavras dos amigos de Quincas, garantindo que o mesmo faleceu ao se lançar em um mar pós-moderno, e não no bar pós-kantiano, afogado ao engolir o trago amargo da revolução epistemológica de Immanuel Kant (1724-1804). O modernismo perdeu suas forças agora, no fim do século vinte, ou no fim do século dezoito, com a publicação da Crítica da Razão Pura?3 Qual é a verdadeira cara do posmodernismo, por trás da máscara de novidade, promovida como em uma grande campanha de publicidade? Trata-se de um novo produto, ou de alguma velha mercadoria em que o rótulo trocado e um novo "jingle" dão a sensação de novo?
O iluminismo e a teologia iluminista: origem ou apogeu da modernidade? Segundo os posmodernistas, a modernidade é a sociedade influenciada pelas idéias iluministas, período do apogeu do racionalismo europeu,4 a chamada "era da ciência", identificado como o mais puro modernismo. Referimo-nos à Inglaterra de Locke, Hume, Adam Smith, Isaac Newton; à França de Condillac, Diderot, Condorcet, Voltaire; à Alemanha de Goethe, Mendelssohn, Semler e Reimarus. O Iluminismo se caracterizou pelo ideal da auto-emancipação humana dos preconceitos, superstições e tradições européias provenientes da Idade Média. Na verdade, a "Idade Média", a "idade das trevas", é uma invenção iluminista. O iluminismo francês queria o fim do domínio sobre a França da igreja católica e da monarquia absolutista. Liberdade, igualdade, e propriedade privada passaram a ser vistas como direitos naturais de todo homem, e o ideal da fraternidade universal acenava com a esperança de que todos os conflitos étnicos e entre classes sociais teriam um fim. Esta filosofia audaciosamente otimista e orientada para o futuro foi desde o começo o elemento básico da biocosmovisão (Weltanschauung) americana. Mas o "reino do terror" após a revolução francesa (1789) demonstrou a fragilidade das esperanças iluministas.
Na Alemanha o iluminismo foi relativamente calmo quando comparado com o francês. O racionalista leibnitziano Christian Wolff (1679-1754) e Alexander Baumgarten (1714-1762) foram representantes máximos do iluminismo alemão, caracterizado pela confiança no poder da razão para obter respostas no campo da metafísica. A razão deveria julgar o que é aceitável, ou não, que se creia sobre Deus, e substituindo a revelação e a tradição, tornou-se o novo árbitro da verdade. O homem se viu capaz de entender a ordem fundamental do universo, e os Princípios newtonianos simbolizaram essa nova era.5 As leis da natureza tornaram-se inteligíveis, e o homem se viu capaz de dominar e transformar o mundo. O ideal científico determinou que apenas os aspectos mensuráveis da vida e do cosmos deviam ser tratados como reais. Não apenas as ciências naturais, mas também a política, a ética, a metafísica e a teologia teriam que se submeter à rigidez dos cânones científicos.
A teologia "moderna", segundo os posmodernistas, seria a do iluminismo, em que a noção agostiniana de pecado original foi abandonada. O pecado foi entendido como uma doença da infância da raça humana, algo de que podemos nos livrar à proporção em que amadurecemos enquanto espécie. Apelos a formulações teológicas clássicas não poderiam mais ter qualquer força nos debates. O indivíduo tornou-se responsável por testar todas as proposições através do uso da razão, e nenhuma tutela poderia ser tolerada. Como conseqüência, a religião baseada na revelação foi atacada, e uma forma de religião natural, o deísmo, foi elevada ao status de verdadeira religião. Milagres seriam indignos de Deus. As proposições religiosas aceitáveis se resumiram às ditas universalmente discerníveis e que possuíam uma bagagem moral positiva, como por exemplo, a existência de um Criador (o grande Arquiteto do deísmo e da maçonaria), a imortalidade da alma (uma doutrina platônica), e a liberdade do espírito humano (pelagianismo). Locke sentiu-se à vontade para afirmar que o cristianismo, uma vez destituído de sua bagagem dogmática inteiramente dispensável, era uma religião muito razoável.6 Segundo os iluministas, nenhum credo dogmático poderia ser considerado autoritativo, pois nenhum sistema religioso poderia ser provado por argumentos científicos universalmente válidos. O papel da religião tornou-se o de sancionar a moralidade da época. O valor de uma religião, e a melhor forma de testá-la, segundo eles, era o efeito que teriam na conduta humana.
O Ocaso do Iluminismo e o Surgimento da Teoria pós-Kantiana Há muito tempo que o pensamento iluminista caiu em descrédito, ainda que ele continue sendo louvado em círculos influenciados pela ciência moderna, ainda impregnada pelo ideal científico, e pela filosofia analítica anglo-saxônica, com suas pretensões racionalistas positivistas. O racionalismo começou a agonizar quando Kant pôs um fim na epistemologia de homens como Descartes e Locke. Kant contrastou seu idealismo crítico transcendental com o "dogmatismo" que ele via nos seus antecessores: a presunção de que o intelecto humano pode chegar à verdades através do puro ato de pensar, sem antes avaliar criticamente seus próprios recursos e poderes.
Ainda que o conhecimento se inicie pela experiência, dizia Kant, isso não quer dizer que todo conhecimento é empírico: há as impressões, que são obtidas pelos sentidos, e há as categorias mentais aprioristas pelas quais essas impressões são sintetizadas. O homem não é um mero receptor de impressões, mas ativamente impõe nas impressões recebidas suas próprias categorias transcendentais. A mente humana não é uma tabula rasa (contra Locke), mas uma ativa interpretadora da realidade, uma constante hermeneuta. Essas categorias mentais de que Kant falava seriam anteriores aos dados empíricos, pressupostas pela experiência, e independentes dela. O conhecimento, segundo Kant, é também subjetivo porque o objeto é, em grande parte, uma criação do sujeito. O mundo ao nosso redor é uma criação da nossa própria mente, nossas impressões espacialmente dispostas, e as "leis" que encontramos na natureza são um reflexo da nossa própria racionalidade.
Esse idealismo subjetivo de Kant salvou a consistência do conhecimento científico, ameaçado pelo ceticismo Humeano, ao custo tremendo de seu valor objetivo: cada fenômeno do mundo exterior é apenas uma idéia da nossa mente e não existe enquanto "coisa em si" (Ding an Sich). Daí a separação kantiana entre o reino fenomênico, criado e aprendido pela mente humana, e o reino noumênico, composto por aquilo que está além das nossas capacidades mentais de apreensão, ou porque não temos os aparatos necessários para detectá-lo, ou porque aparentemente não tem nenhuma relação com o sujeito. Deus, por exemplo, seria noumênico. A linguagem da metafísica é, na melhor das hipóteses, simbólica.
Kant afirmou que estava removendo o conhecimento a fim de criar espaço para a fé. E assim nasceu a teologia pós-kantiana. Kant deu um golpe mortal na teologia e na filosofia iluministas, ou, como querem os posmodernos, na teologia e filosofia modernas. O posmodernismo nada mais é que um novo nome para o pensamento pós-kantiano que influencia os círculos acadêmicos há nada menos que duzentos anos! A única possível novidade é a chamada "posmodernidade", isto é, o fato de que a sociedade mundial está em geral absorvendo agora esta transição, assumindo em termos práticos e no dia-a-dia os pressupostos do pensamento pós-kantiano, e esta assimilação está sendo refletida na cultura popular. Este fenômeno cultural e social não deixa de ser notável, mas é necessário que reconheçamos a verdadeira natureza daquilo com que estamos lidando.
A novidade é, portanto, a absorção das concepções filosóficas pós-kantianas na cultura e no imaginário popular. Há muito tempo que a teologia de cunho iluminista não possui qualquer influência relevante em meios acadêmicos. A teologia pós-kantiana, ainda que influenciada pelo Iluminismo, é uma teologia que visa exatamente dar uma resposta pós-iluminista ao conflito entre teologias iluminista e ortodoxa.
É o caso de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), por exemplo. Com sua teologia do sentimento entendido não como mera emoção e sim como consciência imediata, Schleiermacher propôs uma teologia de síntese que salvaria a religião cristã da armadilha kantiana. A religião cristã, segundo Schleiermacher, não pode ser reduzida à moralidade (contra Kant), nem à uma filosofia metafísica (contra J. W. F. Hegel - 1770-1831), nem à proposições doutrinárias; a essência da religião é o sentimento característico da comunidade cristã de dependência absoluta em um poder transcendente. Sua intenção era adaptar a fé cristã ao novo bidimensionalismo criado por Kant sem que toda teologia se perdesse no buraco negro noumênico, ou, se transformasse em um apêndice da filosofia moral, como no caso do próprio Kant que, ironicamente, enquanto teólogo, nunca deixou de ser um típico iluminista.7 Deus, dizia Schleiermacher, não pode ser compreendido como extra em relação ao mundo natural passível de investigação científica, mas sim como o objeto maior da consciência humana, uma experiência essencial à verdadeira humanidade.
Outros teólogos do século dezenove como Albrecht Ritschl (1822-1889) e Ernst Troeltsch (1865-1923) procuraram encontrar o espaço da teologia no mundo pós-kantiano. Mas talvez tenha sido o teólogo suíço Karl Barth (1886-1968) quem melhor resultados alcançou nessa direção. Barth, insatisfeito com as soluções propostas pelos teólogos do século dezenove, e inspirado por críticos como Soren Kierkegaard (1813-1855), Friedrich Nietzsche (1844-1900). Wilhelm Herrmann (1846-1922) e Albert Schweitzer (1875-1965), deu início no entre-guerras a um movimento teológico que buscava alcançar aquilo que a teologia oitocentista não havia conseguido: uma teologia não iluminista e pós-kantiana que não se evaporasse à medida que fosse produzida, que não fosse redutível a nada além da teologia cristã propriamente e da revelação de Deus em Jesus Cristo. Na "teologia da crise" de Barth (do grego krinein, julgar), não é a infinita bondade de Deus que é salientada, como na teologia deísta, mas o juízo divino sobre tudo que se revela humano, sobremodo humano, inclusive a religião.
Mitos iluministas ou "modernos" que haviam persistido na teologia oitocentista, como, por exemplo, a fé no progresso, já não eram aceitáveis no nosso século de guerras e horrores impensáveis como Auschwitz e Hiroshima. Mas não seria possível fazer neste artigo uma panorâmica da teologia pós-kantiana. Barth foi teólogo de várias fases, e não é possível fazer-lhe justiça em breves linhas.8 Entretanto, o seu Römerbrief (Comentário de Romanos, 1919) foi um marco na história da teologia apontando para aquilo que estamos discutindo neste artigo: que o fim do racionalismo iluminista, chamado pelos posmodernos de "modernismo", deu-se há muito tempo, e foi anunciado por Kierkegaard e Nietzsche, por Schleiermacher e Ritschl, por Karl Barth e Emil Brunner (1889-1966).
Características Básicas do Posmodernismo A rejeição dos chamados mitos modernos
O posmodernismo, enquanto movimento acadêmico (principalmente filosófico e literário), começou nos anos sessenta, pretensamente refletindo uma nova tendência social e cultural. A partir dos anos setenta o movimento acadêmico passou a exercer uma forte influência sobre a sociedade, a política, a cultura popular, a mídia. Segundo os posmodernistas, o pensamento moderno se caracteriza por (i) cientificismo, a crença de que a ciência funciona como fonte revelatória onisciente, (ii) tecnologismo, a crença na onipotência tecnológica, que a tradução do conhecimento científico em termos de controle e poder sobre a criação permite ao homem atingir qualquer fim almejado, e (iii) economismo, a crença que o constante elevar dos padrões de vida em termos materiais é o principal objetivo da vida humana na terra e o único caminho real para a felicidade pessoal e harmonia social. A esses mitos modernos o posmodernismo se opõe.
Desconstrucionismo e o problema do conceito de verdade
O desconstrucionismo é o método filosófico por excelência dos pensadores posmodernos, ainda que seu inventor, o francês Jacques Derrida (n.1930), negue que se trate de um método.9 O desconstrucionismo é uma prática de leitura baseada em uma hermenêutica de suspeita em que o texto é entendido a partir da sua auto-desintegração teórica. A desconstrução implica na subversão, na descentralização de qualquer origem perceptível de discursos autoritativos associados à "metanarrativas", isto é, macroestruturas teóricas como, por exemplo, sistemas filosóficos e teológicos. As metanarrativas são desconstruídas através de uma "arqueologia do conhecimento" e de uma "tipologia dos discursos".10
O posmodernismo rejeita e busca desconstruir qualquer noção de verdade que se proponha unitária, absoluta, universal, ou mesmo coerente. Entretanto, há muito tempo que a filosofia "desconstruiu" a noção clássica de verdade: o que temos hoje são diferentes teorias sobre a verdade, como o correspondentismo, o coerentismo, o verificacionismo, o pragmatismo de William James (1842-1910), o semanticismo de A. Tarski, etc.11 Martin Heidegger (1889-1976) dizia que a verdade como nós a entendemos é uma invenção dos gregos. A-letheia é des-cobrir aquilo que jaz oculto na memória (lethe = esquecimento), é lembrar-se daquilo que o burburinho das idéias e opiniões nos fez esquecer.
Mas desde os tempos de Platão o ser humano se esqueceu disso, e o pensamento ocidental passou a encarar a verdade como se fosse algo à nossa disposição. Heidegger sugeria restaurar à noção de verdade este elemento de suspeita e mistério que ter-se-ia perdido.12 Portanto, propor uma redefinição da idéia moderna de verdade não é nada novo na história da filosofia, e mais uma vez a originalidade posmoderna pode ser questionada. De qualquer forma, o posmodernismo propõe, em termos positivos, a pluralidade da verdade. Não há uma única verdadeira interpretação de um fato, de um texto ou discurso, mas muitas interpretações igualmente válidas. A verdade é entendida em termos semióticos e políticos, e é vista como algo inerentemente nocivo, pois toda pretensão à verdade implica em exclusivismo preconceituoso, dominação exploratória, e tirania obscurantista.
Pluralismo, discurso e différance
O posmodernismo, conseqüentemente, busca uma reinterpretação da idéia de uma sociedade pluralista. O pluralismo moderno (entenda-se iluminista) visava a convivência amigável entre visões diferentes e opostas, relacionada ao ideal iluminista da fraternidade universal e tolerância. Já o pluralismo posmoderno (entenda-se pós-kantiano) dá um passo além, e propõe não apenas tolerância, mas inclusivismo. O posmodernismo se propõe, na prática, a ser um catalisador que reúne todas as forças interessadas na decadência dos discursos unitários em prol do pluralismo inclusivista. Espera-se que as opiniões cedam espaço umas às outras, particularmente aos pontos-de-vista marginalizados, aqueles que foram calados por gerações pelas vozes dominantes da sociedade, como é o caso do ponto-de-vista feminista, das minorias raciais, das culturas desprezadas. Todo discurso que tem a pretensão de impor-se como superior é rejeitado, não por mostrar-se intrinsecamente defectivo, mas por demonstrar uma incapacidade de "comportar-se" corretamente (daí a moda do "politicamente correto") diante desse novo contexto.
Michel Foucault (1926-1984) vai ao extremo de afirmar que todo e qualquer discurso é uma violência, que toda defesa de uma verdade como absoluta e universal é terrorismo, pois não existe conhecimento ou verdade inocente, isto é, não existe representação desinteressada da realidade. "Discurso" aqui não é apenas discurso verbal, falado ou escrito, mas todo e qualquer discurso, verbal ou não-verbal. A universalidade da violência expandir-se-ia a todas as expressões humanas: toda arte, toda cultura, toda filosofia, toda ciência, toda religião, enfim, todo discurso é fundamentado no que Nietzsche chamou de "a vontade de poder", o "querer-poder", força elemental que determinaria todas as atividades humanas. A única defesa diante desta situação é buscar a maior diversidade possível de expressões. E como sugeria Giles Deleuze (m.1995), o filósofo da singularidade serial, cada ser humano deve ser um laboratório de experiências únicas, na mais completa absolutização da diversidade e da diferença.
O conceito central na filosofia de Jacques Derrida é "différance" (em português, "diferência"), que une em si os sentidos de "diferença" e "deferência". Différance é o elemento de valoração discursiva que dá sentido a todo discurso. Différance implica uma diferença entre idéias, e o conceder natural a outras idéias. Diferência seria o movimento do sentido que só existe em termos relacionais. "O ‘sentido’ não faz sentido para Derrida, porque falar do sentido, no singular, seria estar dentro do idealismo que ele combate. A escrita não tem sentidos unívocos; ela produz sentidos os quais, mais do que múltiplos (polissemia), são sempre relacionais, incertos e não sabidos..."13 A noção derrideana de diferência é a conseqüência lógica do estruturalismo francês que teve origem no pensamento do celebrado lingüista francês Ferdinand de Saussure (1857-1913).
Saussure havia determinado que toda unidade lingüística obtém seu valor somente a partir das diferenças em relação às outras unidades do mesmo paradigma. Saussure fez da linguagem um sistema fechado que se explica a si mesmo, despojando a idéia racionalista de que palavras referem-se a conceitos mentais, e que podem ser valoradas portanto por meio de uma relação de correspondência com as idéias e fatos existentes per se. Mas diferentemente dos estruturalistas, que tentaram salvar a possibilidade do sentido textual unívoco por meio de uma pretensa estrutura interna dos textos, os pós-estruturalistas rejeitaram tais esforços, sugerindo que um texto só obtém sentido em sua relação com outros textos, e uma "verdade" em relação a outra "verdade".
Narrativas, metanarrativas, e o problema da linguagem
O posmodernismo rejeita todo e qualquer sistema metafísico sob a acusação de que são absolutistas e preconceituosos. Do ponto-de-vista posmoderno, é questionável que consensos culturais de qualquer espécie (inclusive religiosos) sejam necessários, possíveis, ou mesmo desejáveis. Os sistemas metafísicos exclusivistas e absolutistas (metanarrativas) são repudiados devido à sua pretensão de serem estruturas totalizadoras que revelam verdades universais e absolutas. O cristianismo, na maioria das suas expressões, é incluído neste grupo. A fé reformada é particularmente ofensiva à mente posmoderna, com sua filosofia da história compreensiva e sua epistemologia revelacional.
O posmodernismo eleva a narrativa localizada e subcultural ao status de local por excelência da verdade. Isso implica na rejeição do paradigma transcultural: não há nenhum discurso que se aplique indiscriminadamente através de barreiras culturais, e não há nenhum absoluto que transcenda diferenças culturais. Tudo que há são narrativas intracomunitárias, referentes a tradições culturais e subculturais específicas, e cada uma dessas narrativas é válida dentro dos limites da sua tradição. A ciência moderna ocidental, por exemplo, conseguiu validar sua "narrativa" por meio de resultados experienciais e fomulações lógicas, mas não pode ter a pretensão de invalidar outros discursos supostamente não-científicos. A ciência posmoderna assume uma posição de respeito, por exemplo, diante de medicinas alternativas que aparentemente não possuem qualquer base "científica". A teoria da evolução, por exemplo, tem sido severamente questionada por cientistas não-cristãos que têm percebido a questionabilidade de seus pressupostos filosóficos naturalistas. O pensamento posmoderno se caracteriza também pela preferência dada às narrativas que são exprimidas, não em termos racionais, mas sim por meio de emoções particulares e intersubjetivas, por meio de imagens religiosas, mitológicas, poéticas, artísticas, por meio de uma prática intuitiva, uma epistemologia afetiva e imediata.
A noção posmoderna de "narrativa" inclui a suspeita de todo discurso que se proponha unívoco. Devido à polissemia natural da linguagem, é impossível determinar o sentido de um texto verbal ou não-verbal. O posmodernismo questiona discursos que apresentam o autor ou "remetente" como autoridade, e o leitor ou "destinatário" como mero aprendiz. O sentido do texto é determinado no momento da leitura à medida em que ele interage com o depósito discursivo e o ideário do leitor. Ludwig Wittgenstein (1889-1951) há muito propôs que a linguagem é um jogo, jogado a partir de certas regras básicas, com o objetivo de alcançar determinados objetivos práticos. Há muito que a linguagem não é vista como mera denotação, isto é, como referente a uma realidade externa à razão. Linguagem é entendida como performática e conotativa, isto é, como expressão ou desempenho pessoal de uma biocosmovisão particular e inexpressível. No posmodernismo, o indeterminismo lingüístico é enfatizado, e o discurso tornou-se culpado de violência maquiavélica, de ser um veículo da obliteração da verdade. Daí sua ênfase em uma hermenêutica de suspeita cujos modelos maiores são Nietzsche, Freud e Marx, curiosamente todos pensadores do século dezenove.
Em suma, os diferentes discursos lingüísticos, em vez de servirem para o esclarecimento e iluminação das mentes, sempre teriam servido para a dominação e controle dos indivíduos, para a manutenção do status quo, para encobrir a verdade e deixá-la para sempre inviolável. O estruturalismo havia demonstrado a arbitrariedade natural do signo lingüístico, mas admitia que o texto ou discurso, guardava escondido em si mesmo a chave de sua própria interpretação. Para o crítico posmoderno isso é inadmissível, pois implica na existência de uma interpretação exclusiva e unívoca. Já a filosofia analítica continuou a sua busca de uma redução da linguagem à lógica simbólica, com o fim de buscar, a partir dessa redução, o sentido evasivo dos discursos. Wittgenstein, assim como também o deutero-Heidegger, viram uma saída para a crise hermenêutica na noção da linguagem como uma força independente que cria o seu próprio sentido a partir do incessante fluxo heracliteano.14 Isso levou Heidegger a uma atitude de reverência diante do "mistério" inerente à linguagem, e Wittgenstein a dizer que "onde não é possível falar, é melhor calar".15
Deste impasse nasceriam as chamadas filosofias hermenêuticas de diferentes colorações: mais otimistas e conservadores (Hans-Georg Gadamer - n.1900), menos otimistas e menos conservadoras (Paul Ricoeur - n.1913), pessimistas e não-conservadoras (Jacques Derrida). Da mesma forma, o posmodernismo também não é monolítico. Há um posmodernismo céptico, mais consistente com seus pressupostos, que tende mais claramente em direção ao niilismo. A desconstrução das metanarrativas, a genealogia das verdades pretensamente absolutas, a tipologia cínica dos discursos, são práticas características deste tipo de posmodernismo. Mas há também um posmodernismo positivo, menos consistente com seus pressupostos, que tende a engajar-se na luta por justiça social. Estes posmodernos insistem que é possível consertar os erros da sociedade. O próprio Derrida tem optado por esta orientação.
A Verdadeira Natureza do Posmodernismo e as muitas
Faces da ModernidadeMinha conclusão certamente não agrada nem a modernos nem a posmodernos. Mas é evitando Scylla e Charybdis que chegaremos talvez a uma interpretação correta dos fatos. Não nos cabe negar a existência e a particularidade do pensamento pós-moderno. Mas não precisamos aceitar a sua pretensão de ser algo verdadeiramente novo na história do pensamento. É preciso desmascarar o posmodernismo para saber melhor com quem estamos lidando. O que tem sido hoje chamado de posmodernismo não é diferente do pensamento promovido em círculos filosóficos e teológicos nos últimos duzentos anos. Thomas Oden chama o posmodernismo de hipermodernismo.16 De fato, o posmodernismo é mais um reavivamento deste tipo sofisticado de modernismo pós-kantiano, do que uma revolução pós-moderna, a não ser que estejamos dispostos a chamar todo o pensamento pós-kantiano de pós-moderno, situação em que o termo ganharia um novo sentido, isto é, denotaria o pensamento pós-iluminista e pós-kantiano. Neste caso, quase toda teologia moderna teria de ser reconhecida como pós-moderna, o que chega a ser cômico.
Há pelo menos três razões para a popularidade do posmodernismo: (i) fica mais fácil vender um produto quando usamos uma embalagem nova; (ii) em meios onde a filosofia analítica anglo-saxônica prepondera e o ideal científico ainda é levado a sério, os rumos do pensamento pós-kantiano estão finalmente tendo considerável efeito transformador (em grande parte isto é possível agora porque a ameaça marxista já não amedronta); e finalmente, (iii) a cultura popular (em particular a cultura popular americana, e aquelas que são americanizadas como a nossa) está refletindo esta tendência. O neo-kantianismo, depois de duzentos anos, chegou ao coração do povo, e está influenciando a sua biocosmovisão até aqui constituída por ideais iluministas.
Precisamos hoje compreender esta nova mentalidade popular. As "novas" idéias estão no ar. Mas não é recomendável que levemos gato por lebre. A melhor maneira de entendermos a posmodernidade é através do estudo da filosofia e da teologia pós-iluminista. Os grandes pensadores posmodernos como Foulcault, Derrida e Richard Rorty concordariam com isso, pois rejeitam a noção bastante difundida de que estaríamos no início de uma nova era. Eles sabem muito bem que aquilo que defendem já vem sendo cozido em fogo lento há duzentos anos. Vale lembrar que tem-se dito nos meios acadêmicos que o ocaso do posmodernismo, enquanto movimento que prega o fim da modernidade, já teria chegado. E nesse caso, o moderno sobrevive ao posmoderno. A razão é simples: o posmoderno revelou-se muito moderno (hipermoderno) e viu-se que o moderno (entenda-se pós-kantiano) sempre foi posmoderno (entenda-se pós-iluminista).
Modernismo e Posmodernismo aos pés da Cruz Que resposta deve o pensador reformado dar ao posmodernismo? Antes de mais nada, cabe-nos não nos deixarmos enfeitiçar pela nova embalagem, e reconhecermos o produto. Uma vez desmascarado o posmodernismo, cabe-nos avaliá-lo com calma e propriedade por aquilo que ele de fato é. Os grandes filósofos posmodernos não são essencialmente diferentes dos críticos da modernidade que os antecederam; eles são apenas mais consistentes em sua rejeição dos pressupostos iluministas, em sua absorção da revolução epistemológica kantiana, e em sua reinterpretação do pensamento dialético. Em segundo lugar, cabe-nos desenvolver uma autocrítica biblicamente orientada que nos permita avaliar onde e quanto da nossa teologia foi e continua sendo influenciada por filosofias espúrias, sejam elas de cunho iluminista ou neo-kantiano. Modernos, posmodernos ou hipermodernos, cabe-nos trazer todo argumento aos pés da cruz, à obediência de Cristo (2 Co 10.4-5), pois quando todas as palavras humanas estiverem esquecidas nas areias das civilizações derribadas, o Verbo de Deus permanecerá. A tua palavra é a verdade (João 17.17).17
English Abstract
In this article R. Gouvêa attempts an investigation of the claims of postmodernists that modernity is dead and that we live now in a postmodern world. Gouvêa thinks that postmodernism is actually nothing else than old modernity with a new set of clothes. Gouvêa begins his analysis by tracing the historical and philosophical birth of modernity and its main characteristics. Born in Iluminism, modernity has received indeed a formidable blow from Kant with his new epistemology, introducing a new kind of religious thinking. Gouvêa main thesis is that postmodernity is only the actual absorption by the world society of post-kantian presuppositions, that has its effects in popular culture. He goes on to show some of the main elements of the so called postmodernism, such as deconstructionism, a new brand of pluralism and the rejection of absolute truth. His conclusion is that postmodernism is really a revival of a sophisticated kind of post-kantian thought.
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* O autor é ministro presbiteriano, tem seu Mestrado em Teologia Sistemática pelo Westminster Theological Seminary, nos Estados Unidos, onde atualmente conclui seu doutorado na mesma área.
1 O autor reconhece o talento do premiado escritor brasileiro Jorge Amado, e cita esta história por ser um bom exemplo da literatura do século vinte, muito mais ambígua e "posmoderna", e muito menos racional e "moderna" (ou iluminista) do que seria de se esperar. O autor evidentemente não endossa os posicionamentos éticos, filosóficos ou teológicos que são explícita ou implicitamente expostos na obra de Jorge Amado.
2 Neste artigo eu uso o termo "posmodernismo" em referência ao movimento assim chamado. Ao me referir a algo teoricamente pós-moderno eu uso expressões hifenizadas como "pós-moderno".
3 Immanuel Kant, Critique of Pure Reason (Garden City, NY: Doubleday, 1966), originalmente publicado em alemão em 1781.
4 O racionalismo continental teve início com o francês René Descartes (1596-1650), seu apogeu com o holandês Baruch Spinoza (1632-1677) e o alemão G.W. F. Leibniz (1646-1716), e encontrou seu fim no surgimento da filosofia Kantiana. O empiricismo inglês, que data da mesma época, não era menos racionalista que a escola continental, e pode ser chamado de "o outro racionalismo". Teve início com Francis Bacon (1561-1626) e seu ponto culminante com o céptico David Hume (1711-1776). Entre os principais nomes destacam-se John Locke (1632-1704) e George Berkeley (1685-1753).
5 Isaac Newton (1642-1727) tornou-se um símbolo deste período em que as ciências naturais pareciam capazes de desvendar todos os mistérios do mundo e da vida. A referência é à sua principal obra, Philosophia naturalis principia mathematica. Newton é visto como o ponto culminante da "era da ciência", seguindo a homens como Nicholas Copernicus (1473-1543), Galileo Galilei (1564-1642), Giovanni Bruno (1548-1600), Tycho Brahe (1546-1601), e Johannes Kepler (1571-1630).
6 Confira a obra de John Locke, The Reasonableness of Christianity.
7 Veja seu mais importante testamento teológico, publicado em 1793, Religion Within the Limits of Reason Alone (New York: Harper, 1960).
8 Neste artigo estamos enfatizando a primeira fase da obra de Barth, caracterizada pelo seu comentário de Romanos e pelos seus artigos na revista teológica Zwischen den Zeiten. Não estamos levando em consideração as fases posteriores de Barth, em que se nota um paulatino distanciamento do teólogo de Basiléia de suas formulações iniciais. Não seria possível empreendermos uma análise mais ampla da teologia de Barth neste artigo.
9 Para uma melhor compreensão do desconstrucionismo, ver John M. Ellis, Against Deconstructionism (Princeton: Princeton University Press, 1989), Carl Raschke et al., Deconstruction and Theology (New York: Crossroad, 1982), Stephen Moore, Poststructuralism and the New Testament. Melhor ainda, confira as obras de Derrida em que o desconstrucionismo é praticado no melhor estilo, como por exemplo em Dissemination (Chicago: University of Chicago Press, 1981), publicado originalmente em francês em 1972.
10 Confira Michel Foucault, The Archaelogy of Knowledge e The Discourse on Language (New York: Harper. 1972), originalmente publicados em francês como L’archéologie du savoir (Gallimard, 1969) e L’ordre du discours (Gallimard, 1971).
11 A teoria de verdade de Tarski ganhou popularidade entre os adeptos da filosofia analítica com a publicação do seu influente artigo "The Semantic Conception of Truth" na revista Philosophy and Phenomenological Research (1944). Mais recentemente ela foi desenvolvida no que hoje se chama "speech-act theory of truth" (teoria de verdade do ato-da-fala). Para a noção pragmática, veja William James, The Meaning of Truth (New York: New America Library, 1974), publicado originalmente em 1909. Evidentemente não seria possível nos determos neste artigo em uma longa exposição das diferentes teorias de verdade. Para uma boa introdução a este complexo assunto, veja Hendrik M. Vroom, Religions and the Truth (Grand Rapids: Eerdmans, 1989) 21-42.
12 Esse pensamento se manifesta de forma mais explícita na obra do chamado "segundo Heidegger", isto é, seu pensamento pós-segunda-guerra. Confira, por exemplo, Martin Heidegger, On the Way to Language (New York: Harper, 1971), originalmente publicado em alemão em 1959.
13 Leyla Perrone-Moisés, "Outras margens" em Folha de São Paulo, 3 de dezembro de 1995. Para uma melhor compreensão do conceito derrideano de différance, confira David Wood & Robert Bernasconi (eds.), Derrida and Différance (Evanston: Northwestern University Press, 1988).
14 Heráclito de Éfeso (c. 530-470 AC) conhecido como o filósofo do eterno fluir, adversário de Parmênides de Eléia (c. 515-440 AC), que com sua filosofia do ser estável foi o verdadeiro patriarca da metafísica grega.
15 Tradução minha das últimas palavras de Wittgenstein no seu conciso Tractatus Logico-Philosophicus, publicado originalmente em alemão em 1921. Para melhor compreender Wittgenstein, confira Anthony Kenny, Wittgenstein (Cambridge: Harvard University Press, 1973).
16 Ver Thomas Oden, "The Death of Modernity and Postmodern Evangelical Spirituality" em David S. Dockery (ed.), The Challenge of Postmodernism (Wheaton: Bridgepoint, 1995), 19-33.
17 Para os leitores interessados em estudar o assunto mais a fundo, eu gostaria de sugerir algumas leituras como Truth Is Stranger Than It Used to Be, de Richard Middleton e Brian Walsh (Inter-Varsity Press, 1995). A Primer on Postmodernism, de Stanley Grenz (Eerdmans, 1996), Interpreting God and the Postmodern Self, de Anthony Thiselton (Eerdmans, 1995), The Challenge of Postmodernism, editado por David Dockery (BridgePoint Books, 1995), que inclui artigos importantes como os de Carl Henry e Thomas Oden, entre outros.
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