Melhor do que "Ex Lex"

por

Vincent Cheung



Certa pessoa me enviou uma passagem do livro Apologetics to the Glory of God [Apologética para a Glória de Deus], de John Frame, no qual ele argumenta contra um ponto estabelecido no livro God and Evil [Deus e o Mal], de Gordon Clark. Eu li o livro de Frame há muito tempo atrás, e se lembro corretamente, não estou certo, em primeiro lugar, se Frame entendeu completamente Clark, ou se ele o representou corretamente. Em todo caso, isso não é importante, quer tenha ou não algo a ver com Clark.

De acordo com Frame, argumentar que Deus está “acima da lei” não é uma resposta bíblica ao problema do mal, pois argumentar dessa forma seria ignorar ou negar a premissa de que as leis de Deus procedem e são consistentes com a sua própria natureza imutável.

 

Nota do tradutor: Eu, bem como um amigo, fomos as pessoas que fizemos tal pergunta para o Cheung. O trecho do livro de Frame apareceu no blog do Phillip Johnson, pastor da igreja do Pr. John MacArthur e webmaster do site www.spurgeon.org. Eis o trecho (o que está entre colchetes são notas de rodapé do próprio Frame):

O argumento de Clark é que Deus é ex lex, o que significa “acima da lei”. A idéia é que Deus está fora ou acima das leis que ele prescreveu ao homem. Ele nos diz para não matarmos, todavia ele retém para si o direito de tirar a vida humana. Assim, ele mesmo não está obrigado a obedecer aos Dez Mandamentos ou qualquer outra lei dada ao homem na Escritura. Moralmente, ele está num nível inteiramente diferente do nosso. Portanto, ele tem o direito de fazer muitas coisas que parecem más para nós, mesmo coisas que contradizem as normas da Escritura. {Mas sobre essa base, não seria errado para Deus causar o mal diretamente. Esse é o porquê eu disse que esse argumento torna o argumento da causa indireta irrelevante}. Assim, é dessa forma que Clark trata qualquer argumento contra a justiça ou bondade de Deus.

Há alguma verdade nessa postura. Como veremos, a Escritura proíbe a crítica humana das ações de Deus, e a razão é, como Clark lembra, a transcendência divina. É também verdade que Deus tem algumas prerrogativas que ele nos proíbe, tal como a liberdade de tirar a vida humana.

Clark se esquece, contudo, ou talvez negue, a máxima Reformada e bíblica de que a lei reflete o próprio caráter de Deus. Obedecer a lei é imitar Deus, ser como ele, ser a sua imagem (Êxodo 20:11; Levítico 11:44-45; Mateus 5:45; 1 Pedro 1:15-16). Há nas éticas bíblicas também uma imitação de Cristo, centrada na expiação (João 13:34-35; Efésios. 4:32; 5:1; Filipenses 2:3ss.; 1 João 3:16; 4:8-10). Obviamente, há muito sobre Deus que não podemos imitar, incluindo aquelas prerrogativas mencionadas anteriormente. Satanás tentou Eva para que a mesma procurasse se tornar “como Deus” no sentido de cobiçar suas prerrogativas (Gênesis 3:5). {John Murray disse que a diferença entre as duas formas de buscar a semelhança de Deus parece ser uma espada de dois gumes, embora haja realmente um profundo abismo entre elas.} Mas a santidade, justiça e bondade geral de Deus é algo que podemos e devemos imitar, num nível humano.

Assim, Deus honra, em geral, a mesma lei que ele nos dá. Ele rejeita o assassinato porque ele odeia ver algum ser humano assassinar outro, e ele pretende reservar para si o direito de controlar a morte humana. Ele proíbe o adultério porque ele odeia o adultério {que é um tipo de idolatria — veja Oséias}. Podemos estar certos de que Deus se comportará de acordo com os mesmos padrões de santidade que ele nos prescreve, exceto na medida em que a Escritura declara uma diferença entre suas responsabilidades e as nossas.

{De forma estranha, Clark, que é geralmente acusado de ser um realista Platônico, nesse ponto se desvia para o oposto do realismo, a saber, o nominalismo. Os nominalistas extremos sustentavam que as leis bíblicas não eram reflexões da natureza de Deus, mas meramente requerimentos arbitrários. Deus poderia ter tão facilmente ordenado o adultério como o proibido. Eu mencionei isso numa carta para Clark, e ele apreciou a ironia, mas não forneceu uma resposta. Por que, eu pergunto, ele não trata a lei moral da mesma forma que ele trata a razão e a lógica em, por exemplo, seu livro The Johannine Logos [O Logos Joanino] (Nutley, N.J.: Presbyterian and Reformed, 1972)? Ali ele argumentou que a razão/lógica de Deus não estava nem acima de Deus (Platão) nem abaixo de Deus (nominalismo), mas que era a própria natureza racional de Deus. Por que ele não tomou a mesma visão sobre as leis morais de Deus?}.

[Extraído de: Apologetics to the Glory of God (Phillipsburg, NJ: P&R, 1994), 166-68.]

 

Antes de apresentar o restante da resposta de Cheung, posto abaixo a resposta de John Robbins a esse trecho, que lhe enviei por e-mail:

Quando Deus disse para Abraão sacrificar Isaque, ou quando ele ordenou que os israelitas matassem todo homem, mulher, e criança sem exceção, ou quando ele mudou a lei moral de uma dispensação para a seguinte, o que Abraão e os israelistas fizeram e o que os cristãos deveriam fazer? Deveriam eles ter pensado consigo mesmos: 'bem, Deus não pode ordenar tais mandamentos, visto que ele é imutável, visto que ele nos deu previamente mandamentos diferentes, e visto que sua lei moral é a sua natureza e ela não pode mudar'? Ou eles deveriam entender que Deus é o legislador, e o legislador faz as leis, não o contrário?

Se Clark não respondeu Frame, como Frame reivindica, é porque a resposta é tão óbvia que até mesmo uma criança, mas não um professor de seminário, a veria. Frame é anti-cristão em seu pensamento.

Por que você está lendo esse livro?

John Robbins

 

O que segue abaixo é a minha resposta:

Eu tenho tempo para lhe dar apenas uma resposta breve. Certamente não posso abordar a questão de todo ângulo possível ou explicar minuciosamente tudo que disser sobre ela. Mas você será capaz de desenvolvê-la e aplicá-la como lhe for necessário.

O argumento, quer usado contra o ex lex ou não, é simplesmente irrelevante. Por causa da discussão, concordemos primeiramente que as leis morais que Deus impôs sobre a humanidade procedem de sua natureza imutável. Para isso, suponhamos ainda, quer seja verdade ou não, que Deus está realmente limitado por essas leis morais. Como tão frequentemente é o caso, a questão é encerrada quando perguntamos: “E daí? O que uma coisa tem a ver com a outra?”.

A partir do que dissemos acima, segue-se que “não matarás” aplica-se a Deus. Mas, e daí? Frame diria que, portanto, Deus não é ex lex . O que ele fracassa em observar é que esse é um mandamento com conteúdo definido, e não simplesmente algum X indefinido. O que é assassinar? Na Bíblia, assassinato é o término deliberado de uma vida humana sem sanção divina. Podemos adicionar que isso deve ser feito por outro humano, ou pelo menos por outra mente racional, visto que animais não podem realmente “assassinar” no mesmo sentido, mesmo que o ato de matar seja deliberado. Agora, a menos que Deus possa alguma vez matar alguém sem sua própria aprovação, em cujo caso ele seria esquizofrênico (de forma que nosso problema seria muito maior do que ex lex ), o mandamento nunca se aplicaria realmente. O mesmo acontece com “não furtarás ”. Não há nada para Deus roubar, pois ele fez todas as coisas, e tudo lhe pertence.

Frame está considerando o problema do mal, ou como Deus pode causar ou “permitir” o mal e ainda permanecer santo, justo e íntegro. Mas dado o exposto acima, e daí se Deus causa o mal até mesmo diretamente? Qual lei moral existe, a qual diz que ele não deve fazer tal coisa? Onde ela está na Bíblia? E se encontrada, ela realmente se aplica, mesmo que dissermos que Deus está “limitado” por ela?

Assim, minha posição não é exatamente ex lex, mas que a grandeza e transcendência de Deus é tal que ele nem mesmo precisa ser ex lex.

A passagem em questão encontra-se numa grande seção no livro de John Frame sobre o assim chamado problema do mal. Ele examina várias opções, mas se mostra insatisfeito com cada uma delas, e finalmente conclui que o assunto é de certa forma um “mistério”. No mesmo livro, Frame inclui uma resposta de Jay Adams na qual ele repreende Frame por rejeitar tanto a resposta clara da Bíblia sobre o assunto como também por desejar mais do que a Bíblia revela. O problema não é que Clark seja anti-bíblico (quer ele seja ou não), mas que Frame rejeita a resposta bíblica.

Você pode ler também minha própria resposta ao problema do mal. Em resumo, em adição ao que declarei acima, minha posição é que não existe nenhum problema do mal para o Cristianismo. O argumento nunca pode ser formulado de uma forma que seja logicamente inteligível. Se pretendemos entender a objeção, então podemos dizer algo sobre o assunto, mas não há realmente nenhuma objeção para respondermos de forma alguma. O objetor nunca pode saber o que ele está realmente perguntando quando ele levanta o problema do mal, e ninguém pode logicamente entendê-lo. Assim, o “problema do mal” é derrotado em vários níveis ao mesmo tempo. Repetindo, você pode ler meu artigo para uma explicação adicional.

 

Livros Recomendados:

Gordon Clark, God and Evil

Gordon Clark, Predestination

Jay Adams, The Grand Demonstration

Vincent Cheung, O Problema do Mal

Vincent Cheung, Systematic Theology

Vincent Cheung, Commentary on Ephesians

Vincent Cheung, O Autor do Pecado

Vincent Cheung, Questões Últimas

Vincent Cheung, Presuppositional Confrontations [1° capítulo em português]

O Autor do Pecado

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Por que Deus Criou o Mal?

 

 


Nota sobre o autor: Vincent Cheung é o presidente da Reformation Ministries International [Ministério Reformado Internacional]. Ele é o autor de mais de vinte livros e centenas de palestras sobre uma vasta gama de tópicos na teologia, filosofia, apologética e espiritualidade. Através dos seus livros e palestras, ele está treinando cristãos para entender, proclamar, defender e praticar a cosmovisão bíblica como um sistema de pensamento abrangente e coerente, revelado por Deus na Escritura. Ele e sua esposa, Denise, residem em Boston, Massachusetts. [http://www.rmiweb.org/]

 


Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto
Cuiabá-MT, 27 de Dezembro de 2005.


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